Posto De Observacao – Reverberacoes Psicanaliticas Sobre Cotidiano, Arte E Literatura

Posto De Observacao – Reverberacoes Psicanaliticas Sobre Cotidiano, Arte E Literatura

Sérgio Telles, psicanalista e escritor, comenta a cena sociocultural de forma perspicaz e pertinente, usando o referencial psicanalítico com uma linguagem clara e precisa, que estimula a inteligência e a sensibilidade do leitor. Os textos apresentados neste livro foram publicados em diversos periódicos, especialmente nos suplementos “Cultura”, “Sabático”, “Aliás” e “Caderno 2” do jornal O Estado de S. Paulo. A abordagem original e a amplitude das ilações fazem com que os textos gozem de permanente atualidade.

RESENHAS

Fernanda Fazzi – Associações em torno do livro “Posto de Observação”, publicado na revista Percurso no. 60 – junho 2018

As diversas manifestações do psiquismo humano dão notícias do inconsciente, desde singelos
lapsos e atos falhos, até sofisticadas produções culturais, que podem ser capturados por uma
escuta sensível e um olhar atento. Psicanalistas, dentro ou fora do consultório, seguem algumas
pistas dos sujeitos ou mesmo de suas manifestações culturais e artísticas, buscando os sentidos e
o desvendar dos enigmas dos diversos estados mentais.
Alguns psicanalistas são também artistas que espiam e brincam com as fendas de acesso ao
inconsciente. Por trás dos mistérios das palavras, não raro, estão as satisfações de desejos
inconscientes do escritor. As metáforas, as metonímias e tantos outros disfarces suavizam as
possíveis aproximações das fantasias mais arcaicas dos escritores, permitindo um distanciamento
entre artista e obra.
Sérgio Telles tem uma relação preciosa com as palavras. Se a arte é indissociável da cultura,
Telles é indissociável da escrita. A relação íntima com a linguagem o acompanha no seu percurso
como psicanalista e escritor, autor de diversos livros de psicanálise e literatura. Teoria e criação
parecem brincar de costura, traçando, recortando e dando pontos de uma forma única e
instigante.
As observações atentas do psicanalista sobre ética e política trazem chaves significativas para a
compreensão dos fenômenos atuais. Assim, não é de se espantar que a escrita desenvolta de
Sérgio Telles em Posto de observação: reverberações psicanalíticas sobre o cotidiano, arte e
literatura dê vitalidade ao pensamento psicanalítico nos textos publicados no jornal O Estado de
S. Paulo nos cadernos Aliás, Cultura, Sabático e Caderno 2. Os textos sociais de Sigmund Freud O
futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar na civilização (1930), Totem e tabu (1913) e Psicologia
das massas e análise do eu (1921) permeiam toda a obra, alinhavando os eixos de referência do
autor.
O refinado talento de Telles para abarcar com profundidade a realidade psíquica, as aflições e os
conflitos nos faz lembrar, a todo instante, que a cultura dá cores e formas para as tantas
manifestações que emergem na consciência individual e social, fruto de um tempo e de uma
história da qual pertencem. Ainda que o tratamento psicanalítico alivie os sintomas e atenue o
sofrimento, carregaremos sempre uma dose de mal-estar.
Como evidencia Sérgio Telles, traços perversos e pouco definidos, em momentos de tensões,
podem aflorar de modo a não suportar quem não é igual. Desse modo, em seu avesso,
a harmonia, a semelhança e a igualdade dão amostras de agressividade diante da ameaça do
outro. Discutindo casos violentos e bizarros que causaram grande espanto e polêmica, Sérgio
Telles mostra que a psicanálise encontra sentido na desrazão, trazendo aproximações com as
questões mais arcaicas que em todos nós habitam.
Telles nos faz entender os processos inconscientes implicados nos laços sociais fundantes da
cultura, encarando a opacidade constituinte dos sujeitos, salientando a dimensão imaginária do
narcisismo e seu correlato, a agressividade. A ilusão da correspondência mútua dos desejos,
espelho de similitudes sem ambivalências, marcas deixadas e nunca totalmente abandonadas
pelo narcisismo, leva à briga por idênticos. Ao esbarrar no narcisismo das pequenas diferenças,
compreende-se que as guerras, as segregações, o bullying e as tantas manifestações da
intolerância evidenciam as dificuldades de suportar as ambivalências amor e ódio, o que muito
contribui para a compreensão dos eventos sociais contemporâneos.
Diante de um inimigo comum, aquele estranho que é diferente e, por isso mesmo, inassimilável
por sua falta de igualdade, leva à coesão do grupo frente à exclusão de um rival. Historicamente,
as lutas pelo poder e dominação de povos estabeleceram a questão colonizador-colonizado, assim
sintetizada nas palavras do autor: “Os colonizadores projetaram nos povos ‘primitivos’ uma
violência e uma selvageria (simbolizada pela antropofagia) que exerceram com uma
destrutividade muito mais potente, em função de uma superioridade tecnológica” (p. 182). Ou
seja, a imposição dos padrões culturais e o exercício do poder dos países colonizadores sobre os
colonizados adquiriram uma conotação antropofágica, na medida em que praticamente
exterminaram os povos que supostamente iriam civilizar. Buscando compreender a relação dos
povos colonizados com o colonizador, o autor questiona se este ocupou efetivamente o lugar de
pai e portador da Lei e as possíveis formas de identificações envolvidas.

