Como tem sido noticiado, Lea T, o transexual brasileiro filho do jogador de futebol Toninho Cereso que se encontra no Brasil para participar dos eventos proporcionados pela indústria da moda, foi recentemente escolhido pela Maison Givenchy para estrelar uma de suas mais importantes campanhas promocionais. Mais ainda, Lea T acaba de ser incluída entre as 50 top models do mundo pelo site “model.com”, reconhecido internacionalmente.
Ora, as modelos das grandes casas de costura são apresentadas com aparato na mídia como os mais recentes padrões do que o consumo, esta forma peculiar e prevalente pela qual a cultura se expressa em nossos tempos, deve considerar como “a mulher”. Elas são padrões da feminilidade, são – como o próprio nome o diz – “modelos”, ou seja, imagens ideais a serem copiadas e imitadas pelo mundo afora.
O que pensar quando este lugar de mulher idealizada é ocupado por um transexual?
Temos que admitir que isso é algo desconcertante, que nos causa estranheza e nos desestabiliza. Cada vez que alguma coisa assim nos abala, tendemos a nos defender negando-a (no sentido de anulá-la, torná-la inexistente) ou a responder a ela de forma estereotipada com o preconceito, fazendo com que a incômoda coisa nova fique desqualificada, desprezada, vilificada.
É bem mais trabalhoso tentar entendê-la, vencer os escrúpulos iniciais e procurar rever os conceitos até então tidos como inabaláveis e por ela desafiados, como, no caso, o que é ser uma mulher, o que é ser um homem.
Na verdade, o transexual é aquele que leva a extremos radicais a questão da diferença anatômica entre os sexos, problema que nos assombra a todos. Parte central de nossa identidade, a questão da diferença sexual nos envolve antes mesmo de nosso nascimento (os pais se indagam se seus filhos serão homens ou mulheres) e assume intensidade traumática na primeira infância, quando a descoberta dos dois sexos dá ensejo às fantasias de castração, de tão ampla repercussão na constituição do sujeito. Ela é progressivamente soterrada no inconsciente por vários mecanismos no correr dos anos seguintes, mas nunca nos abandona inteiramente, podendo ser facilidade reativada em função dos fatos da realidade e da imaginação. A figura do transexual nos remete de volta ao enigma da diferença sexual, podendo atualizar antigas angústias ligadas a esta problemática.
É possível dizer que, em nossa cultura de massa, o mundo da moda, com seus protocolos de desfiles e sua poderosa criação de imagens divulgadas na mídia, constitui-se um local privilegiado da perene luta dos sexos, pois ali são permanentemente criadas novas versões das formas de representar as diferenças sexuais.
Manipulando o desejo ao ocultar ou exibir o corpo, a moda pretende determinar como a mulher e, mais recentemente, o homem devem (a)parecer. Lidando de forma livre e fantasiosa com a diferença sexual, a moda procura negá-la (mulheres se vestem como homens e vice-versa), exacerbá-la (mulheres super “femininas”, homens de uma “macheza” impossível), superá-la (o uso de modelos cada vez mais jovens, andróginos, angelicais, nem homens nem mulheres, seres de pura beleza) ou redefini-la (o uso de transexuais). Talvez por isso mesmo, o mundo da moda tem provocado crescente atração no grande público. Os desfiles de alta costura, antes acontecimentos destinados a grupos restritos, foram transformados em espetáculo de massa pela televisão.
A liberdade com a qual a moda lida com as diferenças sexuais não nos deve fazer esquecer que tais diferenças – marcadas no corpo, nos genes, na cultura – são um limite imposto pela realidade. É verdade que a história está marcada pela luta do homem para transcender e vencer os limites que a realidade lhe oferece. É justamente esta rebeldia, o desejo de modificar a realidade e transpor as limitações, o que faz com que o conhecimento e a arte possam progredir. Mas é preciso fazer uma discriminação entre os limites que podem ser transpostos e os que não, pois estes, ao serem desrespeitados, levam ao beco sem saída do delírio, da loucura, da morte.
O transexual – figura fortemente representada por Lea T – enfrenta um limite até muito recentemente tido como intransponível. Ao invés de anatematizar precipitadamente estes exploradores que caminham à beira do abismo, talvez devêssemos aguardar para ver o que nos trarão ao regressarem de suas expedições pelos confins dos mundos desconhecidos nos quais se embrenharam. Somente então saberemos se estão eles expandindo a experiência humana ou desperdiçando-a de forma irreversível.