DIÁRIO DA REGIÃO

A arte imita a vida…… e a vida imita a arte
São José do Rio Preto, 27 de março de 2005
Orlandeli/Editoria de Arte

Fabiano Ferreira

07:00 – O professor usa métodos de ensino diferentes para incentivar seus alunos a transgredir o pensamento; o marido fica atordoado depois que a mulher lhe diz que sentiu atração por outro homem; uma família com valores desfacelados vive mal e atolada na hipocrisia; e mulheres em tempos diferentes se dividem entre o amor e a conquista de independência. Você, provavelmente, conhece ou já vivenciou situações semelhantes a estas histórias. Se ainda não refletiu sobre elas e nunca ousou pensar em seus desdobramentos, pode fazê-lo com a ajuda da Sétima Arte. Basta ir até a locadora mais próxima e levar para casa fitas como “Sociedade dos Poetas Mortos”, “Tudo Sobre Minha Mãe”, “De Olhos Bem Fechados”, “Beleza Americana” e As Horas”, cujas tramas foram descritas acima.

Os filmes têm muito a nos ensinar. Seja pelos dramas universais que abordam ou pelo comportamento dos personagens, as produções cinematográficas oferecem um amplo espaço para a discussão e interpretação de diferentes realidades, principalmente a partir de filmes do gênero drama. E essa intelecção entre a arte e a realidade (e vice-versa) foi o ponto de partida para um estudo feito pelo psicanalista Sérgio Telles, que resultou no livro “O Psicanalista Vai ao Cinema” (Casa do Psicólogo/Edufscar). Cinéfilo de carteirinha, Telles analisou 29 filmes e uma peça de teatro à luz da psicanálise e descobriu aspectos enigmáticos.

Para ele, cinema e psicanálise introduzem novas formas de apreender o discurso narrativo. “O cinema possibilita uma nova forma de ver o homem e o mundo. Através dos movimentos da câmera, com seus closes, sua grande angular e seus campos e contra-campos, desvendam-se imagens inacessíveis ao olho nu. A psicanálise, por sua vez, inaugura uma nova forma de ouvir o ser humano. E a escuta analítica, ao privilegiar o lapso, o engano, os erros e tudo aquilo que é desprezado pela consciência, descobre uma via de acesso para o inconsciente, o que só traz ganhos.

A comparação entre o close da câmera do cinema e a intepretação psicanalítica tem outro elemento importante. Ao se deter num detalhe insignificante e despercebido da imagem, a câmera desvenda um segredo ou abre caminho para uma outra cena, da mesma forma como a escuta psicanalítica, ao se deter no lapso, tem acesso à dimensão inconsciente do psiquismo. E com esse mecanismo, com histórias e personagens diversos, é que o espectador pode aprender e, quem sabe, até mudar a maneira como lida com os próprios problemas e com a realidade.

Aprenda com estes filmes:

>> As Horas (2002)
:: Em três períodos diferentes vivem três mulheres ligadas ao livro “Mrs. Dalloway”. Em 1923 vive Virginia Woolf (Nicole Kidman), autora do livro, que enfrenta uma crise de depressão. Em 1949 vive Laura Brown (Julianne Moore), uma dona-de-casa grávida que mora em Los Angeles. Nos dias atuais vive Clarissa Vaughn (Meryl Streep), uma editora de livros que vive em Nova York.

>> A Sociedade dos Poetas Mortos (1989)
:: Em 1959, na Welton Academy, uma tradicional escola preparatória, um ex-aluno (Robin Williams) se torna o novo professor de literatura, mas logo seus métodos de incentivar os alunos a pensarem por si mesmos cria um choque com a ortodoxa direção do colégio, principalmente quando ele fala aos seus alunos sobre a “Sociedade dos Poetas Mortos”.

