Resenha de A SEGUNDA ESPADA, livro de Peter Handke – Sérgio Telles

A Segunda Espada – Peter Handke (*)

Sérgio Telles

 

A SEGUNDA ESPADA, primeiro livro de Pater Handke depois de receber o Prêmio Nobel em 2019, tem o título explicado nos versículos de Lucas da epígrafe – um trecho do Evangelho que suscita interpretações divergentes: há legitimidade no uso da força e da violência?

É esse um dos temas do livro. O narrador conta que, um dia, resolve finalmente concretizar uma vingança planejada durante décadas, para resgatar a honra de sua mãe, atingida por uma jornalista que a acusara de nazista.

A ação do livro se dá nas férias de Páscoa que ocorrem em maio na França (“uma história de maio” – é o subtítulo do livro). O narrador mora na periferia de Paris, naquele momento deserta, pois muitos viajaram. Os que ali ficaram são os miseráveis, os imigrantes, os bêbados, os solitários, lixeiros, com quem o narrador confraternizava de longa data. O que é um tanto surpreendente por ser ele um homem letrado, intelectualmente distante daqueles companheiros. Tudo fica mais claro quando se entende que, na verdade, ele procurava um assassino para executar a mulher que caluniara sua mãe. Desiste da busca ao constatar que aquela era uma incumbência intransferível, somente a ele cabia realizá-la.

Para cumprir sua missão vingadora, desloca-se em caminhadas, trajetos de trem, bonde e ônibus, mais uma vez convivendo com os deserdados, os humildes e desprezados, os que já perderam toda esperança. Tendo transitado por diversas localidades nos arredores de Paris, aproxima-se de Port-Royal-des-Champs.

Sente então uma grande fome, “uma fome selvagem, violenta, a fome fome, sem um objeto palpável, para não dizer comestível, uma fome que se localizava ou que tinha seu lugar de origem, ou seja lá o que fosse, não na barriga nem embaixo dela em meio a entranhas, mas no alto, na pele da testa sob o crânio, a mais devoradora das fomes que não poderia ser acalmada e muito menos saciada, de maneira duradoura, por nada. (…) Dessa vez eu tinha fome de Port-Royal-de-Pascal”.

O que seria essa “fome de Port-Royal-de-Pascal”?

O revelador trecho parece indicar a forte carga simbólica que Port-Royal-des-Champs tem para Handke, que já ambientara ali a ação de um outro romance – ‘DON JUAN narrado por ele mesmo”.

No século XVII, em Port-Royal-des-Champs se localizava o mosteiro jansenista em que Pascal e Racine estudaram, e onde foram produzidos importantes estudos de gramática e lógica – possível alimento que saciaria a fome do narrador.

Em Port-Royal-des-Champs, o narrador relata importantes ocorrências.

A primeira delas é o reencontro com o grafite numa parede que celebra a derrota dos nazistas em 8 de maio de 1945.  Isso mostra como a questão do nazismo é central no livro, desde que o motivo de sua vingança é justamente a falsa acusação de nazista levantada contra a mãe do narrador. Ao contrário do foco habitual nos efeitos destrutivos do nazismo sobre judeus e demais vítimas escolhidas, Handke – tal como Sebald, embora de forma menos incisiva – expõe o estrago que o nazismo provocou na própria Alemanha e nas gerações do pós-guerra alemão. As indagações sobre a atuação dos pais durante o Terceiro Reich, recorrentes também em Sebald, nos levam ao problema das transmissões transgeracionais, ao silêncio em torno de vivências traumáticas e vergonhosas, de danosas consequências psíquicas devido à formação de criptas (Torok e Abraham).  As próprias ideias que assombravam o narrador na infância, de que pertenceria a uma família de assassinos e que ele mesmo estava destinado a ser um assassino, bem poderiam ser um sintoma da transmissão transgeracional de algo não dito do passado da família e da história em geral.

A menção à queda do nazismo e liberação da França no grafite de Port- Royal é muito oportuna por nos lembrar que a liberdade e a democracia que usufruímos hoje foi fruto de muita luta e que deveríamos tentar preservá-la a todo custo, combatendo o surpreendente surto de direita e a fascinação por líderes populistas e autoritários que surge atualmente em vários lugares do mundo.

Em Port-Royal, o narrador recorda a visão crítica de Pascal sobre a justiça, ao descrevê-la como uma pantomima – “não fosse o chapéu de quatro pontas, ninguém aceitaria a autoridade dos juízes”. Os pensamentos de Pascal sobre a justiça ecoam na fala do vizinho que o narrador encontra em Port-Royal, um juiz que discorre sobre a prática criminosa da justiça e a impunidade que a acompanha, evidência de que o problema se mantém inalterado de Pascal até o presente.

Em Port Royal o narrador recorda como atormentava a mãe com seus interrogatórios sobre o comportamento dela durante o nazismo – comportamento compartilhado com Sebald, que fazia o mesmo com seus pais – o que lhe dá uma perspectiva diferente sobre sua vingança. Se ele mesmo torturava a mãe com tais acusações, como poderia se vingar da mulher que fizera o mesmo?

