Perambulando pelo MoMA (Museum of Modern Art de Nova York), fui fisgado por uma pequena tela exposta num lugar de pouca visibilidade. Era a “Interior com mãe e irmã do artista“, quadro de 1893 assinado por Vuillard, um pintor que até então não conhecia.
Meu interesse fora despertado pela forma com a qual o artista dispusera no espaço as figuras de sua irmã e de sua mãe, deixando patente a grande dificuldade existente no relacionamento das duas. Seu quadro era um sofrido depoimento de um conflito familiar do qual ele mesmo – Vuillard – não estava isento, desde que era seu cronista e historiador.
A mãe, com sua figura maciça vestida de preto, possui uma grande força gravitacional. Sua face severa e seu gestual decidido, quase masculino – as pernas abertas muito afastadas, as mãos nos joelhos e um dos ombros desafiadoramente mais elevado – dão-lhe a aura de um inquestionável poder. Ali está ela – impositiva, inquisitorial, exercendo a ferro e fogo sua inflexível tirania. Um denso retângulo negro de onde emergem as manchas brancas das mãos e da face, tão concreta e robusta quanto a cômoda marrom que lhe fica atrás.
A seu lado, a irmã – uma mulher jovem, frágil, que se inclina frente a esse monólito negro. Não lhe é possível ficar ereta, de pé, nem ocupar um lugar confortável na sala. Naquele recinto, a única posição possível é a curvada, em reverência à mãe, que parece exigir tais mesuras e as recebe de modo impassível, indiferente, como se sequer as notasse, mas deixando claro que não toleraria qualquer negligência na prestação dessas homenagens.
A imagem da irmã é muito evocativa. Lembra um bambu dobrado pelo forte vento centrípeto que converge para o poder materno ou uma árvore impedida de crescer por falta de espaço. Ali, o definitivamente o espaço não é dela; é da mãe, que nele reina inconteste.
À primeira vista, ela parece inclinar-se em reverência à mãe, prestar homenagens à sua soberania. Observando melhor, vê-se o medo no olhar assustado, em seu rosto ensombrecido. Temerosa, ela resvala de costas pela parede, como se na presença de uma fera para a qual não se ousa dar as costas por se temer o bote fatal.
Ela orbita calada em torno do terrível colosso negro, afundando maciamente na parede, fundindo-se com o papel colorido que a reveste, cujos matizes se concentram nos grandes quadrados de seu vestido elegante. É como se fosse uma extensão do próprio papel de parede. Ou um utensílio doméstico, um móvel a mais da casa.
Sua figura carece de consistência e solidez, parece atravessar as paredes, fluindo de um aposento para o outro como um débil fantasma sem poder de assombrar quem quer que seja, muito menos a inabalável mãe.
A irmã não tem existência própria, vive em função da mãe, que a ignora, desprezando sua solicitude, sua vontade de agradá-la e servi-la. A mãe só tem olhos para o filho pintor, a quem olha de frente, com exclusividade.
Com seu quadro, Vuillard demonstra ter plena consciência da tensão quase mortífera que existe entre a irmã e a mãe. Ao preferir não registrar sua própria figura em cena, estaria tentando afastar-se desse conflito, afirmar que dele não participa? Fora esse seu intento, não teve sucesso, dado que sua presença se faz evidente por ser aquele que registra na tela o acontecimento e, mais importante, por ser o inequívoco objeto do olhar materno.
Assim, Vuillard é o terceiro personagem do drama familiar – o irmão, o filho – que, apesar de ausente da cena está nela inescapavelmente incluído, desde que é quem a retrata, desde que é sobre ele que repousa o olhar da mãe.
Posteriormente conheci um pouco mais da vida e da obra de Vuillard. Soube então de sua longa ligação com a mãe, com quem viveu a vida inteira, sem constituir família própria. A mãe era costureira e tinha um atelier em sua residência. Viria daí o grande interesse de Vuillard por tecidos, texturas e interiores decorados, tantas vezes tomados como motivos em suas ricas obras.
Observando outros quadros de Vuillard, penso ter descoberto um outro, chamado “A Conversa“, pintado em 1891 – ou seja, dois anos antes do “Interior com a mãe e a irmã do artista” -, no qual a tensão entre mãe e filha se esboça de maneira mais contida.
Pelo que se vê na tela, a conversa evocada pelo título da obra não poderia ser muito amistosa. As duas mulheres estão em campos opostos, distantes uma da outra, tendo entre si uma mesa e uma cadeira. A posição da filha com a cadeira evoca o uso que dela os domadores de circo fazem no picadeiro – um instrumento para espicaçar as feras e delas se defender. Neste quadro a irmã parece um pouco mais forte, tem mais energia, consegue ficar de pé sem se curvar, pode se defender, manter a mãe (a fera) à distância, ao contrário do outro, onde se esgueira pelas paredes, tentando passar desapercebida, aprisionada num espaço claustrofóbico. Como se quisesse deixar clara a ligação entre os dois quadros, Vuillard mostra, pendurado num cabide ao fundo de “A Conversação” o mesmo vestido de xadrez que a irmã usaria posteriormente em “Interior com mãe e irmã do artista”.
Que o drama da irmã era percebido dolorosamente por Vuillard fica, pois, patente nesses quadros. Mas ele não se contentou com a mera denúncia ou registro do mesmo. Ativamente tentou ajudar a irmã, tirá-la da órbita da mãe, providenciando-lhe um casamento com seu maior amigo, Kerr-Xavier Roussel. A relação dos dois namorados é registrada por Vuillard no belo quadro “Interior com mesa de trabalho“, que os retrata no atelier de costura da família.
Infelizmente, sua tentativa fracassou. Roussel estava afetivamente envolvido com outra mulher e manteve a ligação durante todo o casamento. Pode-se ver a desventura desse matrimônio arranjado no quadro “A família depois do jantar“.
O que teria efetivamente feito Vuillard para solucionar o conflito familiar está perdido para todo o sempre e só a eles interessava. Mas Vuillard usou essa dolorosa experiência emocional para produzir uma obra de arte que continua viva e em interlocução com os que a vêem hoje. A infelicidade e a tristeza que via ante seus olhos enquanto pintava “Interior com mãe e irmã do artista”, sua compaixão com o sofrimento de seus entes queridos, continua tocando profundamente aqueles que a vêem, proporcionando-lhes um maior conhecimento sobre si mesmos e seus semelhantes.