Escrever em corpos, escrever no papel

ESCREVER EM CORPOS, ESCREVER NO PAPEL – Algumas idéias em torno de O LIVRO DE CABECEIRA (The Pillow Book, 1996), de Peter Greenaway

Peter Greenaway é um dos maiores criadores do cinema atual. De sua instigante obra, o filme “O livro de cabeceira” (“The Pillow Book”, 1996) ilustra com muita acuidade questões próprias à linguagem, como a representação e a simbolização.

Ao comentá-lo, deixo de lado seus extraordinários aspectos cinematográficos e me restrinjo àqueles que iluminam nosso conhecimento psicanalítico.

Nesta abordagem, mantenho-me na trilha que venho seguindo, há algum tempo, na leitura psicanalítica de filmes (Telles, 2004) e que Gabbard explicita bem quando diz:

(…) esperamos ilustrar o potencial do pluralismo na crítica psicanalítica de cinema. Baseamos nosso trabalho (…) nos conceitos derivados de um largo espectro de escritos clínicos psicanalíticos. Como o clínico que adota diferentes posições teóricas de acordo com as necessidades dos diferentes pacientes, usamos uma variada gama de perspectivas para iluminar uma quantidade de filmes marcadamente diferentes. Enquanto a abordagem lacaniana produziu intrigantes relatos de filme enquanto processo, estamos mais interessados nos filmes em si – em seus textos, subtextos, temas e personagens. Cada filme convida diferentes níveis do poder explanatório de uma variedade de formulações teóricas ( Gabbard, 1999, p. 201-2).

Apresento uma sinopse do filme e, em seguida, alguns comentários interpretativos.

Sinopse do filme

Nos aniversários da menina Nagiko Kiohara cumpre-se um ritual. Seu pai, escritor e calígrafo, escreve o seguinte texto em seu rosto e nuca: “Quando Deus fez o primeiro modelo de barro do ser humano, pintou-lhe os olhos, os lábios e o sexo. E então pintou o nome da pessoa, temendo que ela pudesse esquecê-lo. Se aprovasse sua própria criação, Deus daria vida ao modelo de barro pintado ao assinar sobre ele seu próprio nome”.

Aos quatro anos, Nagiko vê pela primeira vez o pai em práticas homossexuais com seu editor.

Aos seis anos, a tia lhe fala de Sei Shonagon, uma extraordinária mulher que vivera quase mil anos antes e escrevera um livro, o “Livro de Cabeceira”. Com isso, a tia procura estimular Nagiko a também escrever um diário

No dia em que começa a escrever seu diário, Nagiko conhece seu futuro marido, sobrinho do editor de seu pai. Fora encontrar o pai na gráfica e ali, mais uma vez, percebe o envolvimento sexual do pai com o editor.

Para seu desgosto, o editor freqüenta sua casa e, numa ocasião, toma o pincel do pai e tenta, ele mesmo, escrever a frase ritualística, o que Nagiko recusa.

O casamento de Nagiko com o sobrinho do editor se realiza com grande pompa, mas logo fracassa. O marido se recusa a reproduzir o gesto paterno de escrever-lhe a frase no rosto em seu aniversário e, posteriormente, a ridiculariza por suas ambições literárias. Queima seu diário em meio a grandes exibições como arqueiro, atirando setas num alvo.

Como vingança, Nagiko incendeia a casa e foge para Hong Kong, onde passa a exercer funções humildes antes de trabalhar como designer e, posteriormente, como modelo de moda. Sozinha, constata ser impossível escrever sobre si mesmo a frase paterna. Passa a procurar escritores e calígrafos para escreverem sobre seu corpo os mais variados tipos de ideogramas, pagando seus serviços com relações sexuais.

Numa ocasião, tendo seu corpo coberto de ideogramas, Nagiko se deixa fotografar por um profissional que por ela se apaixona, sem reciprocidade de sua parte. Em sua busca, Nagiko termina por encontrar Jérôme, poliglota, escritor e tradutor inglês, que atende a seu pedido de escrever sobre seu corpo e, diferentemente dos demais, pede que ela escreva sobre o corpo dele, o que Nagiko inicialmente recusa. Declara só ter prazer quando escrevem em seu corpo. Jérôme insiste, dizendo: “use meu corpo como uma página de um livro”. Posteriormente, mergulhada na banheira de casa, Nagiko, meditativa, escreve no espelho embaçado “trate-me como a página de um livro”. Pensa: “Agora serei também o pincel e não mais só o papel” e passa a escrever sobre corpos masculinos.

Ao terminar sua primeira escrita sobre um homem, chama o fotógrafo e ele decide copiar o texto escrito e mandá-lo para um editor, que vem a ser justamente o antigo amante do pai de Nagiko, naquele momento morando também em Hong Kong. Para a grande decepção de Nagiko, o editor recusa o texto, dizendo não valer ele o papel no qual está escrito.

Sem se identificar, Nagiko vai à gráfica do editor e – para sua surpresa – vê Jérôme saindo de seu escritório e, tal como presenciara anteriormente com o pai, constata haver uma ligação erótica entre eles.

Disposta a honrar o pai tornando-se escritora, Nagiko não desiste. Uma amiga sugere que seduza o editor para conseguir a publicação de seu livro. Reflete que como não pode seduzir o editor homossexual, só lhe resta seduzir o amante do editor.

Jérôme aceita sua proposta, dispondo-se a servir como mensageiro, levando para o editor o texto que Nagiko escrevera em seu próprio corpo.

O editor fica encantado simultaneamente com o corpo de Jérôme e o texto de Nagiko nele escrito. Manda seus secretários copiarem o texto e, em seguida, vai para a cama com Jérôme.

Jérôme não retorna para Nagiko como ela esperava, permanecendo por um longo tempo com o editor.

Enciumada, Nagiko passa então a procurar outros homens para escrever em seus corpos e enviá-los para o editor. Faz assim cinco novos livros-corpos, o que, por sua vez, provoca ciúmes em Jérôme.

Nagiko rechaça a tentativa de reaproximação de Jérôme, que procura então se aconselhar com o fotógrafo. Este, de certa forma agindo como Iago, sugere a Jérôme que, para facilitar a reaproximação e punir Nagiko pela rejeição, encene um suicídio como em “Romeu e Julieta”. Para tanto, dá a Jérôme os comprimidos a serem ingeridos.

Não fica claro se, por ciúmes, o fotógrafo deliberadamente provoca seu envenenamento ou se isto ocorre por acidente, o fato é que a tentativa causa a morte de Jérôme, para desespero de Nagiko.

Sobre seu corpo morto, Nagiko escreve um poema de amor.

No enterro, Nagiko encontra a mãe de Jérôme, que expressa sentimentos muito ambivalentes em relação ao filho.

Informado pelo fotógrafo, o editor toma conhecimento da morte de Jérôme. Desesperado, viola seu túmulo e rouba seu cadáver. Retira sua pele, na qual está escrita a poesia de Nagiko, separando-a do resto de suas carnes, e com ela faz um livro. Usa o livro como um objeto erótico, envolvendo seu próprio corpo com as páginas feitas com a pele do amante morto.

Ao saber do fato, Nagiko resolve resgatar o livro-pele de Jérôme e para tanto volta a escrever, completando, desta forma, um total de treze livros escritos em treze diferentes corpos masculinos enviados ao editor.

Nagiko escreve em lugares inusitados do corpo de seus mensageiros, forçando o editor a procurar o texto, como nas pálpebras, língua, entre os dedos, etc.

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