Resenha de “Derrubar árvores – uma irritação” – de Thomas Bernhard, Editora Todavia, 2022

Resenha de “Derrubar árvores – uma irritação”, de Thomas Bernhard, Todavia, 2022

 

Sérgio Telles

 

Considerado um dos maiores escritores de língua alemã do século passado, a obra de Thomas Berhard (1931-1989) se caracteriza pelo tom polêmico, ácido e pessimista (o que não exclui um fino humor satírico) com que vê as relações humanas, a cultura ocidental e, especialmente, a sociedade de seu país de origem, a Áustria.

Seu DERRUBAR ÁRVORES – UMA IRRITAÇÃO ilustra bem tais características. Tendo aceitado a contragosto o convite do rico casal Auersberger – que posa de mecenas – para um “jantar artístico” em torno de um grande ator, o narrador, mudo e postado numa poltrona de orelhas, observa a chegada dos convidados e, num longo monólogo interior que se prolonga da primeira à última página, rumina obsessivamente sobre suas ligações com aquelas pessoas. A maioria delas esteve poucas horas antes no enterro de uma amiga que se suicidara. Que nessas circunstâncias o jantar não tivesse sido cancelado expõe a falsidade e a hipocrisia que serão a tônica do encontro.

Naquele momento considerado um respeitado escritor, ele recorda seu trajeto e dos demais presentes na busca do sucesso como artistas criadores e como quase todos fracassaram de forma vexatória, transformando-se em pseudo-artistas dependentes de sinecuras estatais e prêmios corruptos que avalizam sua impostura.

Talvez em decorrência de seu passado traumático de abandonos e abusos, além do acometimento de doenças graves, Bernhard mostra uma visão desesperada dos relacionamentos humanos, concebendo-os como relações fusionais destrutivas, de devoração mútua, que impõem a ruptura como única forma de sobrevivência. Para tanto, o narrador se mudara para Londres. O jantar ocorre ao voltar e a longa reflexão que desenvolve na casa dos Auersberger o faz perceber que, ao mesmo tempo em que odeia a todos ali e a si mesmo, aquelas são as pessoas que ama, o que também se dá com Viena, sua cidade querida e odiada.

Se em DERRUBAR ÁRVORES as críticas ao mundo literário austríaco se expressam como ficção, em seu livro MEUS PRÊMIOS Bernhard adota um registro documental autobiográfico, tornando-as ainda mais incisivas.

Ali ele mostra seu desprezo pelos muitos prêmios recebidos, dos quais valoriza apenas o dinheiro que várias vezes o tirou de apertos financeiros. Descarta a honraria literária, na medida em que desautoriza os premiadores, negando-lhes a capacidade para julgar seu trabalho ou de qualquer outro escritor. Na verdade, mostra a forma corrupta ou aleatória com que é escolhido o vencedor, tal como testemunhou ao participar como jurado de uma dessas premiações.

Entende que o estado ou instituição privada que dá o prêmio não tem ideia de quem é o premiado, que o faz não como um efetivo reconhecimento do talento do escritor e sim como publicidade e autopromoção com o objetivo precípuo de ocupar o lugar prestigioso de mecenas, sem falar de como as quantias que tais prêmios oferecem são ridículas, que tanto o estado como as instituições privadas poderiam, se quisessem, dar prêmios muito mais substanciosos do que os que costumam oferecer. O poder ignora e/ou despreza o intelectual, que, por absoluta necessidade, se vê obrigado a receber as migalhas que lhe são concedidas.

Bernhardt é implacável com a conivência ou subserviência dos escritores com o poder, como explicita na carta em que pede desligamento de uma academia literária porque esta aceitou como membro um ex-presidente da república. Diz ele – “Há anos me pergunto qual o sentido dessa chamada Academia de Darmstadt, e sempre me vi obrigado a dizer a mim mesmo que esse sentido não pode residir no fato de uma associação, fundada em última instância apenas com o frio propósito de oferecer a seus vaidosos membros um espelho no qual se mirar, reunir-se duas vezes por ano para se autoincensar e, depois de consumir lautos pratos e bebidas servidas nos melhores hotéis da cidade, em viagem luxuosa e cara paga pelo Estado, conversar por uma semana sobre uma papa literária insipida e rançosa….No fundo, todos esses dignatários em viagem paga pelo Estado se encontram em Darmstadt para, depois de um ano inteiro de ódio mútuo e impotente, poder, ainda ali, aborrecer uns aos outros por mais algum tempo. A tagarelice de escritores nos saguões dos hotéis de cidadezinhas alemãs é, por certo, o que se pode conceber de mais repugnante. Seu fedor, porém, torna-se ainda mais fedorento quando ela é subvencionada pelo estado”.

Bernhard pagou caro por essa e muitas outras atitudes temerárias.

Publicado no jornal Valor Econômico em 09/09/2022

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