Fragmentos clínicos de psicanálise

Fragmentos clínicos de psicanálise, SÉRGIO TELLES

FRAGMENTOS… (EXCERTO)

INTRODUÇÃO

Sérgio Telles

Este livro atende inicialmente ao desejo de falar de meu espanto sempre renovado com o fazer psicanalítico. Ali, assistindo ao desfile de significantes organizados em cadeias associativas, me deparo com as emergências do Inconsciente e constato, de forma imediata e direta, o poder da palavra que, ao simbolizar e produzir sentidos até então ignorados pelo analisando, desfaz emaranhados nós sintomáticos, diminuindo-lhe a dor psíquica.

Constato que este poder não advém estritamente da transferência, como já se evidenciava no uso da hipnose, onde – por amor ao terapeuta – a palavra do hipnotizador fazia milagres. Na análise, a transferência, o amor pelo analista, apenas deixa o analisando mais aberto para ouvir esta palavra que vem completar sua lógica interna, que tem um sentido próprio e particular, secreto, a ser desvendado.

Gostaria de poder mostrar nestas páginas o que acontece numa sessão de análise, expondo esta curiosa e especial forma de comunicação humana inventada por Freud. De um lado, a escuta analítica, que se processa mediante a “atenção flutuante” mantida pelo analista. Do outro, o discurso do analisando, em eventual “associação livre”.

Certa vez, um analisando me deu uma definição muito apropriada do que ocorre numa sessão. Disse-me ele: “Isso aqui é uma conversa de louco, pois um não fala coisa com coisa, e o outro não está nem aí com o que é dito…” Ele não deixava de ter alguma razão em sua forma de ver o que se passa entre o analista e o analisando. No entanto, desta “conversa de louco” nasceu um novo e revolucionário conhecimento sobre o homem e seu funcionamento mental.

Gostaria de atingir dois públicos – o leigo cultivado, que se interessa pelos fenômenos culturais de nosso tempo, dentre os quais a psicanálise certamente tem um lugar proeminente, e o mundo dos “psis”, os profissionais da área. Sei que isso torna meu objetivo difícil de alcançar, mas há precedentes ilustres que me servem de modelo. O maior deles é o próprio Freud que, ao escrever para o grande público, procurava divulgar a psicanálise, obrigação de qualquer analista. Suas “Conferências Introdutórias à Psicanálise” são um exemplo definitivo. Mais recentemente, vêm-me a memória os nomes de Winnicott, Dolto, Bettelheim, cujos textos preciosos são acessíveis ao leitor leigo e muito ricos para o profissional..

Artigos

C. GUILLERMO BIGLIANI

FRAGMENTOS CLÍNICOS DE PSICANÁLISE, DE SÉRGIO TELLES – APRESENTAÇÃO

“Esta obra, que segue a tradição freudiana de beleza expositiva e que poderia ser incluída tanto na produção científica como na literária de Sérgio Telles, realiza o objetivo de ‘fundar ou voltar a fundar uma ciência romântica’.”

Conheci Sérgio Telles logo que cheguei ao Brasil, no ano de 1977. Era o fim da ditadura Geisel no Brasil e o começo da ditadura de Videla na Argentina. Sérgio fazia parte de um grupo de jovens psicanalistas que se propunham a transformar o mundo e a prática da psicanálise. Eu também tinha participado de um movimento com características semelhantes, em Buenos Aires.

Reconheci rapidamente nele as qualidades de um bom clínico, o que se confirmaria plenamente nos mais de vinte e cinco anos de nosso intercâmbio profissional. Também confirmaram minha opinião grandes clínicos, como Herbert Rosenfeld, Marie Langer e Eric Breman, que em algumas ocasiões supervisionaram seus materiais clínicos.

Sérgio tem ainda uma qualidade rara entre os médicos: sabe escrever. Aliás, quase se dedicou ao jornalismo, quando se qualificou no concurso realizado para formar o grupo de redatores da VEJA, no começo da revista, mas desistiu porque achou que sua vocação era a psicanálise. E era mesmo. Este livro não só prova isto como o coloca entre os melhores.

Acredito que Fragmentos Clínicos de Psicanálise transporá fronteiras.

Por que?

