Alô, alô, Realengo

O trauma é um acontecimento de tal intensidade que desorganiza o psiquismo, sendo necessário um longo e paciente trabalho para integrá-lo e neutralizar sua força desagregadora que paralisa o pensamento, impedindo o exame adequado de suas conseqüências.

Uma das formas de elaborar o trauma é colocá-lo em palavras, representá-lo, simbolizá-lo, o que permite não só a expressão dos afetos por ele despertados, como também a produção de respostas possíveis a seus desorganizadores desdobramentos. O acontecimento traumático pode ser incontrolável e imprevisível, como é o caso dos grandes desastres naturais (tsunamis, por exemplo), contra os quais nada podemos fazer a não ser tentar reparar os estragos ocorridos. Mas quando o trauma é provocado pela mão do homem, podemos e devemos elaborar hipóteses para compreender as circunstâncias e motivações subjacentes ao ato, para assim prevenir ou controlar novas possíveis manifestações do mesmo.

A matança de Realengo é um trauma não só para as famílias que perderam de modo brutal suas crianças, mas para toda a sociedade. Muito já foi falado sobre a patologia do assassino Wellington Menezes de Oliveira. Seja qual for o diagnóstico que se lhe atribua – psicose ou transtorno de personalidade – não se pode negar que o fato de ter sofrido “bullying” tenha alguma importância na evolução do quadro.

Os assassinatos ocorreram no momento festivo do aniversário de 40 anos da escola, que, por este motivo, estava convidando ex-alunos bem sucedidos para ali fazerem palestras. Ao chegar à escola com o intuito de matar as crianças, Wellington disse que estava ali para fazer uma palestra. Explicitava assim seu desejo de ser reconhecido e valorizado, e sua macabra “palestra” poderia ser entendida assim: “não tenho motivo algum para festejar nesta escola onde tanto sofri e penei; agora todos vão sofrer e penar como eu”.

A carta que deixou é reveladora. Nela a sexualidade ocupa posição central. Os “impuros”, “fornicadores” e “adúlteros” não poderão tocar seu corpo “virgem”, declarações que talvez ecoassem o que ouviu durante anos ao acompanhar a mãe adotiva ao culto das Testemunhas de Jeová. O fato de ter matado preferencialmente meninas aponta uma dificuldade especial com o gênero feminino – algo que remeteria à forte ambivalência frente às mães, tanto a biológica – uma psicótica impossibilitada de exercer a função materna, quanto a adotiva – falecida em outubro passado e ao lado de quem desejava ser enterrado. Chama também a atenção o fato de ter deixado sua casa para os “animais abandonados”, que são “seres muito desprezados e precisam muito mais de proteção e carinho do que os seres humanos que possuem a vantagem de poder se comunicar”. Estaria ele – uma criança adotada –identificado com tais animais abandonados? Estaria também declarando sua incapacidade de expressar seus sentimentos mais profundos, que só puderam aparecer de forma disruptiva e violenta nos assassinatos?

Colegas e familiares declararam que Wellington era continuamente vítima de ataques por parte dos outros alunos, coisa que ele mesmo confirmou nos vídeos divulgados esta semana. Tinha um único companheiro (“fanho”) e os dois eram chamados de “retardados”, especialmente pelas meninas. É também significativo o fato de ter poupado um aluno para quem disse “não vou te matar, gordinho”, talvez por acreditar que o menino, como ele próprio, fora objeto de “bullying” por parte dos demais.

O psicanalista Guillermo Bigliani, co-autor do livro “Humilhação e Vergonha – Um diálogo entre enfoques sistêmicos e psicanalíticos” (Editora Zagadoni, a ser lançado em maio), diz que o “bullying” marca aqueles que dele sofreram, impondo-lhes duas saídas – a de “vítima privilegiada”, na qual o sujeito, tomado por um profundo rancor, fica fixado numa crônica melancolia, ou a de “vingador”, na qual o sujeito oscila entre a depressão e as atuações psicopáticas anti-sociais, o que, podemos pensar, teria acontecido com Wellington.

Mas afinal, o que é o “bullying”? É o nome novo para uma antiga realidade – o mecanismo de psicologia grupal que acontece nas escolas no qual uma criança é escolhida como saco de pancadas pelo grupo, que nela projeta tudo que não tolera em si mesmo. Habitualmente isso ocorre com as crianças mais frágeis, que não conseguem se defender, sofrendo passivamente as maiores agressões.

Ao se observar com mais atenção, logo entendemos que o “bullying” não acontece apenas entre as crianças. Existe em todos os grupos humanos e em todas as faixas etárias, sendo responsável pela formação dos “bodes expiatórios”, pessoas usadas pelos grupos para nelas descarregarem seus sentimentos negativos. Mais ainda, é a base de todo e qualquer preconceito contra pessoas e minorias, e não seria exagero dizer que sua manifestação social macroscópica mais radical é a guerra. Estamos falando da destrutividade e das múltiplas formas pelas quais ela se manifesta nos atos humanos.

Assim, a necessária luta contra o “bullying” nas escolas é parte de um esforço maior que visa a conscientização dos aspectos violentos e agressivos existentes em todos nós, decorrentes daquilo que Freud chamou de “pulsão de morte”.

“Nada do que é humano me é estranho”. Só percebemos a profundidade deste aforisma de Terêncio em circunstâncias-limite como esta da matança de Realengo. É fácil dizer que foi um “monstro” quem a realizou. É mais complicado reconhecer que foi um homem o autor deste gesto monstruoso, que os homens fazem gestos monstruosos. Alguém pode garantir que não agiria da mesma forma que ele, se tivesse vivido em condições de vida semelhantes às dele e contasse com os mesmos recursos genéticos, intelectuais e emocionais dos quais ele dispunha?

Freud cita Platão que dizia que o homem virtuoso se contenta em sonhar o que o homem perverso executa. É claro que há uma diferença fundamental entre as duas posições. Mas temos de reconhecer que a distância entre o homem virtuoso e o perverso não é tão definitiva quanto gostaríamos que fosse.

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