Sobre o filme ESTOU PENSANDO EM ACABAR COM TUDO, de Charlie Kaufman – de Sérgio Telles

Sobre o último filme de Charlie Kaufman – “Estou pensando em acabar com tudo” (I´m thinking of ending things)

Sérgio Telles

Autor de roteiros cinematográficos originais e criativos (“Quero ser John Malkovich”, “Adaptação”, “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”), mais recentemente Charlie Kaufman passou a dirigi-los, como em “Sinédoque – New York” e “Anomalise”. A Netflix lança agora “Estou pensando em acabar com tudo”, sua última criação baseada na novela de Ian Reid.
O filme inicia com um denso, erudito e um tanto estranho diálogo entre Jake e sua namorada Lucy – ou Lucia, Louisa, Amy e Ames, desde que seu nome muda ao correr da narrativa, bem como sua profissão – ora é uma cientista (como Jake?), ora é pintora, garçonete ou poeta. O diálogo é entrecortado pelo monólogo interior de Lucy, que é atacada por um pensamento obsessivo que insiste em se fazer presente, o “estou pensando em acabar com tudo”. Seriam ideias compulsivas em torno do suicídio? Decorreria de visão pessimista que tem da vida e das relações humanas: se tudo está fadado a se acabar um dia, para que iniciar qualquer coisa, porque iniciar uma relação amorosa com Jake? Se tudo se acaba, há algum sentido na vida?
A complexa estrutura do filme pode ser organizada em três episódios – a visita à fazenda dos pais de Jake, a visita à escola onde ele estudou na adolescência e o epílogo, uma cerimônia em torno de Jake que ocorre muitos anos depois.
O jovem casal pensa frouxamente no futuro, num relacionamento mais sério. Mas antes de consolidá-lo, parece se fazer necessário uma visita ao passado.
Ao chegarem à fazenda, o roteiro abandona de vez o registro realístico e mergulha numa abordagem onírica, no qual o tempo parece assumir o protagonismo. Louisa se depara com os pais de Jake em diferentes estágios da vida, desde o vigor da maturidade até a velhice, senectude e decrepitude. De forma pungente, os conflitos familiares de Jake se levantam, mas Louisa tampouco passa ilesa. Acossada por um homem que lhe telefona sem parar fazendo ameaças, sente que sua identidade se dissolve e se confunde com a de Jake.
Se os pais estão aprisionados em casa pela velhice, cabe aos filhos prosseguir em busca de seus próprios destinos. Mas não é fácil se livrar do passado e Jake, apesar dos protestos de Louisa, se vê forçado a voltar à escola para encontrar os fantasmas que ali habitam e que a mãe, de forma canhestra, mencionara várias vezes durante o jantar. Tal como na casa dos pais, permanece um clima onírico, surreal, no qual se insinuam as experiências traumáticas de Jake, os sonhos destruídos, o amor desfeito de forma trágica.
No epílogo, Jake parece responder à questão inicial de Louisa: vale a pena fazer qualquer coisa se tudo está predestinado à extinção? Sua resposta é afirmativa e se apoia na importância do amor, “a única lógica que pode dar sentido à vida”.
Essa sequência cronológica linear organizaria o enevoado enredo do filme não fosse o enigmático personagem do zelador/faxineiro, que a subverte completamente.
Esse personagem revela a estrutura peculiar da trama, evidenciando o quanto Kaufman foi influenciado por David Lynch, que introduziu em seus próprios filmes recursos narrativos inovadores, como radicais descentramentos e deslocamentos.
A completa reversão de perspectiva introduzida por Lynch e assumida por Kaufmann lembra a anamorfose, recurso utilizado por pintores nos séculos XVI e XVII: observada através da perspectiva convencional, uma pintura mostra uma imagem especifica; mudando-se o ângulo da perspectiva, e somente a partir desse ângulo especifico, descortina-se uma outra imagem diferente da primeira e impossível de ser captada pelo ângulo anterior.
No caso do filme, a “anamorfose” – ou seja, a reviravolta na perspectiva – possibilita perceber que tudo o que acontece no filme é a criação da mente do zelador/faxineiro, que – na verdade – é Jake. Ele pensa em se suicidar (“estou pensando em acabar com tudo”, como diz Louisa) e termina por fazê-lo, ao sair no final do trabalho e entrar em sua camionete em plena nevasca, não ligar o motor e tirar toda a roupa, morrendo de hipotermia. A imagem final do filme é sua camionete coberta de neve, no interior da qual ele jaz morto. Antes de morrer ele repassa sua vida completamente fracassada do ponto de vista amoroso e profissional, pois, ao contrário de seus ambiciosos sonhos de obter sucesso no grande mundo, nunca conseguira sair da casa dos pais – onde continuava morando – nunca se afastou da cidadezinha, da escola, não construiu uma relação amorosa e tinha uma humilde posição na sociedade, dado o trabalho que exercia.