Porque seu conhecimento de Freud, especialmente do primeiro Freud, no qual o resto da obra está alicerçada, permite ao autor navegar sem dificuldades pelas teorias que povoam a psicanálise, especialmente pelas raízes da verdade teórica em que fundamenta sua clínica. Sérgio nos mostra isto na produção de sua “cozinha de analista”, como Rodrigué chamava aquele lugar no qual são criadas as interpretações do analista. Alí a especiaria é sutil, variada e das mais diversas origens, tal como se vê nas vinhetas clínicas que constituem a obra.

Na apresentação de seus casos, Sérgio nos oferece um belo entretecido de material clínico, teoria e técnica, com inestimáveis orientações para os jovens analistas e valiosas lembranças para os velhos.

Os conceitos fundamentais da psicanálise, surgem de forma simples, mostrando-nos uma decantação apurada da teoria e uma grande capacidade de síntese, o que lhe permite realizar uma discussão precisa e elucidativa de conceitos das diferentes escolas em voga, sempre apoiado em citações consistentes nas que se evidencia sua dívida não sectária aos grandes pensadores da psicanálise: Freud, Klein, Lacan. Vemos assim aparecer clara e didaticamente a emergência do funcionamento do processo primário; a verdade revelando-se pela negação; como, já que o tempo não existe tal como nós o representamos na consciência, não há necessidade de temer usar sessões passadas na sessão presente na produção de sentido.

É também elogiável sua atitude de respeito pela ciência psicanalítica assim como por seus maiores beneficiários (e colaboradores): os pacientes. Fiel a seu duplo compromisso com eles e com a transmissão do conhecimento, Sérgio dedica a este tema um importante capítulo, rico em citações bibliográficas e em aberturas.

O manejo da transferência tal como se depreende de seu material, nos lembra um comentário que Joseph Brodsky, escritor russo e prêmio Nobel de literatura, faz a propósito do poeta inglês W.H.Auden: “êle nunca se colocava no centro da tragédia; quando muito reconhecia a sua presença em cena…”.

O neurologista Oliver Sacks lembra que, ao se formar em medicina, conciliou sua vocação pelas ciências com a vocação pelas artes e cita Luria em seu desejo de “fundar ou voltar a fundar uma ciência romântica”. Esta obra, Fragmentos Clínicos de Psicanálise, que segue a tradição freudiana de beleza expositiva e que poderia ser incluída tanto na produção científica como na literária do autor, realiza este objetivo.

RENATO MEZAN

“CONVERSA DE LOUCO”: RAZÃO E SENSIBILIDADE NA PRÁTICA DA PSICANÁLISE

“Aliando rigor teórico, sensibilidade clínica e um grande talento literário, Sérgio Telles faz de nós outros tantos interlocutores em suas “conversas de doido”. Que privilégio, o nosso!”

Dizia Aristóteles, ecoando o Sócrates do Teeteto, que a Filosofia nasce do espanto . A inquietação de saber por que e como as coisas são como são pode, porém, produzir outros frutos; e entre eles se conta este novo livro de Sergio Telles, um analista que já recebeu vários prêmios por sua produção ficcional. São vinte sessões comentadas, às quais se acrescentam dois substanciosos capítulos argumentativos, sobre os referenciais teóricos da escuta e sobre a delicada questão de como proteger a privacidade dos pacientes a quem nos referimos em um escrito clínico.

É um prazer acompanhar o autor nessas reflexões, como que espiando por cima do seu ombro enquanto pensa, interpreta, constrói e revisa suas formulações. O amplo conhecimento da obra de Freud, Melanie Klein, Lacan, Winnicott e outros autores se soma aqui a uma refinada sensibilidade e a um vasto repertório de cultura geral; além disso, a habilidade na exposição e um agudo senso das proporções – evitando o cacoete tão presente neste tipo de texto, de sobrecarregá-lo com informações inúteis para a compreensão do argumento – tornam convincente o pensamento de Sergio Telles, consistentes os personagens de suas narrativas, e sólidas as construções que apresenta..