>> Tudo Sobre Minha Mãe (1999)
:: No dia de seu aniversário, Esteban (Eloy Azorín) ganha de presente da mãe, Manuela (Cecilia Roth), uma ida para ver a nova montagem da peça “Um bonde chamado desejo”, estrelada por Huma Rojo (Marisa Paredes). Após a peça, ao tentar pegar um autógrafo de Huma, Esteban é atropelado e termina por falecer. Manuela resolve então ir de encontro ao pai, que vive em Barcelona.

>> De Olhos Bem Fechados (1999)
:: Bill Harford (Tom Cruise) é casado com a curadora de arte Alice (Nicole Kidman). Ambos vivem o casamento perfeito até que, logo após uma festa, Alice confessa que sentiu atração por outro homem no passado e que seria capaz de largar Bill e sua filha por ele. A confissão desnorteia Bill, que sai pelas ruas de Nova York assombrado com a imagem da mulher nos braços de outro.

>> Beleza Americana (1999)
:: Lester Burham (Kevin Spacey) não agüenta mais o emprego e se sente impotente perante sua vida. Casado com Carolyn (Annette Bening) e pai da “aborrecente” Jane (Tora Birch), o melhor momento de seu dia é quando se masturba no chuveiro. Até que conhece Angela Hayes (Mena Suvari), amiga de Jane. Encantado com sua beleza e disposto a dar a volta por cima, Lester pede demissão e começa a reconstruir.

Divulgação

Psicanalista Sérgio Telles: incursão no cinema e na psicanálise

Filmes são fonte para o autoconhecimento
Há quem vá ao cinema por puro entretenimento, sem se preocupar com mensagens subliminares das tramas. Mas há também quem aprecie a Sétima Arte por um ângulo diferente e aproveite as histórias para discutir, promover uma intelecção com a realidade. Independente da intenção, ir ao cinema vale pela possibilidade de conhecer diferentes histórias e poder aprender com elas. O psicanalista Sérgio Telles, que analisou 29 filmes, falou esta semana com o Diário sobre a relação entre cinema e realidade.

Veja a entrevista:

Diário da Região – Temos muito a aprender com os filmes?
Sérgio Telles – Sim. Na medida em que os bons filmes – assim como os bons livros – mostram personagens interagindo em situações conflitivas, podemos apreender as motivações inconscientes de seus comportamentos, suas ações. Isso pode fazer com que ampliemos o conhecimento sobre nossas próprias reações emocionais, nossas formas de lidar com os relacionamentos pessoais e suas complicações.

Diário – A escolha de um título ou mesmo a preferência por um gênero tem alguma relação com nossa personalidade ou atitude?
Telles – Sim, nossa subjetividade transparece em toda e qualquer escolha que fazemos. Cada um de nós estabelece associações livres muito específicas e pessoais a partir do que é percebido na realidade. É por isso que algo pode chamar intensamente a atenção de uma pessoa e passar inteiramente despercebido para uma outra.

Diário – Um filme tem o poder de mudar comportamentos? Quando nos reconhecemos na tela podemos nos sentir estimulados a mudar?
Telles – É possível que ao assistir um filme, ou ler um bom livro, alguém passe a se entender melhor na medida em que reconhece suas próprias fantasias, desejos e conflitos em algum personagem e observa a forma com a qual ele lida com esses elementos. Sempre que nos compreendemos melhor, podemos mudar nossas atitudes e comportamentos.

Diário – Dos filmes que o senhor analisa no livro, qual a história ou personagem que mais encontra respaldo na realidade atual?
Telles – Falando de modo geral, os filmes que escolhi expressam conflitos humanos universais. Assim, penso que todos eles encontram respaldo na realidade.

