Antes de tudo e sempre, está o desejo de escrever, que vai sopesando a realidade, sobrevoando fatos e sentimentos, esquadrinhando lembranças, emoções e idéias, comparando-as, contrapondo-as, antevendo como tudo poderia ser usado literariamente, quer dizer, transformado numa outra substância, não mais a vida em si mas sua representação, a linguagem, os signos, os símbolos.
Depois, o dispor isso numa ordem precisa e clara, bem cuidada e urdida para que o leitor – esta entidade suposta e desejada e em função de quem também se escreve – além do prazer estético, possa sentir que a leitura lhe proporciona ainda um maior conhecimento sobre si mesmo e os outros, uma percepção mais abrangente da vida e da morte.
A mente do escritor está sempre seguindo por estes circuitos, em elevadas pretensões, o que não quer dizer que consiga concretizá-las e, caso o faça, que atinja os objetivos a que se propõe.
Pelo contrário, a realização de suas pretensões é problemática e fortuita, sujeita a inúmeros e desconhecidos imponderáveis.
O escritor sente o peso da tradição literária atrás de si, e pensa, às vezes, que o escrever é um ato de temeridade e ousadia, de presunção e arrogância, que pode cobrí-lo de opróbrio. Mas o desejo de escrever é mais forte que tudo o mais, e prevalece.
O escritor sabe do sofrimento e da fadiga que envolvem seu ofício. Sabe que tem tão pouco tempo. Sim, ele sabe – ars longa, vita brevis. Mas o escritor também sabe que tem um privilégio que o enche de orgulho e alegria – o ser dotado da capacidade de criar.
O escritor escreve tudo isso na terceira pessoa, falando do “escritor” e não de si mesmo, por uma espécie de pudor e constrangimento, por sentir que expõe um segredo, algo que deveria permanecer oculto e ignorado.
SÉRGIO TELLES