Pois as sessões foram escolhidas porque permitem evidenciar o que para o autor é o cerne do raciocínio clínico: a construção. Isto fica evidente não só pela maneira como recorta a obra de Freud, mas sobretudo no modo como reúne os dados no decorrer da sessão, vinculando-os sempre que possível ao passado infantil e aos momentos precedentes da análise. Sérgio toma assim partido no grande debate que atravessa a história da Psicanálise desde a irrupção do kleinismo nos anos trinta e quarenta: qual o lugar da transferência na mente do analista? Digo bem na mente do analista, pois, no desenvolvimento do processo terapêutico, todos concordam que ele é central, na medida em que atualiza os conflitos patógenos e os projeta na arena do presente. O problema reside no uso a fazer deste elemento: interpretá-lo exaustivamente no interior da relação terapêutica, ou servir-se dele para estabelecer a continuidade entre o infantil e o atual?

O estudo dos escritos freudianos a que Telles procede nos capítulos iniciais não deixa dúvidas: ele se alinha entre os que preferem a segunda opção. “Apesar do logo compreender que é na transferência que serão travadas as batalhas decisivas da análise e vê-la como algo imprescindível, Freud nunca deixou de lado a idéia de que o objeto da psicanálise é a rememoração do passado simbólico, e é dentro dessa perspectiva que a transferência deve ser vista.” (p. 30-31) E esta opção técnica repousa sobre o alicerce teórico representado pela posição do infantil como núcleo do inconsciente: nas palavras do autor, no inconsciente, nada é arbitrário, “tudo é determinado, sobredeterminado, organizado e estruturado a partir de um núcleo de experiências infantis arcaicas, do desejo que incessantemente põe em movimento o aparelho psíquico, em busca de uma satisfação impossível” (p. 24). É no capítulo sobre a “Psicoterapia da Histeria”, nos Estudos, que ele encontra o conceito-chave para validar esta posição: o de fio lógico que atravessa as associações e as faz surgir conectadas pelas grandes categorias da similaridade e da contigüidade, ou, para falar como Lacan, da metáfora e da metonímia.

Sergio Telles sabe perfeitamente que a concepção do inconsciente tal como aparece nesse texto não foi mantida tal e qual ao longo da obra freudiana; mas sua leitura revaloriza a noção, enquadrando-a na de aparelho psíquico e utilizando-a como argumento para (mais uma vez ao lado de Lacan) recusar qualquer conotação romântica ao conceito de inconsciente. A idéia de fio lógico, entrecruzada com a de sobredeterminação, serve-lhe assim de guia para escutar o que lhe dizem seus pacientes, bem como para revitalizar, na obra freudiana, os momentos de narrativa como balizas do fazer analítico. Com efeito, é na Interpretação dos Sonhos, nos casos clínicos, na Psicopatologia da Vida Cotidiana e em textos semelhantes que o autor encontra o verdadeiro “tratado de técnica” que Freud cogitava redigir, e que, à luz do presente livro, podemos compreender por que nunca foi publicado: é que ele já estava escrito, em fragmentos dispersos aqui e ali, e certamente não só nos célebres “artigos técnicos” dos anos 1912-1914. É aliás por evidenciarem com clareza particular a presença do fio lógico que foram escolhidos estas e não outras sessões, como ele próprio nos diz ao apresentá-las: a construção, que na maior parte das vezes requer um longo tempo e um trajeto bastante laborioso, pôde nestes casos ser efetuada no lapso de uma sessão ou de um pequeno número – duas, três – delas.

Não é que Telles deixe de “interpretar a transferência” no sentido usual do termo, localizando no discurso do paciente como este está configurado seu analista num determinado momento. No exemplo que comentarei a seguir, vê-se claramente a atenção que ele presta a esse fator. O que ocorre é, em primeiro lugar, que a interpretação não é confundida pelo autor com a comunicação da interpretação – ele procura que lugar ocupa nas associações e fantasias do paciente, mas evita enunciá-lo de imediato, preferindo falar a partir do que inferiu, em vez de contar ao seu interlocutor o que inferiu. E em segundo lugar, este manejo sutil da transferência decorre da prioridade concedida à atividade de construção, que permite integrar o momento presente ao conjunto da vida psíquica do paciente tal como é possível figurá-la naquele momento particular. É como se o movimento da sessão fosse incluído mentalmente (e afetivamente) num quadro onde a abcissa do presente e a ordenada do passado, cruzando-se a cada instante, vão determinando o desenho das significações; este traçado, por sua vez, ilumina o processo à medida que vai surgindo contra o pano de fundo do enquadramento.

