Canibalismo

Canibalismo (*)

Sérgio Telles

Tempos atrás, presenciei um sobrinho de dois anos e meio apontar para a barriga grávida de sete meses de sua tia e dizer num tom de raivosa censura: “Pensa que eu não sei?!… Você comeu o seu filho!!!”
Todos rimos com sua tirada e ele saiu da sala aparentando uma indignação maior ainda com nosso descaso frente a tão grave acusação.

Meu sobrinho estava expressando uma fantasia típica daquilo que a psicanálise chama de fase oral canibalística ou oral-sádica, que se instala quando a criança não mais suga o leite e passa a mastigar os alimentos. Nessa fase predominam as fantasias de comer a mãe ou a de ser por ela comida.

Tendo como modelo a ingestão de alimentos através do sugar ou do mastigar, a ideia de engolir a mãe é uma forma imaginária de a criança expressar sua dificuldade em se discriminar da mãe e dela se separar, representando então seu desejo de manter a ligação fusional com ela, o estar dentro dela, ou tê-la dentro de si. Com o nascimento dos dentes, o ingerir a mãe adquire uma conotação agressiva. Assim como os alimentos são triturados com a mastigação, a criança fantasia destruir o corpo da mãe como expressão do ódio por não ter ela atendido a todos os seus desejos. Perceber tais desejos agressivos deixa a criança culpada, esperando ser punida e temendo a retaliação por parte da mãe, que, seguindo a lei de talião, a seu ver, poderia devorá-la.

Assim os processos fisiológicos corporais da ingestão de alimentos e a subsequente excreção dos dejetos são modelos para as representações psíquicas que estabelecem as referências básicas sobre o que é interno ou externo à mente, ao que está dentro ou fora do corpo, ao que é do eu ou do outro. São protótipos dos importantes mecanismos psíquicos de incorporação (“vou comer minha mãe, assim a retenho dentro de mim e não me separo dela”), introjeção (“vou guardar essa imagem de minha mãe em minha mente, pois não quero e não posso perdê-la”), identificação (“vou manter comigo alguns traços e elementos que representam minha mãe e eles vão organizar meu psiquismo, vão me permitir ser como ela em alguns aspectos importantes de mim mesmo”) e de projeção (“vou expulsar de mim estes sentimentos ou pensamentos que não tolero reconhecer como meus”). Claro que estes não são processos voluntários e conscientes, e sim inconscientes.

Nota-se que a fantasia mais arcaica de comer a mãe evolui para uma representação mais simbólica, na qual características da mãe passam a integrar o psiquismo do sujeito via identificação.

As fantasias próprias da pulsão oral possivelmente estavam na base do comportamento canibal apresentado por grupos humanos no inicio dos tempos, quando guerreiros comiam os inimigos mais valorosos visando se apoderar de suas qualidades. Com a evolução dos costumes sociais, este hábito foi substituído por sucedâneos culturalmente aceitos e valorizados, como os banquetes rituais ainda hoje praticados nos quais a refeição em comum reforça os laços de amizade e a aliança entre os comensais. De ato bárbaro reprimido, o canibalismo é sublimado e se transforma na eucaristia, o sacramento mais sagrado do cristianismo, através do qual os fieis comem a carne e bebem o sangue do Redentor.

Essas fantasias orais universais pelas quais todos passamos e que sofreram um trabalho de repressão e sublimação, em casos graves de psicose podem regredir à sua mais primária formulação e serem concretizados na realidade como atos de canibalismo. É o que ocorreu recentemente em Garanhuns com um grupo autodenominado Cartel. Jorge Beltrão e duas seguidoras mataram e esquartejaram pelo menos três mulheres, comeram parte de seus corpos e usaram a carne na confecção de empadas e pastéis. O grupo mantinha uma menina de 5 anos, possível filha de uma das mulheres mortas, que foi quem indicou o local onde os corpos haviam sido enterrados, no quintal da casa onde moravam. O grupo foi preso por ter Jorge Beltrão usado o cartão de crédito de uma das mulheres cujo desaparecimento fora notificado à polícia. Na casa foi encontrado um livro “Relato de um esquizofrênico”, escrito por Beltrão, no qual relata suas vivências delirantes e dá detalhes dos crimes.

Em 2001, caso mais espantoso ainda ocorreu em Rotenburg, Alemanha. Arwin Meiwes expressou seus desejos canibais num chat da internet e um homem, Bernd Brandes, apresentou-se para satisfazê-los. Essa inacreditável associação, na qual uma pessoa anuncia querer devorar alguém e outra que se apresenta para ser devorada, só pode ser compreendida dentro da lógica própria das arcaicas fantasias inconscientes já mencionadas.  Poderíamos pensar que, em regressão psicótica, os dois homens encenaram concretamente a fantasia expressa por meu sobrinho de 2 anos e meio:  um deles ocupa o lugar da mãe devoradora de bebês, o outro é um suicida possivelmente tomado pela fantasia de ser devorado por uma mãe sádica. São hipóteses possíveis sobre tão inusitado acontecimento, cuja comprovação necessitaria um trabalho direto e minucioso com os praticantes deste ato extremo.

A importância do saber psicanalítico é justamente mostrar que há um sentido na desrazão. Mesmo nos atos mais incompreensíveis e distantes do pensamento racional há uma lógica secreta a ser rastreada no passado do paciente, em suas relações afetivas, em sua vida psíquica inconsciente.

A psicanálise permite formular uma afirmação surpreendente – quanto mais violento é o ato homicida, quanto mais em sua execução o assassino rompe com a integridade do corpo da vítima, esquartejando-a, eviscerando-a, etc, mais ele está concretizando na realidade as fantasias inconscientes próprias aos primeiros estágios de vida, referentes aos embates imaginários do bebê com sua mãe, como mostrou Melanie Klein.

(*) Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 28/04/2012

Compartilhe nas redes

Facebook
Twitter
LinkedIn