De que maneira o mundo é governado e como começam as guerras? Diplomatas contam mentiras para os jornalistas e passam a nelas acreditar quando as lêem na imprensa.Karl Kraus (1874-1936)
Toda vez que se levanta a possibilidade de exercer algum controle sobre a programação da televisão no Brasil, constata-se uma grande rejeição. Quase que automaticamente, as pessoas se declaram contra a “censura”.
Talvez isso se deva a tardios efeitos traumáticos da ditadura militar e sua abominada censura, que suprimia do discurso veiculado pelos meios comunicação tudo aquilo que considerava “subversivo” aos interesses “públicos”.
Mas é necessário lembrar que a censura é muito mais antiga do que nossas ditaduras militares. Ela tem exercido um papel decisivo na historia da humanidade, na medida em que expressa a relação entre o estado e o cidadão.
Desde os tempos mais remotos até o presente, através da lei o estado regula a ordem, a moral e os costumes públicos, proibindo e permitindo, censurando ou aprovando condutas, idéias, comportamentos. Se o controle estatal já foi mais absoluto, com o desenvolvimento político mais moderno – o abandono da crença no poder divino dos reis e a implantação da democracia representativa iniciada com a Revolução Francesa – ele tem progressivamente amainado, especialmente no chamado mundo ocidental, ressalvando os momentos totalitários ou ditatoriais que nele ocorreram mais recentemente.
Um exemplo clássico de censura é o Index Librorum Proibitorum, no qual estão listados os livros que a Igreja Católica considera ofensivos a sua doutrina e que estão, consequentemente, vetados para os fieis, que são passíveis de severas punições caso desobedeçam tal mandato. Esse Index,, por mais espantoso que possa parecer, está em vigor desde o século V até o presente momento. Sua vítima mais ilustre foi Galileu.
No momento em que vivemos, o estado pode exercer censura sobre a circulação de informações, bem como cercear a liberdade de expressão de cada um dos cidadãos. Pensadores e organizações políticas estão particularmente vigilantes contra abusos do estado no exercício de seu poder, o que levaria ao controle dos cidadãos. Constata-se, atualmente, nos paises democráticos, que o estado tolera mais a circulação de informações do que a liberdade de expressão individual em termos de moral e costumes.
Como a censura é um dos modos de expressão da relação do estado com o cidadão, deve-se evitar a falsa idéia de que seja possível uma situação na qual esteja abolida toda e qualquer censura, como seria o desejo dos que levam a extremos seu individualismo ou daqueles egressos recentemente de regimes autoritários.
Por menos que interfira, o estado precisa garantir a ordem pública e essa implica em proibições que viabilizam a convivência social. Não é muito diferente o que Freud diz em “O mal estar na civilização”. Para Freud, a insatisfação própria do homem civilizado é decorrente de uma contingência irreversível: para que a vida em sociedade possa persistir, é absolutamente necessária a repressão das pulsões agressivas e sexuais. O homem civilizado não pode dar livre expressão aos desejos agressivos ou sexuais dirigidos aos seus semelhantes.
Abstraindo o aspecto social da censura exercida pelo estado em relação aos cidadãos, constatamos sua presença nas relações interpessoais. Por acaso, falamos sempre e exclusivamente a verdade para nossos interlocutores? Informamo-lhes, sem qualquer omissões, tudo o que se passa em nossos pensamentos? Dizemos tudo sobre nós mesmos e nossos sentimentos?
Pelo contrário, seguimos regras de convivência social, nas quais determinados assuntos estão proibidos, são afastados de antemão. Mesmo quando estamos na mais íntima das companhias, nem mesmo aí dizemos tudo. Por consideração, por amor ou respeito, omitimos uma série de coisas que poderiam desagradar ou ofender nossos entes queridos.
Voltemos agora à grande imprensa. Seria a censura política imposta por um regime ditatorial o único tipo de restrição sofrida pela mídia? Claro que não. Não podemos esquecer que a informação, tal como a conhecemos atualmente, é um bem de consumo que produzido por uma indústria. E essa indústria tem seus percalços. Os mais evidentes são aqueles ligados à economia – os investimentos nela feitos e os lucros esperados. Isso significa, muitas vezes, sua dependência de financiamentos do estado e do grande capital. Este último, por sua vez, produz outros bens de consumo que vêm atender às necessidades artificialmente criadas pela publicidade, que, por sua vez, é veiculada pela grande imprensa, completando o círculo de interdependência.
Vê-se que até chegar ao leitor, a noticia segue por tortuosos caminhos, atravessando múltiplas redes de interesses e seus respectivos sistemas de censuras.
Guy Debord, autor de “A sociedade do Espetáculo”, afirma que vivemos numa sociedade que nos afoga num mar de informações absolutamente triviais e nos afasta daquelas que realmente interessam: aquelas provenientes do poder político e econômico. Somos entretidos com inumeráveis fofocas sobre celebridades e aquilo que se passa nas altas esferas, onde são tomadas decisões que efetivamente nos atingem, fica ocultado por esse manto de futilidades. O estado e o grande capital criam suas versões dos fatos e as impõe à mídia, que as repassa para o publico como a verdade, a realidade.
Apesar do tom paranóico dessa tese, o que vimos depois do 11 de Setembro e das decisões de Bush é bastante ilustrativo. São exemplos da transformação de fatos em versões que atendem a interesses de propaganda política para a manipulação das massas. Baudrillard, por exemplo, diz que o “acontecimento” – o atentado de 11 de setembro – foi substituído por um “não acontecimento” – a guerra do Iraque, artificialmente declarada para ocultar o “ “acontecimento”
Mas não podemos negar que, dentro da própria mídia, há os que lutam para que a informação circule o mais livremente possível. Além do mais, a expansão da internet provoca uma radical mudança neste estado de coisas, praticamente inviabilizando um controle total da informação. Afinal foi através dela que as torturas de prisioneiros no Iraque foram rápida e facilmente difundidas pelo mundo.
Mesmo assim, essas idéias nos mostram como a censura é onipresente na cultura e que não é possível manter, frente a essa questão, uma posição simplista, dualista, digital – o de se ser “pró” ou “contra” de forma abrangente.
Ao invés de simplesmente rejeitá-la, o que seria uma ingenuidade, o que deve ser feito é tentar controlar a censura e influir em sua aplicação, avaliando cuidadosamente – caso por caso – onde, como, por que e com qual intensidade deve ela ser aplicada.
A televisão, por sua intensa penetração social, inclusive junto às crianças, merece especial cuidado quanto à censura. Não deixa de ser chamativa a excessiva repressão dos censores sobre a sexualidade e sua grande tolerância com a violência. Recentemente nos Estados Unidos, a rede de televisão CBS foi multada em 550 mil dólares por ter Janet Jackson mostrado um seio num programa de grande audiência.
Se é necessário poupar as crianças de cenas sexuais e agressivas excessivamente cruas, não devemos concluir que a televisão seja a responsável pela violência ou desvios da infância ou da juventude. Eles se devem menos à televisão do que a lares disfuncionais, à neurose familiar, ao abandono afetivo. Aliás, o fato de as crianças ficarem horas frente à televisão é apenas mais uma evidência do descaso dos pais, ao qual estão expostas.