Antes de passar ao comentário de uma sessão tratada deste modo – que nos permitirá entrar mais a fundo no vivo das questões – uma palavra sobre o que Sérgio Telles diz a respeito do problema das publicações. Esta é uma questão que vem ocupando analistas e médicos nos últimos tempos, já que a consciência ética nos impõe hoje uma dificuldade que quase não existia no tempo de Freud. Explico-me: nos prefácios a Dora e ao Homem dos Lobos, Freud se preocupa com a possibilidade de outros médicos, bisbilhoteiros, lerem o caso como um “roman à clef destinado ao seu deleite particular”. Sabemos o quanto ele foi cuidadoso ao eliminar quaisquer referências que, no seu entender, pudessem identificar os pacientes, e como justificou o seu procedimento, argumentando com o interesse dos futuros pacientes e com o dever de contribuir para a formação dos analistas que viriam a atendê-los.

Mas o que era adequado em 1915 já não é hoje, principalmente por causa da difusão da Psicanálise, e porque os próprios pacientes podem ter acesso muito mais fácil às revistas e livros da nossa área. A solução recomendada por vários painéis médicos e analíticos – obter o “consentimento informado” do paciente, que implica mostrar-lhe o texto antes da publicação – é criticada por Telles, a meu ver com razão. O “consentimento informado” pode proteger, juridicamente, o autor do texto ou o editor da revista contra um eventual processo movido pelo paciente por quebra da promessa de sigilo, mas solicitá-lo não é um ato neutro no contexto do tratamento analítico. Isso porque não deixa de ser uma atuação do analista, um ato concreto dele que diz respeito aos seus interesses científicos ou profissionais, o que é em princípio legítimo se ele tiver tomado os cuidados necessários para tornar o mais difícil possível a identificação do paciente. Mas este tem com o analista um vínculo transferencial, e é no interior deste vínculo que será percebida a solicitação, a qual, com toda a certeza, produzirá efeitos no campo imantado das fantasias e das ansiedades do paciente. Telles não descarta essa possibilidade, mas recomenda a maior circunspecção na análise destas repercussões, ou, caso o tratamento já tenha sido encerrado, uma razoável certeza de que este novo gesto não virá produzir ecos excessivamente intensos.

Não podemos, em suma, ignorar que a liberdade de escolha por parte do paciente está efetivamente tolhida pelo vínculo transferencial (seja para dar, seja para recusar a autorização, durante como depois do trabalho conjunto). Sérgio Telles conclui que cada caso é um caso, e que o analista deve ponderar por qual solução se decidirá tendo em vista a singularidade daquela situação: em um caso pedir o consentimento pode ser adequado, em outro será preferível recortar apenas uma vinheta, em outros ainda o analista deve correr sozinho os riscos da sua opção. Em todo caso, a meu ver as páginas em que expõe o estado atual do problema, apoiando-se em ampla e atualizada documentação, constituem um dos pontos altos do livro, pela franqueza e pelo cuidado com que o autor se posiciona.

Como toda resenha é uma espécie de aperitivo do livro que comenta, quero oferecer ao leitor uma rápida degustação do que o espera quando adquirir este e se deixar levar pelas associações que inevitavelmente surgirão em sua mente. Vamos então estudar de perto uma sessão que evidencia o método de Sérgio Telles, pois é nele que reside o interesse maior do seu texto.

Qualquer uma das vinte serviria a este propósito; um pouco aleatoriamente, escolho a primeira, intitulada “Jonas”. Trata-se de um homem casado, a quem a gravidez da esposa perturba profundamente, e que um belo dia chega a sessão e conta, “num tom desafiador e provocativo”, uma fantasia aparentemente masoquista; que sua bela colega de trabalho, por quem se sente atraído sexualmente, urinasse em seu rosto.

