MISTURA FINA

Mistura Fina, SÉRGIO TELLES

MISTURA… (EXCERTO)

GOSTA DE POESIA?

Sérgio Telles

O homem vinha distraído pela Paulista, a cabeça longe, preocupado. Tantos problemas, dificuldades. Consolava-se pensando que a vida é assim mesmo – dura, não é fácil para ninguém.

– Gosta de Poesia?

O vento que vinha lá de baixo, da Avenida 9 de Julho, passou pelo grande espaço aberto e foi descabelar as árvores do Parque Siqueira Campos. No vão do MASP, o rapazinho olhava sorridente para ele, com um punhado de folhetos na mão.

– Gosta de Poesia?

O homem parou para pensar. Será que gostava de poesia? Era uma pergunta inesperada e de difícil resposta. Provavelmente não gostava. Havia anos que não lia uma poesia. Às vezes, via as trovas que um vizinho teimava em lhe mostrar, apontando para a página do jornal de Guaratinguetá onde tinham sido publicadas. Gostava de poesia? Possivelmente sim. Lembrava muitas poesias de cor, do tempo do colégio. Não esquecera a professora de Português que lhe insuflara o amor por Gonçalves Dias, Augusto dos Anjos, Raul de Leoni e tantos outros. Mas tudo isso estava muito longe, esfumaçado. Pertencia a um outro mundo, diferente deste onde vivia, onde a realidade lhe ensinara que se ele quisesse algo da vida, teria de conquistá-lo com esforço, palmo a palmo. E ele tinha conquistado. Estudos, carreira, família, tudo com sua respectiva carga de alegrias e sofrimentos.

– E então, não gosta de poesia?

O homem viu a juventude do rapazinho e teve inveja. O que entenderia de poesia ele que lhe fazia a embaraçosa pergunta? Era tão verde, tão inexperiente. Parecia não ter perdido ainda nenhum de seus sonhos, ainda acreditava que facilmente os concretizaria. Parecia não ter tido ainda nenhum encontro com as arestas do lado áspero da vida. Julgava-se um artista, um poeta, por estar ali na porta do MASP vendendo seus escritos, como se a vizinhança prestigiosa de tantas valiosas obras de arte automaticamente avalizasse a qualidade de sua produção.

Artigo

FÁBIO LUCAS

MISTURA FINA, DE SÉRGIO TELLES

“Sérgio Telles, nas poesias, nas crônicas e nos contos, tece uma série de poemas-existência, decorrentes da experiência pessoal não transformados, todavia, em puro objeto da representação, mas indicativos da intencionalidade do “eu lírico”, na variedade e indeterminação dos significados do eu.”
Fábio Lucas

Mistura Fina, de Sérgio Telles, começa e termina bem, desde o título à última linha. A “mistura fina” indica a combinação de contos, crônicas e poemas, tudo na mesma obra. Informa, de certa forma, acerca da com-fusão dos gêneros, fenômeno contemporâneo, nesta época de crise franca da representação na textura literária. E, principalmente, convida o leitor à reflexão sobre o agente enunciador na obra de invenção.

Além do mais, diante da experiência de Sérgio Telles, somos levados a meditar sobre a eficácia da escrita na instalação do ser. O autor, como é sabido, é médico psiquiatra, de formação psicanalítica, e experimentado ficcionista. Seu texto congrega as duas funções históricas, herdadas da velha retórica grega: a de deleitar e a de instruir. E, incorporando a tradição moderna, que vem desde o Século das Luzes, qualifica o discurso antropocêntrico. E o que se percebe dos contos, das crônicas e dos poemas.

O primeiro conto, “Legado”, é um belo exemplo. O narrador domina a cena familiar e mostra ao leitor uma das virtudes do ficcionista: o uso da pergunta como processo cognoscitivo, uma espécie de abertura para a paisagem do entendimento do mundo. Testemunha e aquece o relacionamento humano.

Em outras ocasiões, Sérgio Telles usará o recurso da pergunta ora para humanizar a situação, ora para exprimir o contraditório. Ora, talvez, em certos casos, como veículo de informação.

