“Casos difíceis” – “difíceis” como, para quem?
Participação numa live do CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos) de São Paulo, em 07/08/2020
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ZXPIDTA2ZHI
Sérgio Telles
Todos os casos são complexos e exigem do analista seu empenho e comprometimento ético, mas há alguns que são especialmente trabalhosos, os “casos difíceis”. Usamos com frequência essa qualificação entre colegas ao trocarmos ideias sobre a prática clinica, mas dificilmente paramos para pensar sobre o que queremos dizer com isso. Essa então é uma boa oportunidade para refletir a respeito.
Minha fala de hoje está calcada em cima de dois textos, o clássico freudiano “Análise terminável e interminável” e o “Ilusões e desilusões do trabalho psicanalítico”, um dos últimos livros de André Green, de 2010. Acredito que esses dois livros têm muito em comum. São obras escritas por seus autores no final de suas vidas e podem ser vistos como testemunhos sobre o exercício da prática psicanalítica. Eles respondem muito bem à questão que nos propomos a examinar, se há casos “difíceis” e em que consistem.
Um dos últimos escritos de Freud, “Análise terminável e interminável” (1937) é um conciso e elucidativo texto no qual expõe sua visão final sobre o andamento de um processo analítico. especificando os fatores que o dificultam ou facilitam.
Sua leitura nos faz concluir que os “casos difíceis” são aqueles que não respondem de forma esperada ao processo analítico, como o ocorreu com o Homem dos Lobos, cuja análise se arrastava excessivamente (pelo menos para os padrões da época), sem a esperada evolução, o que levou Freud à decisão de interrompê-la unilateralmente, independente da concordância do paciente. Visava com isso vencer resistências consideradas até então como insuperáveis. Como se sabe, tal manobra não foi bem sucedida e muito já foi escrito sobre o caso. O paciente teve de retomar a análise com Ruth Mack Brunswick e nunca recuperou sua estabilidade emocional.
Para entender o que se opõe à análise nesses pacientes refratários, Freud aponta três fatores decisivos no andamento de qualquer análise. São eles: a força constitucional das pulsões, os traumas precoces e as modificações do ego provocadas pelos mecanismos de defesa. Mais adiante no texto, Freud acrescenta um quarto elemento, que é o que chama as características pessoais do psicanalista, ou seja, sua contratransferência.
Em “Análise terminável e interminável”, Freud dá grande importância à força constitucional das pulsões, ou seja, ao aspecto econômico dos processos psíquicos, que, diz ele, ficara um tanto obscurecido pela ênfase dada preferencialmente aos aspectos dinâmico e tópico. As pulsões fazem pressão sobre o ego, que tem a função de mediar as exigências do id e as do mundo externo. Nesse sentido, o ego deve domar as pulsões, tarefa que fica tanto mais difícil quanto mais intensa for a força pulsional. O ego necessita, pois, estar forte para enfrentar, resistir e domar a pulsão. Entretanto, o ego pode estar debilitado por problemas constitucionais ou outros, como traumas antigos ou atuais ou pelo reforço constitucional das pulsões, que pode ocorrer aleatoriamente ou em situações específicas, como na adolescência e na menopausa. A análise pouco pode fazer para modificar a intensidade das pulsões , mas pode sim modificar o ego.
Vejamos agora a participação do ego no andamento da análise. Um dos objetivos da análise é fortalecer o ego, livrando-o das deformações provocadas pelas incrustações dos mecanismos de defesa em sua estrutura. Os mecanismos de defesa se formaram em decorrência dos traumas precoces. Se naquela ocasião eles foram de capital importância para a sobrevivência do ego frente às pressões impostas pelo id e pelo mundo externo, na atualidade eles são desnecessários e prejudiciais. Se a análise avança satisfatoriamente, o ego se fortalece e amplia seu campo de ação, integrando áreas antes interditadas, tomadas pela repressão e demais mecanismos de defesa. Como disse Freud em conhecida passagem – wo es war soll ich werden – onde estava o id, que o ego prevaleça.
