Resenha do livro “Se a Rua Beale falasse”, de James Baldwin – Sérgio Telles

“Se a rua Beale falasse”, de James Baldwin (*)

Sérgio Telles

Autor de romances, peças, ensaios e poesia, James Baldwin é uma figura relevante na literatura e na luta pelos direitos civis encetada especialmente nos anos de 1960 e 1970, época turbulenta que consolidou a conscientização dos negros norte-americanos no combate ao racismo. Naquela ocasião surgiram os movimentos dos Panteras Negras e o Black Power, e foram assassinados grandes líderes, como Martin Luther King e Malcolm X.
Havia muito autoexilado na França, Baldwin se sente convocado pela luta de seus irmãos e retorna aos Estados Unidos, participando ativamente dos protestos, fazendo conferências em universidades, aparecendo na mídia com escritos e entrevistas sempre que solicitado.
A militância política de Baldwin pode ser vista no documentário I am not your negro (2016) do diretor Raoul Peck, baseado num manuscrito que deixou inacabado e disponível nas plataformas de streaming.
Seu romance de 1974, “Se a Rua Beale falasse” (que deu origem a um filme homônimo com três indicações ao Oscar desse ano) mostra a violência social através de um recorte privado – a luta desesperada da humilde família de Tish para livrar seu noivo Fonny da prisão, onde aguarda julgamento por uma acusação forjada de estupro. Por essa via, Baldwin denuncia a truculência policial, as prisões imotivadas e a conivente apatia jurídica frente a tais abusos. Evidencia também a secreta dimensão erótica do racismo, que vê os corpos negros como perigosas máquinas libidinosas, estupradores e prostitutas.
A questão central do livro – a agressão da polícia e o encarceramento arbitrário (racista) dos negros – mantem-se extremamente atual. Se naquela ocasião já era calamitosa, como denunciou Angela Davis, ativista negra que passou dois anos num presidio, só fez piorar desde então, como mostra Márcio Macedo, em ensaio incluído no livro. Diz ele: “De acordo com os dados do Bureau of Justice Statistics, em 2016 havia mais de 2 milhões de presos, entre homens e mulheres(…). Entre os encarcerados, há uma super-representação de negros e latinos: os negros compõem 36,1% do total de encarcerados, mas representam apenas 13% da população estadunidense, enquanto os latinos são 21,9% do total de encarcerados e constituem 17% da população americana” (p.212-3). Algo que talvez nos ajude a desidealizar o grande irmão do norte, e vermos que não é só no Brasil onde a justiça tem uma predileção especial por pretos, pobres e putas.
O julgamento de Angela Davis teve imensa repercussão e fez com que John Lennon e Yoko Ono lhe dedicassem uma canção (“Angela”), assim como os Rolling Stones (“Sweet Black Angel”). Baldwin, que era seu amigo, escreveu-lhe uma carta publicada no New York Review of Books, “An open letter to my sister, Miss Angela Davis”. Ali Baldwin compara as prisões norte-americanas a campos de concentração para negros e termina por dizer que brancos e negros são igualmente massacrados por um poder espúrio, que visa exclusivamente o lucro, como mostravam os mortos brancos e negros da Guerra do Vietnam, então em pleno andamento.
“Se a Rua Beale falasse” ressalta a questão da obra engajada, armadilha fatal para muitos escritores, que, no empenho de defender determinadas causas, terminam por produzir tediosos catecismos panfletários. Não é o caso de Baldwin, que vence tais perigos ao construir personagens psicologicamente densos e pelo olhar crítico que dirige não só aos brancos mas também à própria comunidade negra, como se vê no trecho em que descreve de forma irônica a involuntária comicidade de um culto religioso, no qual duas mulheres disputam, com cantos gritados e gestos exagerados, o posto de ser a mais fervorosa do grupo (p. 30-4).
“Se a Rua Beale falasse” é uma declaração da força e resistência do povo negro norte americano, que mesmo confinado em guetos e sofrendo humilhações infindáveis, não se deixou abater e foi capaz de criar, entre outras tantas coisas, uma música extraordinária. Não é à toa que no livro ressoam o blues, o spirituals, o soul e o jazz nas canções de Ray Charles, Billie Holliday, Marvin Gaye, Aretha Franklin, B.B. King.

(*) – Publicado no suplemento EU&FIM DE SEMANA, do jornal “Valor Econômico” – 01/02/2019

Compartilhe nas redes

Facebook
Twitter
LinkedIn