A PULSÃO DE MORTE EM “DANÇANDO NO ESCURO”, DE LARS VON TRIER

Parece-me surpreendente o sucesso que o filme “Dançando no Escuro” tem feito com a crítica e o público. É um filme extremamente desagradável, que beira o insuportável no desfiar do calvário de Selma, uma miserável imigrante checa nos Estados Unidos, personagem interpretado à perfeição pela cantora islandesa Bjorg.

Selma vive humildemente como operária. Está perdendo a visão e seu filho tem a mesma doença genética. Trabalha desesperadamente para poder pagar a operação que garantirá a visão ao filho. Não mede esforços frente a este objetivo, levando-o a extremos inimagináveis. Tem como único lenimento sua paixão pelos musicais norte-americanos, lugar onde, diz ela, “tudo sempre acaba bem”. Cada vez que a realidade a confronta com graves impasses e limitações, escapa imaginariamente, transformando-os em situações de musical, onde tudo se equaciona de acordo com seu desejo.

Do ponto de vista cinematográfico, Lars von Trier subverte o gênero musical, pois, ao contrário do que Selma diz a respeito deles, aqui tudo “acaba mal”; a música de Bjorg não é fácil, agradável, “cantabile”; as coreografias são ríspidas e duras. O efeito geral é o oposto do encantamento distante da realidade produzido pelos grandes clássicos do musical. Aqui é enfatizada a aspereza dos destinos humanos, com suas misérias e suas sofridas vitórias.

Embora tenha sido alardeada a novidade do uso de câmaras digitais, que permitem, devido a seu baixo custo, filmagens simultâneas (na cena do trem, mais de 100 delas teriam sido usadas), possibilitando novos regimes de filmagem e montagem final, penso que nada disso transparece visualmente para o espectador médio.

Como um filme tão ríspido pode atrair a platéia e a crítica ?

Poder-se-ia evocar uma interpretação sociológica. O fato de Selma ser uma operária checa que vai para os Estados Unidos em busca de um mundo melhor e ali encontra seu martírio, poderia ser entendido como a desilusão do operariado, representando toda a humanidade, frente ao fracasso das promessas de um mundo melhor feitas pela revolução socialista e à injustiça social que o capitalismo continua produzindo mesmo no centro do império norte-americano, que também tem seus miseráveis. Neste sentido, não é a toa que sua melhor amiga, “Cvalda” (interpretada por Catherine Deneuve) é também uma imigrante européia.

Selma está ficando cega, metaforicamente não tem perspectivas, não vê saídas para seu impasse. É verdade que essa desilusão não leva inteiramente ao desespero, alude-se a uma esperança para as futuras gerações: mesmo às custas de um sacrifício supremo, a elas deve ser assegurado o direito de ver.

A interpretação psicanalítica acrescenta importantes sub-tons a essa configuração. Selma suporta todas provações com paciência e bonomia, jamais se permitindo qualquer revolta, qualquer sentimento agressivo. Seu comportamento pareceria, para um observador externo, apático e inteiramente passivo, não opondo qualquer resistência aos reveses que a acometem. Mas sabemos de atrás de sua aparente fraqueza está uma férrea resolução – a de proporcionar a operação do filho.

Sua atitude com o filho, ao contrário da relação que tem com todos, é de uma dureza incomum. Mostra-se intransigente, exigente, impaciente com suas pequenas faltas escolares. Quando o drama está totalmente instalado, recusa-se terminantemente a atender seu pedido de vê-la.

Essa atitude de máxima severidade com o filho parece basear-se na presunção de que o melhor para ele é ter garantida a própria visão. Garantir-lhe isso é, em sua concepção, a máxima expressão de amor materno. Tudo deve estar submetido a esse princípio. Não importa que, para tanto, possa assumir atitudes de aparente rejeição e indiferença. “Mais vale que ele tenha a própria visão que ter uma mãe viva e cega”, diz corajosa e corretamente Selma.

Em linhas gerais, embora severa, essa é uma grande verdade, do ponto de vista analítico. O maior amor que os pais podem ter pelos filhos e deixá-los crescer e partir, é ajudá-los a ter autonomia própria, a prescindir deles mesmos, pais. Isso, que parece uma obviedade, está longe de sê-lo. Muitos pais narcisisticamente desejam manter os filhos ligados, não tolerando qualquer movimento de independência.

Por outro lado, o desejo de Selma de tornar autônomo o filho, independente dela, ou seja dos pais, a forma inflexível com a qual o exerce, poderia revelar outros aspectos de seu psiquismo. Sabemos que Selma não teve pai, nada é dito sobre sua mãe. Cria imaginariamente um pai que justifique suas idiossincrasias, como o amor pelos musicais. A falta deste pai idealizado, que a protegeria e amaria, fica patente nas cenas finais. O filho de Selma também não tem pai.

