Reflexões sobre as manifestações de junho de 2013
Sérgio Telles
O Brasil assistiu em junho uma inédita manifestação de massa. O que começou como uma modesta reivindicação tomou inesperadas proporções abalando a tranquilidade dos que estão no poder. O povo, tradicionalmente deixado na ignorância de seus direitos constitucionais, surgiu com grande ímpeto, exigindo dos políticos uma prestação de contas pela representação que por ele lhes foi delegada.
Os protestos foram surpreendentes sob vários aspectos. Em primeiro lugar, por desmentirem diretamente as pesquisas de opinião pública, que apregoavam uma aprovação do governo por parte de 70% da população. O fato de não terem elas detectado a imensa insatisfação exposta nas manifestações levanta dúvidas sobre sua metodologia e confiabilidade. O episódio levaria a crer serem elas procedimentos entrópicos, que propõem perguntas que induzem a respostas desejadas, tarefa fácil num pais onde grassa o analfabetismo funcional.
Mas a novidade maior consiste no fato de terem sido as manifestações organizadas pelas redes sociais da internet, sem o comando centralizador dos partidos, que foram enxotados quando, de forma oportunista, tentaram se apoderar do acontecimento.
A maré dos protestos refluiu e sobrou um gosto amargo na boca de todos. A força e a novidade que demonstraram fizeram com que muitos fantasiassem o advento imediato de uma nova era. Tudo se transformaria da noite para o dia com uma faxina efetiva no entulho corrupto e demagógico que se acumula nas esquinas do poder. Claro que isso não é possível. O movimento arrefeceu mas isso não deve ser entendido como seu desaparecimento. Os próprios políticos dão provas de pensar desta maneira na medida em que, desde então, não fizeram outra coisa do que atabalhoadamente tentar atender algumas das demandas explícitas exigidas pela multidão, enquanto, por outro lado, se movimentaram para negar aquilo que foi pedido com mais intensidade, a prisão para os mensaleiros. Esse capítulo do episódio teve um final melancólico, com a votação do STF acolhendo os famigerados embargos infringentes e colocando em risco todo o longo processo duramente cursado até então.
Como efeito das manifestações, podemos constatar que o poder já se organizou para conter futuros protestos, que dificilmente terão novamente a dimensão e a cobertura direta da mídia como ocorreu inicialmente.
Um outro fenômeno gerado pelos protestos foi o aparecimento de uma entidade autointitulada Black Blocs, que tem conseguido sequestrar as manifestações que persistem, intimidando-as através da violência e exigindo uma necessária repressão policial. Seria um movimento “anarquista” espontâneo, formado por insatisfeitos de variado matiz ideológico? Seriam eles agentes provocadores comandados por interessados em boicotar a legitimidade das manifestações? Devemos aguardar para que o panorama fique mais definido.
Embora muito possa ser especulado e refletido em função desses acontecimentos, vou restringir-me à forma especial de como foi convocada a manifestação através das redes sociais.
A manifestação arregimentada pela internet, criando uma multidão imensa em torno das mesmas ideias, possibilita levantar uma hipótese sobre um tipo especial de massa diferente daquela descrita por Freud, em seu clássico “Psicologia de grupo e a análise do ego”[1].
Como é bem sabido, as massas descritas por Freud se caracterizam pela dissolução da identidade de cada sujeito, ocorrida pela identificação horizontal realizada entre os participantes da massa e uma identificação vertical com o líder, em quem estão projetados o ideal do ego e o superego de cada um dos componentes da massa. A massa age como uma entidade viva única, maciça, seguindo dócil o líder, vivenciado como uma figura paterna idealizada.
O quadro descrito por Freud continua válido e foi ampliado por Kernberg[2], que descreveu a psicologia dos pequenos grupos, grandes grupos, multidões e movimentos de massa a partir dos referenciais kleinianos e bionianos. Para ele, além da figura do líder enquanto pai autoritário e poderoso, própria do modelo freudiano, pode se encontrar a imagem do líder como uma mãe promotora de uma relação indiscriminada e fusional, instalando na massa uma situação muito mais regressiva. Nestes grupos ou massas a agressão primitiva e os mecanismos de defesa contra ela não estão devidamente controlados, como ocorre nas relações sociais habituais e nas relações diádicas e triádicas familiares, e tendem a fugir do controle. Ocorrem então desenvolvimentos narcisistas e paranóides em resposta à liberação da agressividade. Os primeiros se caracterizam pelo gozo estático de regressão no grupo, os segundos correspondem à liberação da violência e supressão das inibições morais, descritas por Freud. Kernberg detecta também nos grupos os pressupostos básicos de Bion – ataque e fuga, dependência e acasalamento -, bem como as diversas modalidades de fusão passíveis na clínica dos borderlines.