Kaufman dá inúmeras indicações de que Jake é o zelador. Aponto algumas delas. No início do filme, quando Louisa – que sintetiza as várias paixões reais ou imaginárias da vida de Jake – está esperando sua carona, ela está sendo observada de uma janela por um velho, que saberemos depois ser o zelador. Logo em seguida vemos o mesmo enquadramento, só que desta vez não é o zelador que está ali e sim Jake. É ele quem a observa da janela, ao mesmo tempo que chega com o carro para buscá-la. Que todos os personagens são produto da mente de Jake-zelador, aparece também na confusão identitária entre Louisa e Jake: quando eles estão no carro indo para a fazenda, Louisa está pensando, em monólogo interior e Jake como que ouve seus pensamentos e dá prosseguimento a suas ideias; na casa dos pais, as pinturas de Louisa são as de Jake; ela julga que a foto de Jake na infância é dela mesma. A máquina de lavar roupas no porão da casa dos pais de Jake, está cheia com uniformes do zelador. Próximo do final do filme, quando Louisa vai procurar Jake na escola e se depara com o zelador, ela dá a versão verdadeira do que aconteceu no primeiro encontro com Jake, bem diferente da que ela contara para a mãe dele no jantar.
O final do filme, quando Jake é homenageado, mostra a fantasia final de realização de seus desejos, ele que naquele momento está morrendo em melancólico suicídio, abandonado e ignorado dentro de seu veículo. A condição fantasiosa do episódio se evidencia no cenário e na maquiagem propositadamente grotesca dos personagens. A conversa do zelador com o porco devorado ainda em vida pelos vermes parece indicar uma reconciliação com seu destino, a aceitação do quinhão que lhe coube na vida, o não mais estar submetido às exigências de sucesso. “Se alguém tem que ser o porco apodrecido, por que não eu? Além do mais, o mesmo vai acontecer com todos nós”, diz o suíno de forma resignada. Não por acaso, no discurso da solenidade, Jake começa dizendo “eu aceito”.
Retomando a ideia da anamorfose, a forma linear como descrevi inicialmente o filme com três episódios – o jovem casal pensando no futuro, indo visitar a família e a escola e, anos depois, Jake sendo homenageado – seria a perspectiva convencional, que é subvertida pela insistente presença do zelador-faxineiro, que nos força adotar uma outra perspectiva, a anamórfica, quando se configura uma outra compreensão do enredo.
Tais intervenções na estrutura narrativa feitas por Lynch e Kaufman podem ser entendidos como exemplos da técnica do “narrador não confiável”. Habitualmente o espectador (ou leitor, pois o mesmo pode se dar na literatura) considera que aquilo que lhe é apresentado, a chamada realidade diegética, é o solo firme onde os personagens pisam e vivem sua vida de ficção. Entretanto, o “narrador não confiável” pode trapacear e aquilo que apresenta como realidade não o é, é algo imaginado, fantasiado, delirado por um personagem desconhecido, que pode permanecer oculto até o final do enredo, quando finalmente aparece de forma ambígua e incerta. Como vimos, no filme de Kaufman tudo o que o espectador vê e pensa ser acontecimentos “reais”, na verdade são fantasias com as quais o velho Jake-zelador reconta sua vida de forma idealizada.

O filme mostra muitos subtextos, como reflexões sobre literatura e criação artística (são citados muitos autores, como David Foster Wallace, Wordsworth e Eva HD), Guy Desbord; sobre as ligações entre crítica e arte – como na desconfortável conversa de Louisa com o pai de Jake ou na longa evocação da disputa entre Pauline Kael e John Cassavetes, especialmente sobre o filme “A woman under influence”.
A propósito, o teor fortemente erudito dos diálogos entre Jake e Louisa colocaria uma dificuldade na interpretação de que tudo se passa na cabeça de um simples zelador, pois seria verossímil atribuir-lhe pensamentos com tamanha sofisticação? Uma possibilidade de contornar esse empecilho seria lembrar que o fato de Jake ter terminado a vida em ocupação tão simples não implica que ele não tivesse recursos intelectuais e culturais para alcançar uma posição profissional mais relevante, apenas que não conseguiu direcioná-los nesse sentido, por prováveis impedimentos de ordem psíquica decorrentes de seu passado traumático.
Do ponto de vista psicanalítico, o filme é um excelente exemplo do processo primário, dos mecanismos do sonho (especialmente do deslocamento) e da forma como o tempo é tratado no inconsciente (coexistência de passado, presente e futuro; après-coup).

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