Klimt, nazismo, livros (*)
Sérgio Telles
Klimt é autor de imagens que se transformaram em ícones do século 20, como a tela O Beijo. Em curso nos Estados Unidos e na Europa, as comemorações dos 150 anos de seu nascimento voltam a jogar luz sobre sua obra mais célebre, O Retrato de Adele Bloch-Bauer I.
A pintura foi encomendada pelo industrial Ferdinand Bloch-Bauer e, com todas as suas propriedades, foi confiscada pelas autoridades nazistas de Viena, ato consoante com o projeto de desapropriação sistemática dos bens de judeus. Com o fim da guerra, os herdeiros de Bloch-Bauer buscaram a reintegração de posse dos quadros e o governo austríaco, sem provas consistentes, alegou que Adele havia doado sua coleção de arte para os museus do país. Maria Altmann, uma das sobrinhas de Ferdinand, iniciou então uma batalha jurídica liderada pelo advogado Randol Schoenberg (neto de Arnold, o compositor) e apoiada por Ronald Lauder, herdeiro do grupo de cosméticos Estée Lauder. O caso se arrastou longamente até ser levado à Suprema Corte norte-americana em 2006, quando o governo austríaco se viu obrigado a ceder. O quadro foi levado para os Estados Unidos, onde Lauder o comprou por U$S 135 milhões, preço mais alto até então pago por uma obra de arte, e o mantém em exposição pública em sua Neues Gallery, em Nova York.
Não foi apenas o espólio de Bloch-Bauer que o governo austríaco relutou em devolver. Era grande a quantidade de objetos de arte e imóveis desapropriados pelos nazistas e foi necessário pressão internacional, da qual fez parte o presidente Clinton, para que os bens roubados fossem devolvidos aos seus legítimos donos. Papel decisivo nesse processo teve o jornalista austríaco Hubertus Czernin, cujo trabalho investigativo levou à criação de leis específicas obrigando a devolução desses bens retidos pelo Estado.
A persistência até tão recentemente de tal situação se explica pelo fato de a Áustria, que recebeu de braços abertos o nazismo, no fim da guerra ter posado de “primeira vítima” de Hitler. Atendendo às conjunturas do pós-guerra, os interesses dos Aliados avalizaram a impostura. Na Alemanha houve um reconhecimento da responsabilidade pelas atrocidades realizadas contra os judeus e os nazistas foram efetivamente julgados, condenados e afastados do poder. Nada semelhante aconteceu na Áustria, como ilustra o caso de Kurt Waldheim, que mesmo tendo seu passado nazista exposto, manteve-se na Presidência da república até o fim de seu mandato, em 1992.
Os crimes praticados contra os judeus e a persistência de uma atitude discriminatória contra eles até bem depois do fim da guerra também aparecem no premiado livro A Lebre com Olhos de Âmbar (Intrínseca), de Edmund de Waal. Misto de romance, memória e ensaio autobiográfico, o autor, que é renomado ceramista, estrutura a narrativa em torno de uma herdada coleção de netsuquês, refinado item da indumentária japonesa masculina tradicional, usado para prender uma pequena bolsa na faixa do quimono. A partir daí recria a história de sua família, os riquíssimos comerciantes e banqueiros judeus russos Ephrussi, que no fim do século 19 deixaram Odessa (Rússia) e se estabeleceram na França e na Áustria, orgulhosos por se integrarem à aristocracia daqueles países, até serem abatidos pelo 3.º Reich. Ao falar do ramo austríaco da família, De Waal mostra as dificuldades que sua avó teve de enfrentar para reaver alguns dos bens tomados pelos nazistas naquele país, entre os quais um palácio na Ringstrasse, uma das mais importantes avenidas de Viena.
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A propósito de livros, li agora dois romances excelentes: Bonsai (Cosac Naify), do chileno Alejandro Zambra, e A Visita Cruel do Tempo (Intrínseca), da norte-americana Jennifer Egan, que venceu em 2011 os prestigiosos National Book Critics Circle Award e Prêmio Pulitzer. Eles mostram a diversidade desse gênero literário, cuja morte nos é anunciada periodicamente por especialistas, mas que, por ignorar a gravidade do diagnóstico que lhe atribuem, continua impávido a vender saúde.
Bonsai, como o nome bem o diz, exibe propositada e orgulhosamente sua artificialidade constitutiva. O autor se intromete várias vezes no texto para dizer que aquilo é um livro, o leitor que não se iluda, nada ali é real, é tudo fantasia, uma produção mimética, retorcida, podada, planejada, na qual a narrativa é impedida de seguir livremente seu fluxo e obrigada a se dobrar e enveredar por rumos forçados, obedecendo a um projeto estritamente estabelecido. Como se estivesse envergonhado por fazer ficção, o autor faz ironias e parodia o gênero. Desconfiado, com o pé atrás, não se deixa levar pelo entusiasmo de escrever, parece gritar que não acredita em musas e inspirações.
Se para Zambra o bonsai é a metáfora central ou modelo para a construção de seu romance, poder-se-ia dizer que o equivalente para Jennifer Egan seria o conjunto de árvores imensas e frondosas de uma floresta tropical, alimentadas pela caudalosa torrente de sua imaginação. Egan se entrega prazerosamente e sem pejo à escrita, usando com grande desembaraço e competência todos os recursos ficcionais dos quais pode lançar mão.
É claro que, rigorosamente falando, A Visita Cruel do Tempo é tão artificial e arbitrário quanto o de Bonsai. Mas Egan prefere não deixar à vista os bastidores de seu trabalho, não está preocupada com metalinguagens, não quer mostrar os cortes nem os arames com os quais retorceu a trama e a obrigou a se encaminhar para onde bem queria, apesar de usá-los da mesma forma e tão severamente quanto Zambra.
Que seja assim não é nada surpreendente. Afinal, estamos falando da arte da literatura e arte é artifício, artificial, artificiosa, estranha à natureza, à naturalidade.
Entre Bonsai e A Visita Cruel do Tempo não se coloca a questão de certo ou errado e, sim, de escolhas livres e diferentes. Bonsai ou densa floresta tropical, cada escritor fez o que quis e foram ambos muito bem-sucedidos dentro do que se propuseram, para nossa alegria enquanto leitores.
(*) Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 09/06/2012