Sérgio Telles centra algumas discussões sobre a lei da castração, evocando questões sobre o
Complexo de Édipo e o parricídio nas versões do pai trazidas por Freud: Édipo Rei (Sófocles),
Hamlet (Shakespeare), Pai da Horda e Moisés.
Em um dos seus textos, constrói observações sobre a angústia de castração com o sintoma do
Koro, manifestado pelos povos africanos e asiáticos. Os acometidos desse sintoma sentem uma
angústia intensa diante da aflição de uma possível retração de seus órgãos genitais, sendo
afetados ao ponto de não o verem nem o sentirem, ainda que nenhum exame clínico confirme
alguma alteração orgânica do órgão em questão. A etimologia da palavra Koro não é qualquer
uma. Com a origem malaia, a palavra Koro significa cabeça de tartaruga, referindo-se,
justamente, à metáfora da retração da sua cabeça ao casco. Como aponta Telles, “os órgãos da
percepção perdem a sua função quando invadidos por desejos inconscientes” (p. 226),
demonstrando, assim, a universalidade dos desejos inconscientes e as suas diversas roupagens.
Se a angústia de castração recai sobre o significante do falo, trazendo à tona as questões da
diferença sexual, meninos e meninas não somente atravessam a trama edípica de modo
diferente, como também não reconhecem a castração da mesma forma. Considerando o percurso
edípico como fundamental para o sujeito organizar sua personalidade psíquica ao se ver frente
não somente aos enigmas da diferenciação entre os sexos, mas, sobretudo, diante da angústia de
castração, Sérgio Telles traz discussões sobre o desconcerto provocado pelo quadro de Gustave
Coubert A Origem do Mundo (1866). Sem mitigar, a pintura coloca o enigma da diferença sexual
de forma visceral e (des)nudada, acarretando, como mostra Telles, “o efeito perturbador sobre
nós, como algo arcaico de tempos imemoriais que nos atingem profundamente, sem que
possamos evitar”. Criatividade ou destrutividade? Quanto desse infantil ainda faz pulsar no pintor
e em cada um de nós?
O declínio do Édipo e a angústia de castração acontecem em um só tempo no menino, enquanto,
na menina, o enigma da feminilidade ganhará força na puberdade. A angústia produz seus
efeitos: o menino aceita a interdição da mãe como objeto de desejo e reconhece a lei paterna,
investindo, posteriormente, a sua libido em identificações e tendo o Supereu com herdeiro da
travessia do Édipo. Como mostra o autor, o pavor da castração não passou despercebido pelos
artistas. Buscando apreender o abismo psíquico e explorar sentidos que transcendem a razão,
Telles reflete acerca da dimensão psíquica rica e ambígua da pintura Cabeça de Medusa (1597)
de Caravaggio. Quão tênue é a linha que separa a Medusa dos homens? O impacto, aqui, não
parece outro senão da dimensão do terrível e do mortífero que a todos assombra.
Telles aponta como o infantil do artista parece impregnar suas obras, trazendo à tona questões
muito primitivas e, de alguma forma, familiares aos sujeitos de diferentes culturas e tempos
históricos. Condensações, deslocamentos e figuras de linguagem dão vivacidade às experiências
que mobilizam os artistas e fornecem material para sua criação. A partir de textos emblemáticos
de Freud como O Moisés de Michelangelo, Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen e Escritores
criativos e devaneios, Sérgio Telles alinhava aproximações entre arte e psicanálise. Na sua
escolha de obras artísticas a serem interpretadas, o psicanalista privilegia criações preciosas,
enigmáticas e pungentes que convidam ao encontro com as manifestações do inconsciente em um
só tempo.
Além disso, o autor estabelece preciosas articulações entre as obras artísticas apresentadas,
a história da arte (momentos e contexto sociocultural aos quais pertenceram) e aspectos
biográficos do autor, o que muito ajuda o leitor curioso a acompanhar as interpretações
psicanalíticas propostas. Não à toa, Sérgio Telles escolhe com atenção os detalhes a serem
recortados das obras artísticas. Que sofrimentos e segredos podem esconder as delicadas
bailarinas de Edgar Degas? Quais os destinos do Retrato de Adele Bloch-Bauer I de Gustav Klimt
durante e após o Nazismo?
Costura, ainda, ponto por ponto, até chegar a questões significativas que parecem tocar na vida
subjetiva íntima do artista em questão, ampliando assim perspectivas sobre a criação de sua
