Propaganda política, publicidade, manipulação de notÍcias, horóscopos, cartomantes, previsões econômicas e do fim do mundo, etc – uma reflexão sobre as crenças e crendices.
Octave Mannoni em seu interessante artigo “eu sei, mas mesmo assim…” (in chaves para o imaginário – editora vozes – 1973) aborda o tema das crenças. tenta explicar como alguém acredita ou não em algo, como se sustenta uma crença, como a crença se relaciona com a fé.
Usando o referencial teórico de Lacan, de quem foi um dos primeiros e mais sérios discípulos, Mannoni remete o problema das crenças ao mecanismo de verleugnung, a recusa, fenômeno que Freud descreve pela primeira vez ao falar de fetichismo.
Como sabemos, a verleugnung, a recusa, é a forma como o fetichista responde à percepção da diferença anatômica sexual, a ausência do falo na mãe.
A ausência do falo na mãe é uma percepção fundamental que tem efeitos estruturais muito amplos na constituição do sujeito. a partir da intensa angústia de castração que ela desencadeia, o menino se encaminha para a resolução do complexo de edipo, pois, preocupado narcísicamente em preservar seu pênis, é forçado a abdicar de seus objetos amorosos incestuosos. já a menina, ao contrário, ingressa no complexo de Édipo, desde que ao se ver privada de órgão tão valioso, amargamente responsabiliza sua mãe pelo fato e, desgosa com ela, volta-se para o pai, na esperança de receber dele um pênis que a completaria ou em função do qual estabelece a equação simbólica bebê-pênis. como resultante desse processo, que citamos aqui em largas pinceladas, se organizam o super-ego e as identificações sexuais.
O fetichista tenta evitar as consequências desta percepção da ausência do falo na mãe. ele consegue ver que não existe o falo materno e – ao mesmo tempo – manter a crença em sua existência. consegue esta façanha através deste mecanismo específico da verleugnung, a recusa da realidade, que provoca uma cisão no ego, dividindo-o em dois lados, um deles respeita a realidade, ou seja a inexistência do falo materno, e outro continua acreditanto no falo materno. tenta assim contornar as dores inevitáveis próprias ao proceso edipiano. constitui o fetiche, objeto que em sua fantasia representa aquele falo inexistente.
O fetichista crê na existência do falo e simultaneamente descrê no mesmo. ele acredita e não acredita. mannoni vincula a estrutura das crenças as mais variadas que nos acometem à verleugnung, a rejeição. o que equivale a dizer que se a verleugnung é patognomônica do fetichismo, ela – apresentando-se de maneira menos radical e patológica – está presente de forma muito mais abrangente e disseminada em todos as outras estruturas psíquicas.
Diz Mannoni: “(…) é preciso que a crença sobreviva ao desmentido, embora ela se torne inapreensível, e que se veja dela apenas os efeitos completamente paradoxais. este exemplo abriria todos os tipos de caminho: a utilização de falsas notícias com objetivos de propaganda, mesmo quando devem ser desmentidas, as promessas que não podem ser cumpridas, a psicologia da mistificação e dos impostores”.
” Eu sei, mas mesmo assim…” – que é como Mannoni sintetiza esta posição de manter uma crença mesmo depois de ter um conhecimento que a invalidaria, atitude própria da verleugnung – pode ser detectata em muitos acontecimentos de nossa psicopatologia da vida cotidiana ligada às crendices, tipo horoscopo, cartomante, previsões do fim do mundo, loterias, tarôs, duendes, etc.
” Não acredito em cartomantes, mas mesmo assim…”- toda vez que agimos assim, no fundo estamos reatulizando de forma disfarçada a atitude do fetichista, o “não acredito no falo da mãe, mas acredito”. estaria aí o especial prazer que se pode usufruir de determinadas crenças, pois o que está em jogo não é propriamente o teor da crença e sim a estrutura do poder acreditar e não acreditar, o ver a realidade da castração e o recusá-la.
A publicidade joga com nossos desejos narcísicos, sexuais e agressivos. procura alimentá-los, propondo novas identidades que realizem tais desejos, que estariam acessíveis através de objetos de consumo idealizados. vemos então que além disso ela conta com outra poderosa aliada que é a verleugnung, a recusa da realidade. ninguém acredita inteiramente na publicidade, mas mesmo assim… realizo meu desejo de negar a castração, mantenho a existência do falo materno.
É como se o “normal” (entenda-se neurótico) se vingasse da rigidez da realidade à qual foi forçado a ingressar, mantendo um pouco a possibilidade que o fetichista tem de driblá-la.
Se isso é usado e abusado na propaganda comercial, com a propaganda política, isso atingiu um nível imoral e antiético. e foi justamente vendo a recente propaganda eleitoral na tv que o artigo de Mannoni me veio à mente.
Temos no brasil um código de defesa do consumidor que impede a veiculação de propaganda enganosa. É muito curioso que tal princípio não vigore quando está em jogo uma coisa muito mais séria que os simples objetos de consumo, que é a gestão da coisa pública, a escolha de nossos representantes no poder.
As peças de propaganda beiram o mais descabelado surrealismo e irrealismo. essa situação atingiu ponto culminante com a obra de duda mendonça que tentou mostrar o candidato maluf como a personificação do bem, e covas como o mal, o que “baixa o nível”… pela autoria de tais portentos teria, segundo a própria mídia, ganho 70 milhões de reais.
Talvez os mais informados tenham se divertido com o ridículo de tal postulação. talvez tiveram oportunidade de brincar com sua angústia de castração, segundo o modelo “não acredito que o Maluf seja a encarnação do bem, mas mesmo assim…”
Mas a coisa muda de figura quando lembramos que a propaganda está dirigida para as classes menos favorecidas, os pobres e miseráveis, já que a faixa mais informada da população não escolhe seus candidatos pela propaganda eleitoral. quando lembramos isso, fica caracterizada não o uso da verleugnung – recusa – na propaganda e sim a mais deslavada das mistificações, a manipulação da informação, a prevalência da desinformação para fins políticos.
Outra coisa que me faz lembrar as teorizações de Mannoni sobre as crenças é ler nos jornais as mais variadas previsões sobre o futuro de nosso pobre país. como diz Joelmir Betting, a oferta é variada. vai desde aquilo que ele chama de “jornalistas chapa-branca”, que são os bajuladores do poder, que a tudo dizem amém, e os “jornalistas sinistrose” – aqueles que estão apregoando sem cessar o fim do mundo, que aliás aconteceu ontem…
Claro que, no caso, as crenças variam de acordo com as posições políticas, mas será que também aí estaria presente o “eu sei, mas mesmo assim…”? as crenças políticas responderiam ao mesmo problema?
Questão complicada e difícil de responder. Mannoni estabelece uma diferenciação entre fé e crença (crendice). embora sempre estejam misturadas, ambas feitas da palavra de outrem, estariam em níveis diferentes – uma no simbólico, a outra no imaginário.