Diluído no meio da massa, o individuo tem seu comportamento habitual modificado, pois ocorre uma regressão em sua organização psíquica, decorrente da perda transitória de sua identidade. Com isso, ele fica privado dos parâmetros internos que estabelecem a forma como vê a si mesmo, aos outros e a realidade externa. Desta forma, ele se isenta da responsabilidade pessoal, delegando as decisões ao grupo ou a seu líder, um representante da figura paterna ou materna a quem segue sem restrições. Nesse estado regressivo, podem ser liberados impulsos agressivos e sexuais que jamais seriam veiculados se o sujeito estivesse sozinho. De tudo isso, como mostraram Freud, Canetti e Kernberg, advém a inebriante sensação de poder e liberdade que sente o individuo no meio da multidão, bem como atitudes paranoides e destrutivas.
Esses fenômenos psicológicos próprios da massa mostram a plasticidade e fluidez do aparelho psíquico, que é capaz de transitar do funcionamento mais estruturado e organizado que possibilita o exercício do pensamento racional e objetivo para posições comandadas por uma afetividade mais arcaica.
Por darem vazão a incontornáveis desejos humanos, as massas tendem a se formar espontaneamente e estão presentes tanto nos regimes totalitários como nos democráticos, que as encaram de forma diferente. Nos regimes autoritários, o poder as incentiva, pois elas induzem à doutrinação ideológica e o controle social. Nas democracias mais avançadas elas são formalmente desestimuladas e substituídas por grupos de indivíduos atuantes e conscientes.
Kernberg mostra que os meios de comunicação tornam mais complexa essa equação, pois para que se instalem os pressupostos da psicologia das massas, com seus movimentos de submissão acrítica a um líder, não é necessária a presença física de participantes numa grande multidão.
Os meios de comunicação, especialmente a televisão, organizam multidões virtuais muito maiores que as reais, possibilitando sub-repticiamente a instalação dos fenômenos regressivos típicos da psicologia das massas.
Vendo televisão na privacidade de seu lar, o expectador não tem plena consciência de fazer parte naquele exato momento de uma grande massa e, como parte dela, reagir sem crítica aos ditames que lhe são impostos. Nos países autoritários, ele recebe passiva e diretamente sua quota de doutrinação. Nos países democráticos, lhe é fornecido o “entretenimento”, essa proteica produção que sem cessar veicula conteúdos ideológicos, visando igualmente tornar desnecessário a cada cidadão o esforço de pensar e discriminar.
Os modelos de comportamento oferecidos pelos meios de comunicação, voltados prioritariamente para o consumo, são seguidos da mesma forma como o é o líder totalitário da multidão real, presencial.
Fazer essa constatação não significa ignorar as diferenças e confundir o autoritarismo totalitário com a democracia. O que está em jogo é o reconhecimento da importância dos elementos psicológicos no comportamento das massas, a compreensão de que elas inconscientemente desejam o controle autoritário, a obediência a pais poderosos que as isentem do peso inerente à independência, à liberdade e responsabilidade.
Isso significa que, para se fortalecer, a democracia teria que batalhar em duas frentes. A mais óbvia, lutando contra os que querem se apossar do poder para exercê-lo autoritariamente. Outra, mais insidiosa e difícil, criando defesas contra o anseio regressivo das massas por um líder onipotente, com características paternas ou maternas.
Poder-se-ia perguntar: se há um líder onipotente que quer o poder e massas infantis que desejam ser por ele comandadas, porque não deixar que isso aconteça? A experiência do nazismo talvez seja a resposta mais cabal a essa questão. Atender aos anseios regressivos de ambas as partes é dar livre curso à irracionalidade psicótica mais desagregadora e destrutiva.
Para superar esses perigos, a democracia deveria evitar as circunstâncias que proporcionem a formação de massas, quer seja na prática política, quer seja como efeito dos meios de comunicação. As massas dependentes deveriam ser substituídas por coletividades compostas por cidadãos autônomos e críticos, que não abram mão de seus direitos e responsabilidades e que exijam o mesmo de seus representantes.
No que diz respeito aos meios de comunicação, o exercício da crítica permitiria a necessária discriminação entre os apelos da ideologia do consumo e o inestimável valor da liberdade de circulação de ideias e notícias.
Talvez não haja novidade nesse programa. Seria apenas uma versão atualizada do clássico embate entre demagogia e democracia.
Há muito tempo se sabe da infantilização das populações mais carentes, sempre a mercê dos espertalhões e populistas. O que vemos agora é que a situação é mais grave. A regressão das massas, que as deixam vulneráveis às manipulações de líderes inescrupulosos, não depende de fatores econômicos, sociais, educacionais. É algo mais profundo, que atende a fantasias inconscientes que se manifestam na psicologia dos grupos.
Essa é uma questão que não pode ser ignorada no aprimoramento dos dispositivos da democracia.
Vimos que nas democracias as massas deveriam ser substituídas por coletividades de cidadãos autônomos, críticos e conscientes de seus direitos e deveres. Ao que parece, as redes sociais e a internet facilitam essa substituição.
Nas multidões arregimentadas pelas redes não há a figura de um chefe, um líder, sobre quem é projetado o ideal do ego e o superego ou que seja visto como um pai poderoso ou uma mãe que seduz com um apelo fusional. As pessoas são convocadas em nome de um determinado ideário, ao qual consciente e voluntariamente aderem. O conceito de flash mob, introduzido pela internet, se refere a essa possibilidade de convocar uma multidão para fins pontuais específicos, que vão desde brincadeiras inconsequentes até grandes manifestações políticas, como ocorreu nas “primaveras” árabes e aqui mesmo nas manifestações de junho.