Diário – A partir de que momento o senhor resolveu fazer estas leituras psicanalíticas sobre os filmes?
Telles – Sempre tive três grandes paixões intelectuais – a literatura, o cinema e a psicanálise. Meu primeiro texto publicado na imprensa foi justamente a resenha do filme Hud (“O Indomado”), de Martin Ritt, com Paul Newman, por volta de 1962. Fazer leituras psicanalíticas de filmes sempre foi uma coisa automática e espontânea para mim. O fato de escrevê-las e publicá-las atende ao objetivo de divulgar o conhecimento psicanalítico para o grande público. Gostaria que com meu livro o popular bordão “Freud explica” ficasse justificado. Ou seja, espero que as pessoas entendam como o psicanalista interpreta situações e comportamentos humanos tidos como incompreensíveis ou “loucos”, revelando seu significado até então ignorado por todos.

Diário – O cinema reflete a realidade ou ocorre o contrário?
Telles – Acho que toda grande arte reflete a vida e a ilumina, proporcionando um enriquecedor benefício àqueles que dela se aproximam.

Diário – Em seu livro, o senhor analisa mais filmes do gênero drama. Eles são os que contêm mais aspectos do comportamento humano? E dos demais gêneros, como suspense, ficção científica, por exemplo?
Telles – Efetivamente, há uma preponderância do gênero dramático nos filmes que escolhi. O drama proporciona a criação de personagens e situações complexas, ricas do ponto de vista psicológico. Os demais gêneros, como o suspense ou a ficção científica, se aproximariam mais do mero entretenimento.

Diário – Quais os principais estereótipos analisados em seu livro?
Telles – Não trato de estereótipos. O que me interessa é justamente aquilo que foge do estereótipo, do comum, do banal e que, por esse motivo, é incompreendido e confundido com “loucura”. Escolhi filmes que são originais e criativos exatamente por mostrarem personagens ou situações que fogem do lugar comum e seguem uma lógica diferente da habitual.

Diário – Há pessoas que gostam de cinema para discutir, analisar e filosofar. Outros têm o cinema como puro entretenimento. O aproveitamento que se faz das mensagens de um filme é muito diferente nestes dois casos?
Telles – Acho que sua pergunta remete à diferença entre a grande arte e o entretenimento. A grande arte aborda as magnas questões da existência humana – a vida, a morte, o sofrimento, o gozo. Muitas vezes ela é incômoda, difícil, questionadora e provocante. Por isso mesmo causa um impacto enriquecedor para os que podem dela se apropriar. O entretenimento é mero passatempo, divertimento sem maiores pretensões. Mas há tempo para os dois. É bom ver um filme enigmático, que te provoca intelectualmente, que desafia tua inteligência e aguça tua sensibilidade. Mas também é gostoso dar boas risadas com uma comédia ou morrer de medo num filme de terror.

Diário – Que lições podemos tirar de filmes como “Cidade de Deus” e “Bicho de Sete Cabeças”, os dois únicos filmes brasileiros que o senhor analisa no livro?
Telles – São filmes importantes, marcas da retomada do cinema nacional. “Cidade de Deus” fala da criminalidade potencializada pelo narcotráfico nas favelas cariocas usando uma linguagem cinematográfica extraordinária, nova, explosiva, impressionante. “Bicho de Sete Cabeças”, ao denunciar o preconceito e o mau uso da psiquiatria, transcende esses objetivos e traça um bom perfil da classe média brasileira nos anos 70, 80.

Diário – A apreensão do conteúdo de um filme muda muito quando o espectador vai para o cinema munido de informações sobre a produção, tendo lido matérias e entrevistas, se comparado ao que vai para o cinema atraído pelo nome do filme ou porque ouviu falar que é bom?
Telles – É uma faca de dois gumes. É verdade que se você vai assistir a um filme munido de informações sobre o mesmo e conhecendo a opinião da crítica, poderá aproveitá-lo melhor, debater com os aspectos apontados pelos conhecedores, concordar ou não com a visão proposta por eles. Mas também é verdade que você perde a oportunidade de ver o filme com seus próprios olhos. Se você me pedisse uma opinião, eu diria que o melhor é você se informar dos melhores filmes, assisti-los e somente depois ler as críticas especializadas. Isso permite um confronto entre o que você achou e o que a crítica opinou.

