“Pecados do mundo”, de Sérgio Telles, reflete sobre vida e morte

“Pecados do Mundo” reflete sobre vida e morte
Psicanalista Sérgio Telles reúne contos que se destacam pela maturidade
Por Gonçalo Junior, para o jornal Valor (publicado em 14/11/2019)

A morte parece ser uma obsessão para o escritor e psicanalista Sérgio Telles. Pelo menos é o tema que praticamente une todos os contos do ótimo “Pecados do Mundo”.
Autor de vários livros de psicanálise e literatura e colaborador do “Valor”, o autor chama a atenção pela maturidade com que constrói histórias instigantes em que existir e morrer rendem momentos de marcante emoção ou reflexão, sem cair em discussões teóricas na área profissional em que atua.
Dois exemplos são o longo “Adeus em Salas Magnificas” e o breve conto-poema “Previsão”, que se poderia chamar de um epitáfio ou “canto para minha morte”. O tema é predominante também em “Diário de Bordo” e “A Última Vez que Minha Mãe Morreu”. Neste, ele escreve: “Prometi-lhe então que choraria no avião, no momento solene da decolagem, quando cessam todas as conversas, e, tendo como única companhia o medo, seguimos todos com atenção redobrada o barulho dos motores em esforço máximo, torcendo para que o milagre aconteça mais uma vez e o monstro de aço levante voo e não se esborrache no chão, cortando abruptamente nossa incerta caminhada por esse vale de lágrimas”.
Em “Serão Todos Príncipes?”, Telles não se afasta do tema e ainda traça um retrato familiar quase claustrofóbico: “Minha família é como um povo primitivo com costumes bárbaros, que adora deuses cruéis sedentos de sacríficos inúteis. Somos uma espécie em extinção, regida pela auto-destrutividade. Possuídos por um desvairado desapego à vida, caminhamos despreocupados rumo ao abismo, sem que nada possa nos deter. Tudo isso me envergonha e atemoriza”.
E completa: “Quando meu pai se matou, nenhum de nós se surpreendeu e muito menos lamentou. Já foi tarde, disse meu irmão mais velho. Finalmente teríamos um pouco de paz sem seus ataques de fúria, sem sua terrível violência. Estar com meu pai era um constante tormento”.
Para o contista, “lembranças se rebelam contra o esquecimento, insistem em se fazer recordar, desencadeiam fortes sentimentos contraditórios que lutam permanentemente dentro de mim, me inundam em gigantescas ondas negras, sufocam minha alma, não deixam espaço para mais nada”. Nesse desespero de viver, a vida, muitas vezes, pode-se tornar insuportável. Se não bastassem as incertezas de conviver com a morte a cada instante, os relacionamentos, principalmente os familiares ou amorosos, pioram tudo.
Em um universo existencialista, marcado pela dissimulação, o que passa pela cabeça dos mais íntimos parentes ou amigos pode ser algo bem desagradável. Defeitos, falhas e paranoias costumam estar acima das melhores impressões que se espera causar, observa Telles.
O olhar atento do contista, treinado para adentrar mentes alheias a partir do seu ofício, permitiu-lhe ressaltar, de modo mais instigante, pequenas tragédias que se manifestam em momentos de tensão ou pressão, de onde sobressaem histórias das mais trágicas, cujos protagonistas nem sempre se dão conta disso.
Os contos de Telles não têm cunho moralista e o final menos importa, porque as situações parecem longe do fim – não raro, terminam abruptamente sem qualquer prejuízo do que se quer mostrar. Ao contrário. Como o caso do bêbado que aparece numa festa de aniversário infantil acompanhado de um estranho ou o homem que agoniza com doença terminal. Em todas as histórias, alguém vive atormentado por uma situação desconfortável de fazer, falar ou pensar, em que a morte costuma ser o elemento central.
Fazer o trivial na escrita é algo que parece simples. Na prática, porém, torna-se ainda mais desafiador, pois não é fácil dominar por completo uma narrativa, a ponto de fazer a leitura fluir de modo natural, quase como um rio de água cristalina. No caso de Telles, é o leitor maduro que se soma ao escritor experiente e erudito, que superou o pedantismo da escrita para construir tramas em que o fim é o encantamento da leitura, o prender de modo instigante até a última linha.
Em “Um Ar Embalsamado”, um dos melhores contos do livro, carregado de erotismo e nostalgia tipicamente masculinos, ele faz isso de modo arrebatador. Em outras tramas, o contista é sensível às delicadezas, como a relação entre um homem e uma mariposa do outro lado do vidro.
Há contos curtíssimos, pequenas obras-primas, como “Metafísica”, que trata sobre o que fazer com o sabonete que está no fim. Suspense e humor permeiam várias histórias, às vezes com reviravoltas surpreendentes.A saudade é um elemento importante na construção das tramas – leia “Coisa de Louco”.
Telles dá ao leitor o que ele tanto busca em um livro de ficção: diversão, humor, surpresa e reflexão, com uma escrita acima da média.

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