obra. Por que as sensações despertas por John Singer Sargent ao pintar As filhas de Edward
Darley Boit, exposto em 1883, deram voz aos comentários quatro cantos e um vazio? Quais
possíveis relações familiares orbitam os quadros do ilustrador e pintor francês Édouard Vuillard?
Da mesma forma, o conto O artista da fome de Franz Kafka (1883-1924), como Sérgio Telles bem
o mostra, talvez se relacione de perto com o lado mais sinistro do escritor tcheco, uma
estranheza familiar que o assombra no momento de sua morte. A análise de Telles nos remete à
dissipação das fronteiras entre fantasia e realidade, evocando um retorno pouco convidativo de
algo que deveria permanecer oculto, mas que volta com sede de elaboração. Inquietantes
estranhamentos e seus duplos não passam despercebidos ao autor, mostrando que há um conflito
de imagem e identidade, unheimlich.
A estranheza e a beleza provocada pelo cinema também não escapam aos olhos atentos de
Telles, lembrando o leitor sobre as aproximações possíveis entre os sonhos e os filmes, que muito
nos dizem, na sua linguagem predominantemente visual, do trabalho do sonho. Com
sensibilidade, Sérgio Telles tece comentários, bem como contextualiza social e politicamente,
os filmes Cisne Negro (2011) de Darren Aronofsky, o documentário Pina (2012) de Win Wenders e
o Filme socialismo (2010) do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard.
A inspiração literária de Sérgio Telles e sua busca por desvendar as formações inconscientes nos
fatos da cultura e nas obras de arte constroem uma narrativa em que a Psicanálise e a Literatura
andam de mãos dadas em uma indissolúvel união. O requintado dinamismo psíquico dos
personagens de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) revela aproximações surpreendentes com o inconsciente. Não por acaso, Freud inquieta-se com a brutalidade dos desejos e a intensidade
pulsional dos personagens dostoievskianos, bem como o masoquismo e o ideal cristão como saída
frente ao desamparo. Considerada como a obra mais célebre por Freud, Os irmãos Karamázovi o
inspiram a escrever o texto Dostoiévski e o parricídio em 1928, onde a própria pulsão assassina
aparece, sem disfarces, nos três irmãos. Não somente a complexidade da realidade psíquica dos
personagens de Dostoiévski evidencia a sensibilidade clínica do autor russo, como também não
hesita em caracterizar os seus personagens sem cinismo, mostrando, por vezes, a dimensão mais
nua e crua da alma humana. O escritor russo também não escapa ao posto de observação de
Sérgio Telles. O psicanalista conversa com o livro de Heitor O’Dwyer Macedo[1] sobre as suas
análises das obras Memórias do subsolo, Crime e castigo e O duplo, dialogando com a afirmação
do psicanalista D. W. Winnicott de que a psicose estaria mais próxima da saúde psíquica do que
dos ideais da normalidade.
Refletindo sobre as dificuldades da clínica na atualidade, Sérgio Telles analisa o risco de a
psicoterapia ser tratada como um item de consumo, correspondendo a uma lógica de mercado
que visa, a qualquer custo, negar as impossibilidades dos sujeitos. Frente ao contexto
mercadológico contemporâneo, como mostra o psicanalista, há uma aproximação perigosa do
tratamento medicamentoso com o objeto fetiche, levando, não raro, ao excesso desnecessário
de medicação psicotrópica no tratamento de sofrimento psíquico e de distúrbios mentais.
Dialoga, também, com as contribuições de Renato Mezan e Christian Dunker sobre a história e a
prática da psicanálise, mostrando que, na sua condição de rompimento e descontinuidade das
lógicas do marketing, o método de escuta criado por Freud continua compreendendo a alma
humana.
Sobre o trabalho analítico, Sérgio Telles se inspira nos relatos da poetisa, romancista e
memorialista Hilda Doolittle (1986-1961), analisada por Freud nos períodos de 1933 e 1934: “De
fato, resgatar as ‘crianças vivas’, simultaneamente vítimas e algozes, que vivem no inconsciente
de cada um é uma tarefa de libertação e superação da psicanálise”[2]. Daí que o livro Posto de
observação de Sérgio Telles convida o leitor, a todo instante, a (des)costurar ou a (des)construir
pontos de observações fixos, como sujeitos mais livre das amarras, dos ideais e das expectativas
sociais de seu tempo.