Assim, o paciente recupera seu equilíbrio. Mas logo surge uma questão, essa melhora é duradoura? Mais ainda, a análise age de forma preventiva e profilática contra novos surtos? São questões difíceis de responder. Em princípio, na medida em que o ego fortalecido aumenta seu domínio sobre o id, novas recaídas seriam evitadas. Mas, como vimos, a intensidade das pulsões pode oscilar, o que coloca em risco as conquistas obtidas. Além do mais, a análise só pode agir sobre os conflitos em atividade no momento, não consegue abordar os conflitos latentes. No texto, Freud menciona um paciente (segundo Jones, seria Ferenczi) que após a alta o procura acusando-o de não ter interpretado adequadamente sua transferência negativa, que surgiu posteriormente, quando a análise havia terminado. Freud se defende dizendo que o analista não pode acordar os cães que dormem, rebatendo desta forma uma outra crítica mais ampla, que acusava a psicanálise de fazer exatamente isso.
Como vimos, o ego faz a mediação entre as lutas do id com o mundo externo. Para evitar o perigo, o desprazer e a ansiedade, o ego aprendeu que deve conter as pulsões, pois sabe que se elas forem liberadas, provocarão reações do mundo externo. Assim, o ego passa a ver as pulsões como um perigo tão grande quanto as próprias ameaças do mundo externo. É justamente por esse motivo que o ego desenvolve os mecanismos de defesa, que foram essenciais no momento em que foram criados, mas que se transformaram em anacronismos prejudiciais que o deformam, podendo produzir graves alterações no caráter, induzindo a reações inadequadas e extemporâneas, como a compulsão à repetição, as formações reativas. A força dessas compulsões é tamanha que o ego passa a procurar situações que possam justificá-las ou até mesmo a criá-las.
Como os mecanismos de defesa do ego são inconscientes, eles passam a exigir a atenção do analista, o que faz com que a análise passe então ter um movimento pendular – ora o analista interpreta o id, ora os mecanismos de defesa e as alterações induzidas no ego, bem como a transferência.
Como os mecanismos de defesa são resistências que podem fazer com que qualquer possibilidade de levantar a repressão seja vista como uma grande ameaça, o ego pode abandonar a aliança que mantinha até então com o analista e se voltar contra a análise. Isso pode emperrar cronicamente o trabalho analítico ou alcançar dimensões agudas incontroláveis, remetendo a uma reação terapêutica negativa – condição na qual uma análise que progredia satisfatoriamente sofre uma inflexão, voltando o paciente a seu quadro anterior, sendo destruídas as conquistas até então obtidas.
A tudo isso Freud acrescenta o que chama adesividade da libido, a dificuldade de mudar apresentada pelo paciente, trazida pela fixidez dos investimentos pulsionais, a impossibilidade de abandonar determinados objetos e investir em outros, a compulsão à repetição.
Mas a dificuldade mais grave é a decorrente do conflito entre Eros e Tânatos, a força destrutiva da pulsão de morte, o masoquismo.
Esses elementos constituem as resistências do id, que se somam às resistências do ego (repressão, benefício secundário da doença, resistência de transferência) e as do superego (sentimento de culpa e necessidade de punição).
Voltando aos fatores que influenciam a evolução de uma análise, além da força da pulsão e das alterações do ego, que acabamos de ver, temos o trauma, que Freud o considera fator mais benéfico, o menos difícil de manejar.
Por fim, chegamos ao quarto elemento que Freud menciona como empecilho do bom andamento da análise, o que chama as “características do analista”, que diríamos ser a contratransferência – fator de magna importância.
Como limites da análise, Freud aponta para o complexo de castração. Ali estaria o leito duro que a análise atinge e não pode ultrapassar – a inveja do pênis na mulher e o temor à passividade e o medo da feminilidade no homem. Tais angústias e fantasias podem ser minoradas ou mais integrados , mas não ultrapassadas.
