“Cocô, volte aqui!”
Sérgio Telles
Um menino de cerca de dois anos e meio faz cocô e ao dar descarga fica inconsolável com o desaparecimento do mesmo. Chora muito, abraça o vaso sanitário e diz “cocô volte aqui!”. A cena se repete algumas vezes mostrando o quanto a criança se desespera, enquanto um homem que filma a cena – seria o pai? – tenta consolá-lo.
Em linhas gerais esse é o conteúdo do vídeo que a família do menino colocou no YouTube, onde chamou a atenção dos internautas e do programa “Pânico”, que o apresentou em longa matéria num desses domingos.
Na entrevista, a mãe da criança diz que a cena no banheiro se repetia muitas vezes em sua casa e como era “muito engraçada” resolveu filmá-la e colocá-la nas redes sociais visando inicialmente mostrá-la aos familiares e amigos, e surpreendeu-se com o interesse que despertou em milhares de pessoas, como mostra o numero de acessos ao mesmo.
Além de exibir o vídeo original, a matéria do “Pânico” mostra a criança em meio a seus amigos e familiares, recebendo os presentes que a produção do programa lhe levou – um boneco de pelúcia com a forma de um “cocozão” enorme e um show musical onde um cocô dança desajeitadamente. Uma mostra típica do nível de humor daquele programa.
As crianças muitas vezes apresentam comportamentos que os adultos não conseguem entender, o que os leva a considerá-los como bobagens sem sentido. O fato de a mãe achar “engraçado” o patente desespero do filhinho é um exemplo disso. Sua reação poderia ser tributada a uma defesa maníaca contra a angústia que nela mesma teria surgido ao se ver impotente para dirimir o sofrimento do filho. Além do mais, a angústia do filho poderia ter reavivado na mãe arcaicos sentimentos semelhantes aos que o filho experimentava naquele momento.
A psicanálise tem provado ser um extraordinário instrumento para a compreensão da mente humana, adulta ou infantil. O comportamento da criança inconsolável com o cocô que vai embora ilustra à perfeição elementos da fase anal.
Esse período sucede a fase oral, na qual a criança tem uma relação simbiótica fusional com a mãe. Na fase anal, fica mais claro que ela e a mãe não são um todo uniforme e indiviso e sim dois seres separados e autônomos. Nesse momento, sob vários aspectos, as fezes são muito valorizadas pela criança. São uma criação sua, sua primeira obra da qual muito se orgulha. Poderá fazer delas uma oferenda, um presente para a mãe ou se negar a presenteá-la com elas. As fezes estão no centro do processo de aquisição de novos hábitos higiênicos que permitem que a fralda seja abandonada. Esse aprendizado fortalece a discriminação da criança em relação à mãe, pois nele a mesma percebe como a mãe vê as fezes de forma diferente da que ela propria tem. Por outro lado, a criança vê as fezes como pedaços de si mesma, uma valiosa parte de seu corpo.
A separação das fezes, sua perda, pode simbolizar qualquer separação e perda, habitualmente da mãe, pois, como vimos, nesse momento a criança está perdendo a crença de fazer um todo fusional com a mãe. As fezes como um pedaço destacável de si mesmo são o precursor da fantasia de castração, quando outro valioso pedaço do corpo, o pênis, pode ser desprendido (agora de forma violenta) e perdido.
Dizendo de outra forma, nesta fase anal a criança, mergulhada no mundo simbólico, lança mão dos limitados recursos que tem à mão – no caso as fezes – para representar e expressar os conflitos que vive.
Poderíamos então entender que a criança, ao ficar tão angustiada com a perda de seu cocô, está expressando a dor que sente ao se reconhecer distinto da mãe, separado dela, e podendo perdê-la para sempre. O angustiado apelo “Cocô, volte aqui!” poderia representar “Mamãe volte aqui, não se vá, não me deixe sozinho”.
Que tudo isso esteja exposto na internet e na televisão mostra bem a mistura entre público e privado, tão característica de nosso momento cultural. O desejo de aparecer nas telas grandes e pequenas é o sonho corrente de milhões de anônimos moradores das grandes metrópoles do mundo inteiro.
Mostra ainda a incompreensão do adulto frente ao mundo infantil. Tivessem os pais uma compreensão da significação simbólica do comportamento do filho, seguramente teriam agido de forma diferente.