Diário – Fora os filmes que o senhor analisa no livro, quais mais o marcou?
Telles – Recentemente, respondi a uma enquete da revista 2001 (www.2001video.com.br) nomeando meus cinco melhores filmes. São: 1) “Jules et Jim”, de Truffaut, um digno representante da Nouvelle Vague, cuja importância para todos nós cinéfilos brasileiros não pode ser esquecida. “Jules et Jim” é uma maravilhosa mistura poética sobre a juventude, o amor e amizade, a vida e a morte, a guerra e a História; 2) “Amacord”, de Felinni, que mostra o mundo feliniano em seu brilho maior – o absolutamente pessoal e regional alçado à universalidade, a memória como fonte inextinguível da arte; 3) “Morangos Silvestres”, de Bergman, com o jovem Bergmam revelando sua força nessa delicada meditação sobre o encontro entre a juventude e a velhice, numa declaração de amor à vida; 4) “Annie Hall”, de Woody Allen”. Nenhum cineasta soube retratar a moderna neurose urbana e a onipresente influência da psicanálise na cultura como Woody Allen; 5) “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha”, com a invenção do Cinema Novo, a criação de uma mitologia nossa, expressa numa estética tão revolucionária quanto seu projeto político e – finalmente – um “hors concours” – “O ano passado em Marienbad”, de Alain Resnais. Uma beleza pura, ousadia máxima na falta de concessão e exigência ao espectador, um fascinante enigma metafísico sobre o tempo, a presença, o amor.

Diário – O senhor vai regularmente ao cinema? Tem preferências?
Telles – Vou sim e vejo de tudo, mas prefiro dramas e comédias.

Diário – Dos filmes indicados ao Oscar deste ano, como “Menina de Ouro”, “O Aviador” e “Ray”, por exemplo, o que o senhor tem a dizer? Eles também têm mensagens importantes?
Telles – “Menina de Ouro” tem o grande mérito de abordar a eutanásia, um assunto de máxima importânci, muitas vezes obstruído por uma visão estreita da religiosidade. “O Aviador” e “Ray” são cinebiografias de personalidades extraordinárias, que enfrentaram grandes dificuldades para conseguir seus objetivos e venceram.

Diário – Qual o significado da capa do seu livro, que traz a foto de cadeiras de cinema vazias, mas a obra tem o título “O psicanalista vai ao cinema”?
Telles – Acho bastante perspicaz esta pergunta, pois escolhi pessoalmente a foto e organizei a composição da capa. Como você menciona, a foto mostra as cadeiras vazias de um cinema, voltadas para o lugar onde estaria a tela, de onde o fotógrafo as capturou com sua objetiva. Ao escolher essa foto, tinha em mente o contraponto de olhares que ela supõe – o olhar da platéia, voltado para a tela /fotógrafo e o olhar do fotógrafo / tela voltado para a platéia. Representa os espectadores se reconhecendo no que se passa na tela cinematográfica. A tela é um espelho onde eles se vêem. Por outro lado, ao pegar o livro, o olhar fantasmagórico da platéia vazia olha para o leitor, que, por sua vez, ao olhar de volta para a platéia vazia, boiando ambos numa atmosfera onírica, pouco realística, nela se sente mergulhar. O vazio inquietante da foto começa a ser ocupado pela curiosidade do leitor que logo o preencherá com suas fantasias e desejos. Foi por esse motivo que propositadamente evitei fotos de filmes para a capa ou mesmo para o miolo do livro. A foto ainda faz menção ao olhar (escutar) do analista, olhar que ocupa vários lugares, sem se fixar a nenhum – ora está na platéia, ora está na tela, ora no fotógrafo, ora na máquina que bate a foto. É um olhar (escutar) especialmente atento ao vazio de sentido, vazio esse que ele procurará preencher com significados.

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