Proust – 100 anos depois

 

Proust – 100 anos depois

 

Sérgio Telles

 

Tornar-se imortal e depois morrer, disse um dos personagens de Goddard, em seu filme “Acossados”. Sintetizava assim a posição do artista frente ao tempo: o submeter-se à finitude que ele impõe, enquanto luta pela imortalidade de sua obra, que sabe ser a ele imune.

Há 100 anos morria Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido” permanece viva e sua importância não para de crescer.

A estrutura da obra se organiza em torno de um Narrador que relata as atribulações do personagem Marcel, um apreciador das artes e frequentador assíduo da alta sociedade, que termina por encontrar sua vocação como escritor, quando decide escrever um livro que vem a ser este que acabamos de ler.

Sempre citado com reverência, a fama de Proust intimida a todos. Há um certo descrédito quando alguém diz que leu e gostou de “Em busca do tempo perdido”, como se essa pessoa, pretensiosa e pernóstica, alegasse ter feito algo muito além de suas próprias capacidades. Penso que, ainda hoje, tal afirmação é vista por muitos como uma explícita expressão de pedantismo.

Há duas formas de ler Proust. Uma é se preparar com a leitura de textos que o dissecaram, ajudando o leitor a não se perder na imensa floresta, a situar-se no emaranhado de personagens, a saber quem os inspirou e reconhecer as linhas mestras de sua estrutura. A outra é entrar sem mapa algum e seguir em frente por conta própria. Essa forma estabanada e atrevida tem suas vantagens, como a de manter o frescor da surpresa e da descoberta, além motivar o intrépido viajante a pesquisar posteriormente aquilo que lhe for necessário.

Ao contrário da intimidante fama que a cerca, a obra não é de difícil leitura. Pelo contrário, ela possui uma grande comicidade e o leitor se diverte com a ironia e sarcasmo com que Proust trata as relações pessoais, os quiproquós, os mal-entendidos, as intrigas, a bisbilhotice, as incessantes lutas de prestígio, a maledicência, as mesquinharias que ocupam aqueles que Marcel até então julgava ser a nata da sociedade, a elite, um conjunto de pessoas superiores, o suprassumo da humanidade.

Possivelmente as pequenas mesquinharias, fofocas, mexericos, intrigas que preenchem as relações da alta sociedade são as mesmas nas demais classes sociais. Revelam uma realidade humana. É a constatação de que o tempo se esvai em coisas pequenas e corriqueiras. A vida não se constitui de altas conversas filosóficas ou grandes atos heroicos, grandiloquentes, grandiosos, magníficos, que só muito poucos têm oportunidade de viver. Picuinhas, mexericos, bisbilhotices, maliciosas malevolências sobre os amigos e conhecidos, veiculam os mistérios das relações humanas, com seus aspectos sórdidos e elevados, como mostra o Narrador. No mesmo instante em que os Verdurin destroem Charlus através de calúnias e falsidades, numa vingança por terem sido sistemática e implacavelmente humilhados e esnobados por ele, dão provas de uma grande generosidade, ao socorrerem anonimamente um amigo afundado numa irreversível falência.  Frente a nossa miséria, sobra-nos o riso e a compaixão.

As relações amorosas para Proust não trazem paz ou felicidade. Centradas na impossível posse absoluta do objeto de amor, são fonte de obcecantes ciúmes, como vemos entre Marcel e Albertina, Swann e Odette, Charlus e Morel.

Vários temas perpassam a comédia humana, como o esnobismo, a sexualidade, reflexões sobre a criação artística, a memória e o tempo.

Concordo com Walter Benjamin quando diz que Proust além de ser um apologético das artes é um estudioso do esnobismo. Proust mostra que o esnobismo não é apenas uma frivolidade. Pelo contrário, é um rígido sistema de normas que estabelece – de forma sutil ou brutal – as barreiras entre as classes sociais e, especialmente no caso das localizadas no topo da pirâmide – marca as imponderáveis gradações em seu próprio interior.

Em seu livro, Proust não defende ou ataca a homossexualidade. Ele a usa como um indicador da hipocrisia da sociedade, do real funcionamento do mundo. Nesse aspecto, Proust lembra o Balzac de “Ilusões Perdidas”, quando Lucien de Rubempré ingenuamente acredita que Paris reconhecerá seu talento de escritor e só a duras penas aprende como funciona a máquina do mundo. Se Balzac mostra que o dinheiro e a corrupção que o acompanha são os motores da máquina, Proust, sem negar esses fatores, a eles acrescenta outra força poderosa, a da sexualidade e – mais ousadamente – a de uma sexualidade então proibida e execrada, mas largamente praticada justamente por aqueles que mais a condenam publicamente – a homossexualidade masculina e a feminina, Sodoma e Gomorra. Proust usa a homossexualidade para expor a hipocrisia inerente às relações sociais, como índice dos interesses ocultos que movimentam as articulações do poder.

Dimensão importante da obra são as reflexões sobre o fazer artístico. Para Proust, mostra Benjamin, isso se dá por duas vias. Uma é o esforço de transformar em linguagem as percepções e sensações que o atraem por parecerem prenhes de enigmas a serem decifrados através da escrita. Isso proporciona a criação de algo absolutamente novo, que lhe proporciona um júbilo específico. A outra é quando a criação apela para memória e executa o trabalho de recuperar do tempo perdido, num embate entre a reminiscência e o esquecimento. Nesse momento, mais melancólico e nostálgico, não há propriamente criação e sim recriação no trabalho do artista.