Resenha de Ricardo Trinca, sobre POSTO DE OBSERVAÇÃO, publicada na Revista Brasileira de Psicanálise – junho 2019

Após ficar intrigado com o título do livro de Sérgio Telles, encontrei na terminologia militar que um posto de observação pode ser compreendido como qualquer posição previamente determinada a partir da qual é possível fazer certas observações. Um posto de observação pode inclusive ser móvel, ou seja, ser uma posição que facilite a apreensão de um conjunto de situações ou de paisagens que a observação imóvel não seria capaz de revelar. Um avião que realiza um sobrevoo, por exemplo, pode ser considerado um posto de observação móvel; sua função, nesse caso, é observar e transmitir informações relevantes para um objetivo estratégico, seja defensivo, seja exploratório, na forma de um sobrevoo panorâmico. Fiquei também sabendo que um posto de observação, além de precisar apreender informações, deve também saber passá-las adiante – observações de alguém que necessariamente está em uma posição avançada, e por isso mesmo arriscada -, para outras pessoas distantes (nesse caso, os leitores). Não é casual, portanto, a escolha desse título, pois é exatamente disso que se trata o livro de Sérgio Telles Posto de observação: reverberações psicanalíticas sobre cotidiano, arte e literatura.

O leitor, que às vezes se sente como um companheiro de posição, de sobrevoo, às vezes permanece como o soldado distante que receberá as informações daquele que está na linha de frente, é convidado a usar emprestado esse mesmo e ótimo binóculo do autor, que revela uma visão arguta e precisa para a descrição de inúmeros horizontes culturais, realizada sempre a partir de uma posição específica: a da observação psicanalítica. Essa é, na verdade, a explicação possível para que o título esteja no singular, e não no plural. O posto de observação é baseado nessa posição psicanalítica, da qual o autor não arreda o pé.

