Por Patrícia Karam
JOP – Cinema e psicanálise são contemporâneos. Que associação pode ser feita entre os dois a partir dessa contemporaneidade?
Sérgio Telles – O cinema e a psicanálise introduzem novas formas de apreender o discurso narrativo. O cinema inaugura uma nova forma de ver o homem e o mundo. Através dos movimentos da câmera cinematográfica, com seus closes, sua grande angular, seus campos e contra-campos, desvendam-se imagens inacessíveis ao olho nu. A psicanálise, por sua vez, inaugura uma nova forma de ouvir o ser humano. A escuta analítica, ao privilegiar o lapso, o engano, os erros, tudo aquilo que é desprezado pela consciência, descobre uma via de acesso para o inconsciente, desbravando um novo continente psíquico. É nesse sentido que Walter Benjamim equipara o close da câmera com a interpretação psicanalítica. Ao se deter num detalhe insignificante e desapercebido da imagem, a câmera desvenda um segredo ou abre caminho para uma outra cena, da mesma forma como a escuta psicanalítica, ao se deter no lapso, tem acesso à dimensão inconsciente do psiquismo.
Além do mais, o cinema ao se expressar através de imagens, cria uma extraordinária proximidade com o que Freud chamou de “a via régia para o inconsciente”, ou seja, o sonho, que também se expressa numa linguagem visual.
JOP – Em seu livro, o senhor aborda 29 filmes, que vão de títulos declaradamente comerciais como “Uma Babá Quase Perfeita” a obras de diretores polêmicos, a exemplo de “Histórias Proibidas”, de Todd Solondz. O que esses longas têm em comum do ponto de vista psicanalítico?
Sérgio Telles – Os filmes sobre os quais escrevo mostram personagens nos quais, de forma clara para um observador psicanalítico, a presença e a força de conflitos inconscientes desempenham decisivo papel em seus destinos sem que disso eles tenham clara consciência, como era de se prever. É verdade que a hilariante comédia “Uma Babá Quase Perfeita”, de grande e merecido apelo popular, dá margem, com surpreendente acuidade, a considerações sobre as disfunções familiares, as dificuldades no exercício das funções paternas e maternas por parte dos adultos responsáveis, além de ilustrar a figura teórica da “mãe fálica”. Solondz, por sua vez, aborda o mesmo tema, as patologias familiares, o narcisismo, embora que noutro diapasão, bem distante da comédia.
JOP – O jornalista Luiz Carlos Merten diz, na apresentação do livro, que um dos seus méritos é privilegiar diretores e filmes que não costumam ser analisados psicanaliticamente. Mas que cineastas, além dos presentes no livro, melhor abordaram a psicanálise no cinema?
Sérgio Telles – Uma coisa é falar de diretores cujas obras não costumam ser analisadas psicanaliticamente e outra é falar de diretores que melhor abordaram a psicanálise no cinema.
No primeiro caso, de fato, dou preferência a autores diferentes de Alfred Hitchcock ou Ingmar Bergman, cujos filmes já foram objeto de muitas interpretações psicanalíticas. Prefiro falar daqueles que não são costumeiramente objeto de tais análises. Entretanto, a rigor, qualquer filme poderia ser objeto deste enfoque, desde que apresente personagens e seus relacionamentos afetivos com alguma profundidade.
No segundo caso, é incontável o número de filmes nos quais psicanalistas ou psicoterapeutas e seus pacientes aparecem como personagens, ou ainda cujos roteiros se baseiam em pressupostos psicanalíticos. A obra de Woody Allen, por exemplo, é bem ilustrativa disso.
JOP – Na sua resenha sobre “A Estrada Perdida”, de David Lynch, o senhor fala de uma das metáforas mais caras ao cinema: a estrada. Em que sentido o filme subverte essa metáfora?