Proust ilustra a criação artística através da pessoa de Vinteuil. No primeiro volume vemos a figura humilde e apagada do músico, um pobre professor de música, que compunha quase em segredo, camuflada e cladestinamente, sofrendo a perda da mulher e o lesbianismo da filha, que os expunha a um ostracismo social. Não obstante, ele compõe uma sonata na qual sobressai um trecho (uma “frase”) com  um especial poder de provocar evocações, tanto assim que se transformara no “hino nacional” que celebrava o amor de Odete e Swann no círculo dos Verdurin, que não tinha ideia alguma sobre quem a compusera. Anos depois, Marcel ouve não mais a sonata, mas uma versão mais extensa dela sob a forma de um septeto, na qual reconhece a famosa “frase”, mas constata uma grande alteração na estrutura da composição, que atinge agora admirável complexidade e profundidade. Aquilo antes apenas insinuado na sonata original agora se desdobrava plenamente, exibindo uma poderosa e abrangente envergadura. Morto anos antes, Vinteuil voltava à vida naquele momento, evidenciando o contraste entre a finitude do artista e a imortalidade da obra. Distante do grande mundo, dos grandes salões ocupados na interminável maledicência e esnobismo, vivendo em absoluta obscuridade social, Vinteuil tinha produzido uma obra prima que beneficiava toda a humanidade. De sua obra, deixara anotações dispersas e descuidadas que facilmente poderiam ter-se perdido, não fora o trabalho da antiga amante da filha, que, num esforço de reparação da culpa pelas profanações que antes fizera à sua memória, recuperara e devolvera ao mundo uma obra que de outra forma estaria perdida para sempre. A imortalidade da obra não está garantida de antemão, tem que ser conquistada. Ela também pode perecer, caso não seja protegida e cuidada adequadamente em seu nascedouro.

O Narrador mostra os sinuosos caminhos percorridos entre a produção da obra de arte e seu reconhecimento final. Para sobreviver e atingir o público que a entenda adequadamente, ela tem de vencer muitos empecilhos, que incluem passagens ignominiosas, como as profanações à memória de Vinteuil realizadas pela filha e sua amante e a escusa paixão de Charlus pelo violinista Morel. Visando promovê-lo na alta sociedade, Charlus organiza uma apresentação do septeto e convida as pessoas certas. Ou seja, não visava divulgar a obra e sim agradar o amante e garantir suas atenções. O sublime da arte transcende as constrangedoras contingências humanas, mas essas podem impedir seu pleno desabrochar.

Finalmente chegamos ao tema que dá unidade à obra – o tempo. Caso o leitor seja como o intrépito viajante mencionado no inicio, ele em um grande choque no último capítulo, ao ver que Mme. Verdurin, que no início da narrativa era o polo oposto desprezado, ridiculizado, rejeitado pelos excelsos Guermantes, representantes do nec plus ultra aristocrático, termina por se casar com o Príncipe de Guermantes, transformando-se, consequentemente, na Princesa de Guermantes. Essa inesperada guinada no enredo, que mostra a maestria narrativa de Proust, evidencia de forma irrefutável uma outra característica do tempo. Se antes descobria sua permanência, como no sempre lembrado episódio da “madeleine”, agora Proust enfatiza o contrário – seu poder transformador, que tudo muda. Da mesma maneira, a norte-americana presente numa das últimas recepções dos Guermantes e que não tem a mais remota ideia das sutis gradações de poder, prestígio, fama, dinheiro daquelas pessoas que ali estão, nem as convenções do esnobismo que as regiam, é uma outra demonstração de que aquele mundo se acabava para sempre com a Primeira Guerra Mundial.

A impossibilidade de estabelecer rígidos limites entre passado e presente aproxima Proust de Freud. Para ambos, o passado permanentemente invade o presente. A diferença entre eles é que para Proust essas invasões, que se manifestam através da “memória involuntária”, são felizes e prazerosas. Para Freud, as invasões do passado são quase sempre desprazerosas, na maioria das vezes traumáticas e dolorosas.

A psicanálise mostra que vivemos num tempo suspenso, cercados pelas percepções do presente, mas assombrados por fantasmas de um mundo passado que não cessam de nos importunar.

Uma explicação para a diferença de enfoque entre Proust e Freud é dado por Hanna Segall, psicanalista kleiniana.

Melanie Klein mostrou que as primeiras relações do bebê com a mãe se dão num clima de grande turbulência. Lutando com a sensação de desamparo, o bebê se apega à mãe com voracidade ou a ataca ao sentir que ela não o atende a contento. Como decorrência, faz fantasias de tê-la destruído nos momentos em que a atacou e teme que ela se vingue e o ataque de volta. A fantasia de ter destruído o objeto (a mãe) é fonte de grande culpa, depressão e paranoia. Constatar que o objeto (a mãe) continua vivo, que não foi destruído pelos ataques, é fonte de grande prazer e satisfação.

A partir desses conceitos kleinianos, Segall considera a obra de Proust como uma longa e minuciosa reparação do objeto atacado. Em sendo assim, o aspecto jubiloso da “memória involuntária”, deve-se não propriamente ao reencontro com o tempo supostamente perdido, e sim ao reencontro com o objeto que se temia não apenas perdido, mas destruído em função da destrutividade nele descarregada.

A interpretação de Segall sobre a obra de Proust pode ser estendida a toda criação artística. Ela estará sempre ligada inconscientemente à reparação dos objetos atacados ou perdidos. A própria sensação estética de completude e harmonia expressa o desejo de ter o objeto plenamente reparado.

Talvez o transporte espiritual que a obra de arte nos proporciona, ao  nos tirar da miséria do dia a dia e nos elevar para uma outra dimensão onde se desenrola a “verdadeira vida” se deva ao reasseguramento que ela nos proporciona ao mostrar que, na permanente luta entre as pulsões de vida e de morte, ela, em si, é uma prova inconteste da vitória da criação sobre a destruição.

Publicado no jornal Valor Econômico em 18/11/2022

 

 

 

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