O livro reúne 77 artigos escritos desde 1999, a grande maioria deles de sua época de colunista no “Caderno 2” do jornal O Estado de S. Paulo, em que Telles mantinha um espaço quinzenal. Uma quantidade maior de seus escritos foi realizada nessa época, entre 2011 e 2013. Trata-se, acredito, de um livro simultaneamente heterogêneo e homogêneo. Sua heterogeneidade decorre do fato de ser uma compilação de artigos sobre temas diversos, que vão desde textos puramente psicanalíticos até crônicas cotidianas e resenhas de filmes e livros. Sua homogeneidade diz respeito ao fato de Telles manter-se sempre em sua linha mestra: realizar registros de interpretações da sociedade, da cultura e da arte. Trata-se, assim, de um gênero psicanalítico peculiar (certamente originado dos textos de Freud sobre cultura), que expande a psicanálise para um olhar avançado sobre horizontes que vão muito além da clínica psicanalítica. São textos realizados de forma exemplar, pela prevalência do assunto em questão e pela desimportância da pessoa do observador, que pode sumir para deixar aparecer o que realmente importa: o fato de que a natureza humana se revela onde não imaginaríamos que se revelasse.

Nesse sentido, ressalto a relação entre o escritor Sérgio Telles e o psicanalista, pois ambos parecem estar articulados e aliados. Digo isso porque o que realmente se destaca neste livro é como os assuntos observados transformam-se por meio de uma psicanálise “implicada” (utilizando um jargão de Renato Mezan, que consta em um dos artigos do livro), pelo “envolvimento ativo do analista com aquilo que aborda” (p. 269), sem que o psicanalista seja destituído pelo escritor, ou vice-versa. Ou seja, nestes artigos vemos um psicanalista/escritor tanto inteiramente implicado com suas observações quanto felizmente desaparecido enquanto pessoa, em prol da apreensão dos dinamismos inconscientes que vão sendo observados nos assuntos abordados. É interessante constatar isso mesmo nas poucas crônicas em que Telles escreve em primeira pessoa.

São muitos os artigos que merecem ser citados nesta resenha. Alguns me tocaram por sua delicadeza, como “O nome do pai” e “Trotando no Ibirapuera”, em que Telles escreve de maneira muito livre, com uma prosa elegante e simples, fazendo com que o leitor simplesmente seja levado por meio de crônicas cotidianas, através de sua naturalidade, a pensar sobre aspectos não observados da natureza humana. No primeiro discorre sobre a angústia infantil acerca do nome do próprio pai, e no segundo sobre o hábito de balançar os braços durante o caminhar, assuntos que, se não trazem interesse especial para o leitor à primeira vista, são belamente abordados por Telles como curiosidades que falam da natureza humana mediante detalhes que não costumam ser destacados.

Em outro artigo, somos levados a mirar os conflitos íntimos entre a mãe e a irmã de Édouard Vuillard (1868-1940), pintor e ilustrador francês, retratados delicadamente por ele e captados pela lente precisa de Sérgio Telles. Em “Marcel Proust e sua mãe”, o assunto da intimidade familiar retorna. Em poucas linhas, o autor faz uma interessante descrição da relação entre Proust e a mãe, que culminou, após a morte dela, na doação, por parte de Marcel, da mobília da mãe para o prostíbulo masculino que ele frequentava. Telles destaca os conflitos homossexuais do escritor e a agressividade familiar em torno da questão sexual como fontes de uma série de comportamentos violentos do escritor. Já em outro artigo encontramos os manginas, homens que escondem o pênis e os testículos entre as coxas e são fotografados assim, a fim de simular um púbis feminino. Nesse artigo, nos deparamos com a ideia de que, ao se fotografar assim, esses homens “brincam com as diferenças anatômicas entre os sexos e com vários níveis de angústia de castração” (p. 35).

