Bolsonaro – Trump – Agamben – tipos diferentes de onipotência no trato da questão do coronavirus.
Sérgio Telles
Enquanto reconhecidas autoridades sanitárias mundiais preconizam o confinamento e a quarentena das populações como forma de evitar a propagação do coronavirus, dois políticos – Trump e Bolsonaro – se colocam na posição oposta, denunciando o que consideram ser uma “histeria” alimentada por uma imprensa movida por interesses escusos e teorias conspiratórias.
Tal posicionamento, criticado e repudiado ferozmente por todos, tem um inesperado reforço fornecido pelo importante filósofo italiano Giorgio Agamben.
Em fevereiro último, quando o vírus não tinha produzido na Itália todo o estrago hoje conhecido, o filósofo, usando seu conhecido aparato teórico, se opunha ao confinamento e quarentena da população por vê-los como manobras para estabelecer um “estado de exceção”, com o qual o poder estatal, visando seus próprios interesses, restringe liberdades essenciais da população. Agamben acredita que, assustada, a população aceita tais restrições que reduzem sua existência à expressão mais simples, à mera sobrevivência física despojada de toda riqueza ética, simbólica e cultural da vida em sociedade, condição que denomina de “vida nua”.
É interessante contrapor a análise de Agamben com a realidade, que mostra as populações atingidas acatando de forma consciente e colaboradora tais medidas, não por motivos egoístas e mesquinhos, que se atenham à mera “vida nua”, à simples sobrevivência física, e sim por respeito ético à própria vida e à do Outro, especialmente a dos mais vulneráveis, no caso, os idosos.
É verdade – como diz Agamben – que as deliberações sobre o confinamento e quarentena estabelecem um “estado de exceção” e que esse poderia expressar desejos totalitários do poder, como já ocorreu tantas vezes na história, mas essa tese não pode ser aplicada sem que sejam examinadas as situações específicas em jogo.
No caso em questão, a atitude de Trump e Bolsonaro contraria a hipótese de Agamben, pois ao invés de defenderem o “estado de exceção”, aqueles governantes propugnam o contrário, ou seja, seu encerramento. É claro que não pelos motivos éticos defendidos pelo filósofo – o respeito aos direitos de ir e vir, de se reunir e congregar, as considerações éticas em torno da vida – e sim para “salvar a economia”, que estaria ameaçada justamente pelas medidas do “estado de exceção”. Essa atitude é vista por muitos como a expressão mais crua da ganância do capitalismo, que, como sempre, coloca o lucro acima de qualquer consideração humanitária.
Mais ainda, Trump e Bolsonaro são contra o “estado de exceção” porque ele interfere diretamente em seus objetivos políticos imediatos, ele ameaça seus planos para se manterem no poder.
Essa discrepância entre a realidade fática e as considerações teóricas de Agamben nos faz pensar que se em outros momentos (os grandes totalitarismos do século XX) o controle das massas através de confinamento, proibições de encontros sociais etc, era a expressão máxima do poder do estado, hoje em dia – como mostra a postura de Trump e Bolsonaro – esse controle passa por outras vias, especialmente pela manipulação e controle social através das redes da internet, como os “gabinetes de ódio” (Bolsonaro), as maquinações tipo “Cambridge Analytica” (Trump).
O episódio é ilustrativo por expor duas faces da onipotência no trato de um problema de máxima gravidade e magnitude – a onipotência do conhecimento e da cultura, representada por Agamben, e a onipotência da ignorância e má fé, na postura de Trump e Bolsonaro.
Ainda bem que a realidade, como sempre, terminou por se impor. Trump foi forçado a rever suas posições (o que provavelmente deve ocorrer em breve com seu discípulo Bolsonaro), e Agamben, recebeu diversas críticas apontando os equívocos de seu argumento.
A eclosão da pandemia nos força a reconhecer nossa vulnerabilidade e fragilidade. Orgulhosos com o saber científico conquistado que nos permite avanços tecnológicos inauditos, somos forçados a retomar os mesmos procedimentos adotados séculos atrás para controlar as pestes que periodicamente se abateram sobre a humanidade, das quais pensávamos ter-nos livrado definitivamente.
Situações inesperadas e emergenciais como a que estamos vivemos com a pandemia do coronavirus geram necessariamente angústia e incertezas. É só a duras penas que nossa natureza humana – da qual não podemos escapar – nos permite domar a profunda irracionalidade que domina tanto de nossos atos, especialmente em situações de perigo e ameaça.
Frente ao desconhecimento com a situação nova, é necessário coibir a negação da realidade, as soluções onipotentes e mágicas derivadas de visões delirantes ideológicas, a ação dos delinquentes que procuram tirar proveito na confusão que então se instala.
Precisamos confiar que no meio do tumulto, persistem aqueles que procuram manter a lucidez e que, agindo de boa-fé, continuam lutando para encontrar as soluções possíveis. Tem sido assim na sofrida história da humanidade.
Aos interessados, seguem abaixo os links dos dois pequenos textos de Agamben.
Giorgio Agamben: “Clarifications”
https://ilmanifesto.it/lo-stato-deccezione-provocato-da-unemergenza-immotivata/