A primeira reação de Telles é de surpresa: este homem nunca havia trazido nada semelhante. Primeiro ponto a ressaltar no que estou chamando “método”: sabemos que cada paciente, em sua análise, revela um certo “perfil”, um conjunto de regularidade psíquicas que lhe são próprias, e que de certo modo habituam o analista a esperar comunicações naquele particular estilo. Ora, estando organizado o inconsciente como Freud o descreveu, aquilo que destoa do padrão habitual não deve ser considerado como sem sentido, mas sim como um elemento totalmente motivado, que de algum modo deve poder se encaixar neste padrão. A alusão ao “tom provocativo” mostra a atenção do analista aos elementos ditos “infra-verbais”, que na verdade são o aspecto afetivo ligado a cada representação. Provocar quem? E por que? Uma interpretação estritamente “transferencial” acentuaria a provocação “comigo”, e seria comunicada a Jonas mais ou menos assim: “Trazendo hoje esta fantasia, você está buscando desafiar alguma autoridade que deposita em mim”, etc., etc. Não é assim que Sérgio procede: ele percebe que há desafio, mas evita a precipitação, e sobretudo deixa margem para que o conteúdo da fantasia possa se desdobrar. Bom leitor de Melanie Klein – embora não endosse o seu sistema de interpretação exaustiva do presente transferencial – ele se pergunta também por que a cena imaginada, além de excitar a libido de Jonas, também o angustia.

Sergio pergunta então, simplesmente, por que essa imagem excita o paciente. Este retorque que não sabe – o que seria aliás de se esperar – mas começa uma série de associações que vão permitir ao analista prosseguir no trabalho de construção, que nada mais é do que a criação de um contexto para aquela cena aparentemente despropositada.

Este contexto é elaborado tendo em vista os elementos obtidos ao longo da análise, e que se dispõem num eixo temporal. O elo mais imediato é a gravidez da esposa, que vem ameaçando Jonas porque ele vê nela o início de uma traição: a esposa irá abandoná-lo afetivamente, e concentrar todo o seu amor no bebê que vai nascer. Como vingança preventiva contra tal eventualidade, desde que soube da gravidez, Jonas vem apresentando um comportamento donjuanesco, embora nada tenha se concretizado em matéria de relações extraconjugais.

Mas por que ele é levado a ver na gravidez da esposa uma ameaça, e, mais precisamente, esta ameaça? Por que, por exemplo, não a encara como algo que virá cimentar a relação entre ele e sua mulher, consolidá-la através de um filho que fizeram juntos? A lente se abre para um ângulo mais amplo, tanto em termos temporais quanto nos personagens que serão invocados: traição é uma idéia que acompanha Jonas desde muito antes – vira no próprio casamento uma traição à sua família de origem, e, ainda pequeno, também vira uma traição da sua mãe no fato de esta dar à luz um irmão mais novo. O ódio assassino pelo irmão foi na época recoberto por uma “poderosa formação reativa” – o cuidado exacerbado, a proteção exagerada por ele, que se prolonga até a vida adulta de ambos – mas permanece ali, latente e atuante, como elemento determinante do “infantil” de Jonas. Quando se apresenta uma situação análoga – outra gravidez – o ódio é reatualizado: termo-chave na óptica de Telles, que serve para dar conta da infiltração maciça do passado no presente, justamente porque este passado é presente, não passou, não foi relegado ao museu.

Do contexto mais atual, portanto, temos um “zoom” para o contexto mais antigo, mas ainda apto a oferecer elementos de simbolização, na medida em que por assim dizer enquadra e sustenta o mais próximo: Freud é aqui, sem dúvida, a referência do autor. Uma outra associação abre mais um caminho: Jonas conta sobre um ladrão que, na fazenda de seu sogro, matou uma vaca e deixou apenas a “barrigada” (vísceras) dela. Agora é Lacan quem oferece um apoio para o raciocínio clínico: o significante barrigada (em negrito no texto de Telles) traz também o sentido de cria, filhote (o filho de Jonas no ventre da mulher). Barrigada portanto simultaneamente desejada e odiada, alvo de uma fantasia de evisceração descrita em termos classicamente kleinianos: Jonas quer “atacar sadicamente” a vaca-mãe, matar a ela e ao filho que carrega. (Um elo na interpretação, não explicitado ao paciente, mas claramente perceptível pelo leitor, é o da identificação de Jonas com o ladrão).