Sua dureza para com o filho, seu desejo de fazê-lo autônomo, tendo sua própria visão, sem depender de mãe ou pai, furtando-se ela mesmo a ter uma atitude mais compassiva e carinhosa com o filho, pareceria mostrar que muito sofreu com o abandono e quer poupar tal sofrimento ao filho, forjando-o independente. Mas ao fazê-lo, termina por infligir a ele a carência que sofreu e da qual queria protegê-lo.

Mas nada disso justifica a postura que Selma assume para executar seu plano de salvar o filho, garantindo-lhe a operação. Metida em inúmeras complicações, Selma nunca se defende, tem uma passividade bovina, mantém em segredo o motivo de suas ações, não pede ajuda aos amigos e a recusa quando estes querem protegê-la . A justificativa dada no filme – o filho não pode saber que tem uma doença na vista, pois isso o angustiaria, o que agravaria o problema – mostra-se inconsistente, pois as consequências do obstinado silêncio de Selma e sua recusa em ser ajudada desencaderiam muito mais angústias no filho do que o conhecimento de sua doença.

A atitude de Selma – seu abandono, seu não defender-se, sua indiferença para consigo mesma – parece apontar para um inconsciente desejo de morte, uma raiz profundamente melancólica. Ela confessa ter um intenso sentimento de culpa frente ao filho, sente uma necessidade de punição por considerar-se responsável pela doença dele. Censura-se pelo egoismo de ter desejado a gravidez, mesmo sabendo que transmitiria ao filho sua doença.

Considera-se, pois, uma má mãe e se pune por isso.

É possível que ao sentir-se desta forma, esteja identificada com a imagem odiada e destruída do pai que a abandonou (ou de uma mãe que ao sequer ser mencionada, permite supormos um mau relacionamento entre as duas). Ao invés de dizer “tive um mau pai (e uma má mãe) e o(s) odeio por isso”, por identificação diz, “sou uma má mãe, me odeio por isso e por isso me castigo”. Ou seja, identificada com este pai odiado (e essa mãe), ao se punir, está punindo o pai (e a mãe).

Ao se deixar morrer, mata o pai internalizado (e a mãe) com os quais está identificada. Também ao não se defender, porta-se como uma criancinha indefesa e abandonada, atitude com a qual acusa os pais de abandono.

Em outras palavras, a atitude de Selma parece ilustrar bem o masoquismo e a melancolia enquanto expressões da pulsão de morte voltada sobre o próprio sujeito.

Como Freud mostrou, há três tipos de masoquismo: o moral, o feminino e o erógeno. Este último é o mais conhecido, envolve práticas sexuais onde a dor e a passividade de um dos parceiros envolvem o comportamento complementar sádico por parte do outro. O masoquismo feminino, para Freud, seria um dos avatares da sexualidade feminina e o masoquismo moral é aquele onde impossibilidade de defletir para o exterior a pulsão de morte, sob a forma de agressão, faz com que ela rertorne ao próprio sujeito, alimentando o sadismo do próprio super-ego. Na melancolia, diz Freud, vemos uma cultura pura da pulsão de morte, na medida em que a agressão está voltada para um objeto que se internaliza ( o que faz com que a agressão retorne para o interior do sujeito) e ao mesmo tempo, a culpa pela agressão a este objeto internalizado reforça o rigor sádico do superego. O resultado é fatal, levando freqüentemente ao suicídio.

Selma é incapaz de voltar a agressão para o exterior que a agride. Volta a agressividade contra si mesma, internalizando-a como um super-ego sádico que a impede de cuidar de si mesma e preservar a própria vida, deixando-se matar.

Assim, é curioso, pois apesar de todo o aparato repressor do Estado se levantar contra Selma com a pena máxima, no fundo o que vemos é a realização de um suicídio.

Se o masoquismo de Selma é predominantemente moral, tem também alguns traços eróticos. Sua relação com o proprietário que lhe aluga o lugar onde mora deixa transparecer algum erotismo. Selma submete-se inteiramente ao desejo deste, não esboça nenhuma reação frente a suas investidas, organizando um bom modelo de relacionamento sádo-masoquista.

Assim, uma explicação para a aceitação de “Dançando na Chuva” residiria na capacidade que tem de tocar profundos aspectos masoquistas e melancólicos da platéia, que tem ali uma oportunidade de ver de forma sublimada os movimentos sombrios da pulsão de morte.

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