Sérgio Telles – Considero a filmografia de Lynch uma das mais estimulantes dos últimos tempos. Seu filme “A Estrada Perdida” é excepcional. Ali ele subverte não só a surrada metáfora da estrada enquanto abertura para o mundo, na medida em que sua estrada não leva a lugar nenhum, como também subverte todos os códigos narrativos aos quais estamos acostumados. Lynch não deixa nada firmemente estabelecido. A própria identidade dos personagens é fluida, mutável , inconstante – quer seja no aspecto psíquico como no físico (o mesmo personagem pode ser representado por diferentes atores, por exemplo). As noções de tempo e espaço também são inusitadas, surpreendentes. Aliás, como “A Estrada Perdida” só pode ser compreendido na cena final, quando se evidencia sua estrutura circular – e mais não digo para não estragar o prazer de quem não o viu até o momento – isso o caracteriza como uma boa ilustração do conceito freudiano de “Nachtraglichkeit”, a re-significação a posteriori, ou seja, o aparecimento de um detalhe na narração que provoca uma nova e inesperada significação da mesma.
JOP – O senhor vai na contramão das análises de “As Horas” e identifica o personagem Richard como o central da trama. Por quê?
Sérgio Telles – Penso que entender “As Horas” como uma reflexão sobre a condição feminina espelhada na história de três mulheres vivendo em épocas diferentes é limitar-se ao sentido mais explícito e superficial, o equivalente a entender um sonho atendo-se ao conteúdo manifesto. Como digo no livro, a descoberta da identidade do poeta Richard re-significa todo o enredo, dando-lhe uma nova compreensão. É um outro exemplo do “Nachtraglichkeit” freudiano.
JOP – Uma das principais fontes do cinema é a adaptação de obras literárias. Em que casos, os roteiristas conseguem ir além da adaptação e realizam uma transcriação?
Sérgio Telles – Ao adaptar um romance para o cinema, roteirista e diretor transpõem para o registro predominantemente visual aquilo que pertence ao campo da linguagem escrita. Essa passagem de uma linguagem a outra forçosamente cria uma obra diferente da original e freqüentemente a trai, na medida em que não mantém sua excelência estética. Penso que há uma transcriação quando original e adaptação se equiparam, sem demérito para nenhuma das partes. É o que ocorre com “As Horas”, excelente filme feito de um romance excepcional.
JOP – Jacques Derrida, em entrevista à revista “Cahiers du Cinema” diz que todo espectador, durante uma sessão de cinema, põe-se em contato com um trabalho de inconsciente que, por definição, pode ser assimilado ao trabalho de obsessão de Freud. Queria que o senhor discorresse sobre o assunto.
Sérgio Telles – Derrida equipara as imagens cinematográficas aos espectros. Esses espectros seriam como que vestígios, traços mnêmicos a evocar a memória de acontecimentos e fantasias para sempre presentificados, a assombrar obsessivamente o sujeito. Daí a sensação do “Unheimlich”, do “estranhamente familiar” que o espectador sente no cinema, pois ele é levado a confundir seus próprios espectros com as imagens da tela.
JOP – Para Glenn Gabbard existem sete maneiras de abordar psicanaliticamente o cinema. Na sua opinião, quais seriam as maneiras de abordagem?
Sérgio Telles – Glenn Gabbard, autor do livro “Psychiatry and the Cinema” e editor do International Journal of Psycho-analysis” aponta sete maneiras de abordar analiticamente o cinema.Cito um exemplo. Alguns filmes podem representar momentos específicos do desenvolvimento psíquico, como o conhecido “Alien”, que ilustra à perfeição os primitivos mecanismos psíquicos descritos por Melanie Klein referentes aos ataques sádicos ao seio e ventre maternos. Da mesma forma o clássico “A Bela e a Fera” de Cocteau, representaria as angústias da jovem virgem frente a genitália masculina. Em minhas leituras analíticas, faço amplo uso de todas essas formas descritas por Gabbard.