Esse uso das redes sociais estabelece uma grande diferença entre a televisão e a internet. Enquanto a televisão tem um poder de controle mesmerizante, controlando o telespectador passivo, que se deixa comandar como um membro da massa guiada por um líder, a internet convida à participação, à interação, à atividade – quer seja nas salas de bate-papo, nos comentários aos noticiários, nos inúmeros fóruns de debates e, o que é mais importante, na organização de grandes manifestações de rua. Ao contrário da televisão, que organiza massas virtuais ocupando ela mesma o papel de líder a ser seguido, a internet age de forma diversa, proporcionando a formação desse tipo de agrupamento de características opostas à massa, desde que imbuídas de forte sentimento de autônoma cidadania.
Uma multidão que se junta assim estaria mais consciente e lúcida, não se deixaria manobrar por oportunistas, como se constatou no repúdio aos grupos e partidos políticos que tentaram manipular as manifestações de junho e foram escorraçados. Mas também mostra uma fragilidade. Na medida em que não há uma centralização ou organização estável que a alimente, tende a se manifestar em ondas, abalos sísmicos, de problemática continuidade. .
Dessa maneira, a internet poderia estar criando instrumentos inéditos para reforçar a democracia, possibilitando uma diferente forma de manifestação direta da vontade popular.
A dimensão e profundidade das mudanças trazidas pela internet na prática política ainda não estão muito claras para todos nós. Elas se manifestam não só na capacidade de formar flash mobs políticos que acabamos de mencionar, como também nas questões ligadas à anulação da privacidade e a possibilidade de grande controle social possibilitada pelas novas tecnologias da informática.
O extraordinário domínio do estado sobre o cidadão que assim se afigura fica contrabalançado pela possível resistência exercida por aqueles que praticam a desobediência civil. Eles põem a nu a fragilidade e a vulnerabilidade de sistemas de poder aparentemente inexpugnáveis, apesar de pagarem um preço altíssimo por essa ousadia. O ativismo político de Julian Assange e Edward Snowden são bons exemplos dessa questão.
Nos inúmeros comentários sobre as manifestações, foi dito que elas seriam um sintoma da crise de representatividade, da descrença nos políticos. Penso que a crise de representatividade dos políticos nas democracias avançadas é bem diferente da que ocorre entre nós. Nossa crise de representatividade não se dá pela exaustão do modelo e sim por sua crônica inoperância. Não é que os modelos de representação política se esgotaram de tão usados, eles fenecem por falta de uso. Nossos políticos nunca foram efetivamente representantes da coisa pública (res publica) e sim prepostos de grupos que de há muito se apoderaram do poder. Temos sim uma crise de representatividade, mas motivada pelo excesso de corrupção, pela inépcia, pela incompetência, compadrio, nepotismo, roubalheiras, irresponsabilidade cívica.
Muitas de nossas características socioculturais derivam de nossa formação histórica, do peso da formação ibérica mais atrasada do que outros países europeus. A própria forma de exercer o poder parece ser diferente no Brasil. Já os romanos diziam “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. Intuitivamente sabiam da importância da identificação, do modelo a ser seguido, dos padrões nos quais a sociedade se mira – cabe às autoridades dar o bom exemplo para o povo, ao homem público compete manter a compostura.
Pelo contrário e com as honrosas exceções de praxe, nossos políticos se vangloriam da esperteza, das negociatas, do evidente e escandaloso enriquecimento ilícito. Parecem competir na desfaçatez e na exibição de seus desmandos, oscilam entre a safadeza pornográfica e o palavrório oco, pomposo, ridículo, numa patética exibição para uma imensa plateia de ingênuos mantidos propositadamente na ignorância.
O que acontece quando a elite que ocupa o poder diariamente dá mostras de roubos e falcatruas, de não obedecer a lei, de viver em permanentes conchavos escusos visando exclusivamente seus próprios interesses?
O que ocorre no Brasil é da maior gravidade porque os modelos públicos de identificação dão um exemplo terrível e a lei que deveria reger o contrato social é enxovalhada ininterruptamente, mostrando suas garras apenas contra os mais pobres e indefesos estratos da sociedade.
O modo escabroso com que se comportam as figuras paternas encarnadas nos políticos e a impunidade que gozam não estariam propagando em larga escala a criminalidade e a delinquência? A brutalidade cada vez mais desmedida e desarrazoada que se constata na crônica policial de nossas cidades – como atear fogo nas vítimas que não tem dinheiro bastante para satisfazer o ladrão ou dar tiros na cabeça de uma criança que chora durante o assalto – não seriam sintomas de tudo isso?
[1] Freud, Sigmund – Psicologia de grupo e analise do ego – Ediçao Standard das Obras Completas – Volume XVIII, Imago Editora, Rio, 1969
[2] Kernberg, Otto F. – Ideologia, Conflito e Liderança em Grupos e Organizações – ArtMed Editora, Porto Alegre, 2000