De onde provêm tanta fúria e tanto desespero? Sérgio se vale da noção de complexo de Édipo para esclarecer a origem deste ódio: é “os sentimentos do menino frente ao pai, à mãe e ao irmão que iria nascer que ele encontra a sua raiz.” Jonas jamais superou esta constelação, que se revelará atuante no cuidado exagerado com o irmão (formação reativa) e também no sintoma de impotência que apresentou por um tempo, claramente ligado ao medo de estar envolvido em outra gravidez (a rivalidade com o pai desempenha aí, também, um certo papel).

Vemos assim como as referências freudiana, lacaniana e kleiniana se combinam e se sucedem, cada uma proporcionando um vetor para a construção – ainda que, entre elas, a freudiana se destaque como principal. Sérgio Telles se pergunta então se a fantasia da colega urinando sobre o paciente pertenceria ou não a este contexto – sempre evitando a precipitação, o furor interpretandi – e decide intervir, na sessão, interrogando Jonas sobre “como vê a excitação, por que a fantasia o excita” (p. 56).

A resposta não deixa de ser insólita: o paciente se refere à falta de pênis das mulheres, e à “vergonha” (sic) que elas sentem ao urinar, “tanto que não o fazem diante de qualquer um”. Jonas se imagina deitado em baixo da colega atraente, observando seus genitais e o rosto envergonhado dela enquanto a urina escorre por suas pernas, talvez nem chegando até o seu próprio rosto. Assim, por baixo de seu enunciado masoquista, a fantasia se revela como de natureza sádica: quem goza com o sofrimento é Jonas, não a colega – num padrão que, sem ser idêntico, lembra o da transformação no contrário que engendra a formação reativa, tão saliente entre suas estratégias defensivas.

A construção pode então ser articulada: a fantasia em pauta corresponde à projeção sobre a colega da angústia decorrente da exclusão: exclusão de Jonas da díade esposa-bebê, assim como da díade sua mãe-seu irmão. Referência, portanto, ao complexo de castração, e a uma defesa contra ele, expressa na idéia de que as fêmeas sentem uma vergonha que a Natureza poupou aos afortunados portadores de um pênis. Como bonecas russas, dentro da colega está sua esposa, e dentro desta a mãe da primeira infância: Édipo e castração, neste caso, são os parâmetros que balizam o desenvolvimento psíquico do paciente.

Por fim, a leitura da transferência determinada por esta construção: Jonas conta sua fantasia num tom desafiador porque imagina que o analista se opõe à sua vontade de ter uma aventura, e assim o coloca no lugar do pai, a cujas proibições desobedecia sistematicamente. Também, num nível mais profundo, atualiza com o analista seu conflito com a mãe, que não o protegia, não “tomava o seu partido” (p. 58), e cuidava só do irmão mais novo, assim como o analista “cuida” somente do interesse da esposa. Comenta Telles: “na compulsão à repetição, o triângulo se reconstituía de várias formas. A mulher grávida era vista como a mãe grávida que exibia o fruto da traição, que o relegava por causa do filho mais novo, fruto do amor com o pai, deixando-o alijado, ciumento e raivoso. Na transferência, sentia que o analista se aliava à mulher, protegendo-a e conseqüentemente o escorraçando, o que o deixava cheio de ódio e desejos de vingança, que o levavam a atacá-lo”. (p. 59)

Seria interessante prosseguir esta análise com outros exemplos, mas creio que o que precede já nos dá uma idéia bastante clara de como pode ser estimulante a leitura do livro de Sérgio Telles. Um de seus pacientes qualificava a análise como “conversa de louco, em que um não diz coisa com coisa, e o outro não está nem aí” (p. 15-16). Esta descrição é somente em parte acurada: conversa de doido, sim – mas, primeiro, o paciente diz “coisa com coisa” (é o efeito da sobredeterminação, da organização complexa mas não confusa do inconsciente) – e, sobretudo, o analista está totalmente “aí”, atento a todas as ressonâncias do discurso, às afetivas como às semânticas, empregando todo o seu engenho e arte para fazê-las vibrar em conjunto e servir de elementos para a construção.

Aliando rigor teórico, sensibilidade clínica e um grande talento literário, Sérgio Telles faz de nós outros tantos interlocutores em suas “conversas de doido”. Que privilégio, o nosso!

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