Do que foi exposto, vemos então que o grau de dificuldade de uma análise vai depender diretamente da intensidade da pulsão, das condições do ego, da gravidade dos traumas e da contratransferência do analista. Por culpa, por necessidade de punição, por agressividade voltada contra si mesmo, pela ação da pulsão de morte, muitos pacientes estão apegados ao sofrimento e não se permitem melhorar.
O livro “Ilusões e desilusões do trabalho psicanalítico” de André Green é um vasto apanhado dos avanços da psicanálise depois de Freud, cujas aquisições teóricas permitiram uma ampliação da clínica, ao lado do relato de muitos casos clínicos “difíceis”.
Green divide a psicanálise em três períodos – o “freudiano”, o “pós-freudiano” (com as escolas kleiniana, lacaniana, das relações de objeto e a psicanalise do ego de Hartimann) e o “contemporâneo” (caracterizado pela ausência de um autor que centralize a primazia, pela possibilidade de o psicanalista usar diferentes linhas teóricas, desde que mantendo-se um rigor epistemológico; nela autores como Winnicott, Bion, Green, Bollas, são referências).
Na escola freudiana, o paciente alvo é o neurótico e a abordagem técnica é aquela que surgiu com ele e se tornou clássica, caracterizada pelo silêncio do analista em atenção flutuante, a associação livre do paciente, o reconhecimento da transferência sem enfatizá-la excessivamente e a aplicação de um rigoroso critério de analisabilidade. Todas essas disposições foram radicalmente alteradas com as contribuições de Melanie Klein. De um só golpe foram introduzidos as crianças e os psicóticos no campo terapêutico, forçando amplas mudanças técnicas: a interpretação sistemática e quase exclusiva da transferência (a chamada “tradução simultânea” do dupla analítica), a relativização do silêncio do analista, um certo distanciamento da associação livre, a pouca ênfase dada à triangularidade. Os antes rígidos critérios de analisabilidade ficaram muito mais frouxos ou praticamente inexistentes. Com a psicanálise contemporânea entram em cena os pacientes borderline. Desta maneira, pacientes antes considerados inanalisáveis passaram a fazer parte da população que procura os recursos da psicanálise, ampliando o leque dos pacientes “difíceis”.
Ao abordar o que chama de “crise da psicanálise”, Green menciona a flexibilização do uso do divã e do número de sessões. Com isso a antiga divisão entre psicoterapia psicanalítica e psicanálise – que grosseiramente se baseava nessa diferença – teve sua importância relativizada.
De modo geral, esses pacientes da clínica contemporânea, os borderlines, podem ser descritos como aqueles que não atingiram a estruturação edipiana e permaneceram numa relação dual primária com a mãe, situação bem estudada por Melanie Klein (seio bom-seio mau), Winnicott (mãe suficientemente boa) e Bion (a importância da reverie da mãe). Tais pacientes têm graves danos na estruturação de seus egos dado a ocorrência de traumas precoces que levam a situações fusionais com o objeto primário, gerando problemas de identidade de difícil resolução. Se antes para Freud o leito de pedra, o limite da psicanálise se localizava no complexo de castração, agora ele retroagiu para a relação primária com a mãe.
Na transição da psicanálise freudiana para a contemporânea, como propõe Green, ressalta a crescente importância atribuída à contratransferência. Na medida em que esses pacientes estão fixados em etapas primárias, o projeto original da analise freudiana – que consistia em levantar a repressão e recuperar as memórias reprimidas – deixa de ser pertinente, na medida em que os traumas muito precoces não foram propriamente representados e simbolizados, necessitando ser não “interpretados” e sim “construídos”, como diz Freud em “Construções em psicanálise”. Por esse mesmo motivo, eles são comunicados ao analista não através de relatos verbais e sim através da relação transferência-contratransferência, via mecanismos também mais arcaicos como a identificação projetiva. Essas considerações teóricas levam à conclusão de que o mecanismo de defesa mais importante nesses casos não é a repressão e sim a ser a cisão e a negação.