As questões, não raro, integram o soli1óquio emocional da personagem, como ocorre no relato “Trabalhos manuais”: “No final da adolescência, Maneco se angustiava quando, por acaso, o (o trabalho manual) encontrava entre seus pertences. Pensava – será que as coisas cuja realização valorizo atualmente passarão pelo mesmo processo sofrido pela capa do álbum? Chegará um dia em que, constrangido e embaraçado com suas parcas qualidades, as verei como uma modesta realização, desajeitadas tentativas de conseguir algo cujo sentido está para sempre perdido? Será que as enxergarei tal como vejo essa rosa sobre o veludo vermelho?”.

O mesmo se insere na crônica “Falando sobre fila”, em que o narrador dispõe uma série de perguntas consecutivas, das quais a última culmina em: “Deve-se interromper a conversa animada dos velhinhos com as caixas ou levar em conta que são pessoas solitárias que possivelmente estão tendo naquele momento sua única oportunidade para conversar com alguém?” Vê-se logo que a questão é mais do que expositiva, é avaliativa, contém uma resposta implícita.

Outro aspecto: o que une os textos, em prosa ou em verso, é a dimensão lírica. Gostaríamos de chamar a atenção para esse índice de modernidade, muito bem explorado por Käte Hamburger, no capítulo “O gênero lírico” de A lógica da criação literária (S.Paulo, Ed. Perspectiva, 1975, trad. de Margot P. Malnic).

Ali se explora o conceito de lirismo existencial, germinado na ciência literária alemã. Designa o lirismo do sentimento pessoal, diferente daquele originário da convenção, herança formal e social das épocas anteriores. A “vivência” congrega todos os processos da consciência (percepção, imaginação, conhecimento, etc) e sua experiência, equiparada à vivência, aponta para a intencionalidade, consciência de algo, ou seja, vivência existencial.

Käte Hamburger, baseada na Fenomenologia de Husserl, diz expressamente: “o sujeito-de-enunciação lírico não faz do objeto da vivência, mas da vivência do objeto, o conteúdo da enunciacão.” (ob.cit.,p.199).

O que desejamos enfatizar é que Sérgio Telles, nas poesias, nas crônicas e nos contos, tece uma série de poemas-existência, decorrentes da experiência pessoal não transformados, todavia, em puro objeto da representação, mas indicativos da intencionalidade do “eu lírico”, na variedade e indeterminação dos significados do eu. Assim, todos os textos, de certo modo, testemunham o lírico como enunciador da realidade, isto é, manifestação do sujeito real.

A tudo isso se agrega a dimensão humanística como fonte do olhar e da observação que captam a externalidade e fecundam a opinião. Daí o número de personagens marginalizadas, crianças e velhos desprotegidos, de desempregados e de profissionais sem qualificação.

Grande parte das crônicas, na aparente feição de registro do cotidiano e de seus aspectos efêmeros, guarda uma dimensão reflexiva. Vejam-se “Os jorros do Ibirapuera” e “Uma inocente prática sado-masoquista”.

Os contos, em menor quantidade, trazem a marca de um ficcionista de pulso: “Legado”, “O casal que dança”, “Ilustres visitantes”…

E os poemas? Face ainda não bem conhecida de Sérgio Telles, trazem a virtude da contenção verbal, juntamente com a força evocativa. Veja-se o denso texto de “Sem rumo”, assim como o exígio suporte de “Momento”. Não lhe falta o selo bem-humorado da irreverência: “Sagrado”.

Mencionemos o poder de evocação de diversos textos de Sérgio Telles. Esse é um dos traços imprescindíveis da arte, segundo o demonstrou Georg Lukács na sua Estética. E o autor de Mistura Fina não deixa de usar os diferentes marcos da memória a fim de redesenhá-los em palavras escritas, discursos de forte intencionalidade lírica. A todo momento, o leitor, sabidamente alimentado pelos acidentes da vivência urbana de São Paulo, não deixa de deleitar-se com os signos, ora disfarçados, ora explícitos, das lembranças juvenis do Ceará, formadoras do adulto Sérgio Telles, que as trouxe consigo e as converteu em emoção literária.

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