Em outros textos, Sérgio Telles vai em busca de mais detalhes – detalhes que poderiam passar desapercebidos pelo observador comum, mas que, se investidos pelo olhar interpretativo (que se utiliza do conhecimento psicanalítico), revelam facetas de situações até então marginais como partes centrais de uma história. Isso acontece, por exemplo, no artigo sobre o caso Durst. Trata-se de uma história de assassinato em que a necessidade de punição, como forma de aliviar a culpa inconsciente anterior do assassino, aparece como decisiva para a compreensão do caso.

Além disso, alguns artigos versam também sobre política. Em “Mandar ou obedecer”, “Mensalão, assunto incontornável: pedido de socorro”, “Garota na chuva: Steve Jobs”, bem como em “Política e mentiras” e “Sobre a tortura”, o autor faz registros que já podemos dizer serem de época, procurando discutir assuntos que estavam na capa dos jornais de então. No entanto, com o olhar psicanalítico mostram-se extremamente atuais, revelando ser a repetição de conteúdos não elaborados, que de modo recorrente voltam para uma (possível) reelaboração em nossa cultura: propinas, torturas, relações escusas entre política e judiciário etc.

Em “W G. Sebald e as lembranças de guerra”, a dificuldade de elaboração é novamente abordada por Telles, que procura descrever como a literatura produzida na Alemanha entre 1930 e 1950 não representou os acontecimentos daquele período, o que ocorreu “pela própria condição traumática dos eventos em jogo, a violência vivida e a dificuldade em representá-la, levando à ausência de simbolização característica que envolve as grandes tragédias e catástrofes”, e também pelo fato de que “a vergonha e a culpa compartilhada por todos levou à negação, impedindo a expressão literária dessa realidade insuportável” (p. 264). Sem dúvida, trata-se de um tema sempre atual, que serve para pensar não só tragédias historicamente caracterizadas como tais, mas também histórias não relatadas, como inúmeras vividas pela sociedade brasileira, desde o tráfico negreiro e a escravidão até o genocídio de inúmeros povos indígenas no coração de nosso país.

Justamente em tempos em que a escuta psicanalítica precisa ser renovada para a apreensão dos acontecimentos políticos e sociais, a leitura deste livro faz ver, de maneira clara e lúcida, como a psicanálise é feliz enquanto instrumento de apreensão dos fenômenos sociais inconscientes, desvelando seu funcionamento aparentemente incompreensível. Não seria assim pelo fato de que os conflitos dinâmicos inconscientes estariam presentes na nossa sociedade e cultura como precipitados de experiências humanas primitivas? Como diz o autor em um artigo sobre um livro de Renato Mezan (“Renato Mezan e os desvãos da psicopatologia social”):

O pensamento psicanalítico poderia enriquecer o debate das grandes causas que movem a sociedade. … Uma das formas de exercer essa participação no debate público é a análise aplicada. … Essa análise permite que o público veja em ação o pensamento analítico, ao elaborar hipóteses e produzir sentido onde antes prevalecia a perplexidade ante o aparentemente inexplicável. (p. 268)

É exatamente dessa matéria que este livro é constituído, repleto de concisas formulações interpretativas.

Trata-se de uma obra oportuna e necessária para nosso meio psicanalítico, que traz a mensagem da possibilidade de gerar e utilizar nosso conhecimento para além da sessão, a fim de oferecê-lo ao grande público (e também ao público psicanalítico) como uma ampliação do olhar sobre o mundo e a cultura. Precisamos certamente de mais psicanalistas que, como Sérgio Telles, estejam implicados nessa oportuna tarefa. Este livro de Telles, que é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde coordena o grupo Psicanálise e Cultura e faz parte do corpo editorial da revista Percurso, não é o primeiro. Publicou também Fragmentos clínicos de psicanálise (2003), O avesso do cotidiano (2014) e Mistura fina (2004), uma coletânea de contos, crônicas e poemas.

Por Ricardo Trinca

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