No correr da narrativa, ele relata que além da jornalista que atingira sua mãe, ele tinha muitas outras mulheres que se tornaram suas inimigas e perseguidoras. Diz ele: “Antigamente havia uma palavra corrente para referir-se a Satã: ‘o impedidor’. Mulheres assim sempre voltavam a se revelar como “impedidoras”. As mulheres são, pois, satânicas, “demônias” – o que é bem significativo dado o cuidado com que ele, enquanto autor, escolhe o peso e o sentido das palavras a serem usadas em sua escrita. A própria mãe aparece num sonho como um ser grotesco sem um olho: “Era ela, minha mãe, bem como uma estranha assustadora. Ou ao contrário: havia ali uma estranha assustadora que me olhava com um único olho arregalado, como se o outro olho tivesse desaparecido em meio a uma inflamação, e ela era minha mãe”.

Um   leitor atento vê nesses trechos indícios de grandes dificuldades do narrador no trato com figuras femininas, que remetem possivelmente a dificuldades originais com sua mãe. Essa constatação permite uma fácil transposição para aspectos da biografia do autor, pois é sabido que sua mãe cometeu suicídio, depois de longos períodos de depressão, tema de “A sorrow beyond Dreams”, um dos livros mais conhecidos de Handke.  Assim, a estrutura ficcional de uma vingança contra alguém (a jornalista “malfeitora”) que atacou a mãe pode ser entendida como mais uma elaboração de seu luto, uma projeção de seus próprios desejos agressivos, a punição da “malfeitora” como uma forma distorcida de reparar os ataques que ele mesmo fizera anteriormente à mãe.

A passagem por Port-Royal provoca efeitos também na escrita do narrador, aspecto do livro mais interessante do ponto de vista literário. O texto é muitas vezes interrompido por um questionamento que discute se tal ou qual termo é o mais adequado naquele momento, a pertinência de manter ou não uma determinada expressão e, especialmente, mostra a intolerância que o narrador tem quanto a metáforas, aproximações, símiles. (“não, nada de ‘tal como’”, “outra vez você repete ‘ao mesmo tempo’”). Sabe-se que a gramática de Port-Royal tinha um distanciamento crítico da retórica aristotélica e do uso das figuras de linguagem, preconizando uma escrita limpa, que acompanhasse a lógica do pensamento. Assim, o próprio texto do narrador, com sua secura despojada, seu permanente questionar sobre a propriedade e pertinência de palavras e locuções, não seria tributário dessas posições?

A autoconsciência do texto se evidencia também nas frequentes declarações do narrador de que, como autor, pode “decidir” os rumos da história ou como ela deve ser escrita. Em algum momento, depois de ter percebido a própria violência e a corruptibilidade da justiça, se pergunta se cabe uma vingança sangrenta, um assassinato, na história que escreve, ou, mais ainda, se há espaço para a “malfeitora” em sua história. Como autor, num ato de escrita, poderia “decidir” simplesmente suprimi-la, extirpá-la da história. Não seria essa a melhor vingança?

Tal questionamento mais uma vez quebra as barreiras entre a realidade diegética, ou seja, a realidade ficcional criada na escrita literária, e a realidade do autor, que está produzindo o texto, criando seus personagens e definindo como eles atuarão. Além dessa ruptura estrutural, com ela o autor propõe uma outra questão. Caso “decida” eliminar a “malfeitora” que atingira a honra de sua mãe, como ficaria o próprio texto, se nele tal personagem ocupa importante papel, pois é a razão da vingança a ser perpetrada? Caso ele extirpe o personagem, a própria história não desabaria e necessitaria ser recriada sobre outros alicerces?

Num trecho um tanto obscuro, o narrador contrapõe os “objetos contemporâneos” aos “objetos originais ou clássicos”, o que pode ser entendido como uma crítica ao consumo e a obsolescência planejada que atravanca com lixo ainda mais a natureza que ele tanto preza. Ao contrário de tempos outros, quando os objetos eram feitos para durar e se tinha uma relação afetiva com eles, o consumo impõe uma troca constante desses artefatos, que mal se distinguem uns dos outros, que são feitos mesmo para serem esquecidos, abandonados, trocados.

A ideologia do consumo tem implicações mais profundas, na medida em que preconiza o “novo” como o bem supremo, algo valorizado em si mesmo, o que implica numa desconsideração do “velho”, que passa a ser visto como algo a ser descartado, eliminado e trocado. Uma das consequências disso é que a cultura – que se acumula e enriquece no correr dos tempos, passa a ser desvalorizada e descartável, pois, evidentemente, não é algo “novo” e sim desprezivelmente “velho”.

A escala em Port Royal talvez indique o necessário resgate de nossos valores socioculturais tão penosamente adquiridos – a lenta formação e acumulação da cultura, a difícil implantação da democracia e da paz, em contraposição ao nazismo, ao fascismo, ao totalitarismo, ao belicismo, à vulgaridade do consumismo, que proporciona a avalanche do “novo” e o hábito de descarte, da obsolescência planejada. Não devemos esquecer que um objeto de arte é o oposto completo do objeto “novo”, a ser descartado em breve.

Por fim, como vimos, Port Royal teria tido ainda um derradeiro efeito sobre o narrador, influenciando-o com suas propostas gramaticais.

Ao confundir a narrativa com a materialidade do texto e reflexões sobre a própria escrita, com seu A SEGUNDA ESPADA, Handke produz um livro simultaneamente incômodo e instigante.

 

(*) Publicado na revista Percurso 69, junho 2023 – Uma versão mais curta foi publicada no jornal Valor Economico em 09/12/2022

 

 

 

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