Se em “Análise terminável e interminável” Freud oferece elementos que possibilitam avaliar uma análise, Green salienta a dificuldade em fazer tais avaliações, constatação que faz a partir da sua posição de supervisor.
Diz ele haver casos em que o paciente acha que sua análise está indo bem e seu analista discorda, a ponto de achar que o paciente sequer iniciou uma análise (não teria ele contato com o próprio inconsciente); há casos em que ocorre contrário – o analista acha que o paciente está evoluindo bem e ele mesmo (o paciente) se sente mal; há outros onde ambos – paciente e analista – concordam na avaliação da análise, considerando que ela vai bem ou mal, e que um terceiro – no caso o supervisor – discorda de ambos.
Ainda nesse sentido, Green nos lembra que nem sempre as análises terminam harmonicamente. Uma parcela acaba satisfatoriamente, outra sai ressentida e decepcionada, frustrada em suas expectativas, senão em franca hostilidade frente ao analista. Não é incomum que a análise seja interrompida por parte do paciente insatisfeito com os resultados obtidos.
A discrepância entre a observação de Freud e a de Green reside, a meu ver, na importância central da contratransferência do analista, que pode levar a grandes distorções na avaliação de seu próprio trabalho.
Penso que o elemento decisivo, senão o mais importante, para caracterizar o “paciente difícil”, é a contratransferência do analista. Especialmente aquela causada não pela estrutura regressiva do paciente e sim no que ele mobiliza os conflitos inconscientes do analista. Dos quatro elementos que interferem maciçamente no andamento da análise – a força da pulsão, os traumas, as alterações do ego e as características do analista, os três primeiros dependem do paciente. O último é de responsabilidade exclusiva do analista, sendo essa constatação o que impôs a necessidade de análise pessoal no processo de formação do psicanalista.
A estagnação e impossibilidade de melhorar destes pacientes “difíceis” podem ser tomados neuroticamente pelo analista como um desafio à sua capacidade terapêutica, como prova de sua incompetência, fazendo-o sucumbir às exigências excessivas de seu superego e ideal do ego. Tais pacientes podem ser vistos inconscientemente pelo analista como “filhos que não deram certo”, como diz Kancyper.
Devemos ter em mente o que disse Braatoy, analista nórdico, ao insistir que a conduta ética do analista não está centrada na obtenção do sucesso terapêutico de sua empreitada e, sim, na disposição em atender o analisando: “Por essa razão, a questão que um futuro psicanalista deveria se fazer antes de se comprometer inteiramente com a psicanálise para o resto de sua vida é: estou mesmo tão interessado em pessoas inibidas a ponto de desejar trabalhar sem sucesso com um analisando por horas, semanas, meses, anos?”. (grifos do autor) P. Atterton – “The Talking Cure: The Ethics of Psychoanalysis”- Psychoana. Rev. v.94, n.4,553-576, 2007
Para encerrar, penso que livros como “Análise terminável e interminável” e “Ilusões e Desilusões do trabalho analítico” são corajosos e necessários na medida em que não nos idealizam nem à nossa prática, reconhecem o muito que ela consegue mas não se furtam a examinar suas limitações e dificuldades. Não os vejo como pessimistas e sim realistas. Habitualmente os autores psicanalíticos se expandem em temas teóricos e muitos não mostram sua clínica. E quando o fazem, na maioria das vezes, expõem seus casos bem sucedidos. A discussão de casos clínicos – bem ou mal sucedidos – é fundamental em nossa formação contínua. No Depto. de Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae temos a revista “Percurso” e nela um seção – da qual somos editores a Paula Peron, eu e Beatriz Mendes Coroa – seção voltada exatamente ao debate clinico, no qual procuramos sempre que possível convidar analistas de escolas e instituições diferentes. Desejamos com isso possibilitar uma aproximação entre elas, ultrapassando fronteiras, ampliando a possibilidade de pensar psicanaliticamente.