Sobre o filme “Meu amigo hindu”, de Hector Babenco

MEU AMIGO HINDU, de Hector Babenco

Sérgio Telles

“Meu amigo hindu”, novo filme de Babenco, retoma uma questão de grande interesse em artes narrativas como literatura e cinema, que é a importância dos elementos biográficos na obra do autor, a maneira como transita entre ficção e realidade.
Mais do que nunca é difícil traçar as fronteiras entre esses dois campos, pois os autores produzem obras que, apesar de serem muito próximas da autobiografia, a transcendem na medida em que se dão liberdades ficcionais incompatíveis com aquela, como ocorre com as chamadas “autoficções”. Vemos isso no cinema com Fellini, especialmente em 8 ½ e, de forma mais radical, na literatura do norueguês Karl Ove Kanusgard que tem produzido uma espécie de hiperautobiografia, expondo minuciosamente sua intimidade e a de sua família, criando com isso problemas éticos complicados.
A esse respeito Milan Kundera disse em “The art of novel“ (1986): “O romancista demole a casa de sua vida e usa os tijolos para construir outra casa: a do romance. Do que se depreende que os biógrafos do romancista desfazem o que o romancista fez, e refazem o que ele desfez. O trabalho deles, altamente negativo do ponto de vista da arte, não pode iluminar nem o valor nem o significado do romance”.
Kundera estabelece a importância central dos elementos biográficos na criação de uma obra de ficção, mas afirma que procurá-los ali é um erro, desde que ela deve ser julgada por outros parâmetros e critérios. Ele está correto ao dizer que o biógrafo não ilumina o valor ou o significado da obra, pois as informações por ele trazidas não são necessárias para usufruí-la e apreciá-la. Mas isso não quer dizer que o trabalho do biógrafo seja vão, pois ele interessa aos estudiosos dos mecanismos de criação, ocupados em compreender a maneira pela qual o autor transformou seus traumas em objetos estéticos.
No cinema e na literatura é comum a confusão entre personagem e autor, especialmente entre narrador e autor. Um dos artifícios da ficção é justamente criar uma verossimilhança que fisga o leitor, provoca identificações do público com os personagens, escamoteia o efetivo caráter irreal da obra.
Babenco situa seu filme no centro dessa questão, ao colocar nele episódios de sua vida conhecidos pelo grande público, como o fato de ter vencido uma dura e longa batalha contra um câncer linfático, durante a qual viu seu casamento se desfazer e posteriormente, curado, encontrou um novo amor.
Obras como a de Babenco, que se situam muito próximas da experiência vivencial do autor, correm o risco de serem confundidas pelo leitor ou espectador como um relato factual, supostamente de fácil realização e, por isso mesmo, de menor valor se comparado a uma outra classificada como ficcional, na qual a capacidade criativa do autor é prontamente comprovada e reconhecida. É claro que essa postura é equivocada, dado que mesmo o registro propriamente biográfico segue padrões estabelecidos e está longe de ser uma mera descrição informativa, sem preocupações estéticas. Isso fica ainda mais complexo na medida em que o autor trate o material biográfico usando das diversas formas a seu dispor, como a narrativa autobiográfica, a não ficcional, a autoficção, o roman à clef.
Atualmente essa possível confusão é ainda mais facilitada pela cultura de massa, que rompe os limites entre público e privado e a indústria do entretenimento, que fornece de forma sistemática suprimentos diários de factoides sobre a vida das celebridades. Sob esse aspecto, não é indiferente, no contexto do filme de Babenco, que Barbara Paz seja uma figura de alta visibilidade, conhecida estrela global e participante de um reality show de grande sucesso quando exibido. Sua presença no filme permite assim outros níveis de leitura, contrapondo a exposição do artista no reality show e na obra de arte de cunho autobiográfico.
Assim, a ousadia de Babenco em utilizar no filme fatos conhecidos sobre sua pessoa, numa propositada confusão entre vida e arte, personagem e autor, pode absorver a atenção e curiosidade do espectador, que somente num momento segundo se aperceberia das qualidades da película e da trama firme e bem urdida que dá sustentação ao drama central.
De fato, o roteiro de Babenco trabalha com um duplo conflito dramático. O primeiro, manifesto, é, como vimos, o aparecimento do câncer, a ameaça da morte, a luta do personagem para continuar vivendo e produzindo. O segundo, latente, decorre de sua novela familiar. O filme abre com os três irmãos esperando a notícia do falecimento do pai, “um grande contador de histórias”, diz no enterro um amigo (Rabino Henry Sobel, em cameo role). As dificuldades da relação pai-filho ficam insinuadas no fato de o personagem “ter de pegar o avião” e não esperar pelo cumprimento dos ritos fúnebres. No desenrolar da ação, são mostradas as rivalidades fraternas, a presença forte da mãe, os amigos, a profissão, os problemas amorosos. Percebemos que ao lado dos graves problemas trazidos pelo câncer, o personagem tinha outro tipo de sofrimento – a culpa por ter deixado o lar paterno numa pequena cidade e saído em busca de seu caminho mundo a fora. Acusava-se de ter abandonado a família quando dele ela mais precisava. Assim, ao alívio proporcionado pela recuperação da saúde física corresponde a paz trazida pela reconciliação com a família, um dos momentos mais comoventes do filme.
Cinematograficamente, Babenco exibe completo domínio da linguagem e demais peculiaridades do ofício – uma bem sucedida preocupação formal visível na sequência de enquadramentos, planos e movimentos de câmara; um roteiro bem afiado; uma eficiente trilha sonora; referências fílmicas que o cinéfilo de pronto reconhece; uma excelente direção do elenco forte e bem integrado.
É curioso que Babenco tenha escolhido um titulo que evoca mundos exóticos e distantes para seu filme que fala do que lhe é mais intimo e próximo. Talvez com isso revele a tentativa de sair de si mesmo e de seu entorno, de se afastar da experiência devastadora que ameaçava destruí-lo.
Ao mesmo tempo, ao mencionar o amigo hindu, Babenco se reporta a momentos de extraordinária vulnerabilidade, nos quais a morte estava muito próxima, mostrando seu ilimitado poder sobre todos, homens e mulheres, velhos e crianças. E é justamente nessas circunstâncias que Babenco reencontra sua capacidade de narrar, valioso dom que estabelece um traço de identificação com o pai, tido como um “grande contador de histórias”. Naqueles duros momentos, o poder liberador de contar histórias se revela com toda a força, possibilitando driblar a angústia ao inventar novos mundos, escapar de uma realidade insuportável, recompor forças para continuar lutando.
Falamos antes da íntima relação entre biografia e ficção nas artes narrativas. Por que um autor precisa tanto contar a história de sua vida, disfarçada em maior ou menor grau pela ficção? Mas seria ele muito diferente das demais pessoas? Não gostam todas elas de contar os pequenos e grandes fatos de suas vidas para alguém próximo, que as escute com atenção e simpatia? Ao contar suas vidas, não estariam elas procurando dar-lhes um sentido, representar e simbolizar os traumas vividos para melhor poder contê-los? Aquele que as ouve serve de testemunho, ele lhes dá fé, convalida uma experiência que de outra forma poderia se perder na insignificância, no sem sentido. A diferença do autor com o comum dos homens é que ele conta sua história com muito mais engenho e arte e tem como testemunho não uma pessoa só e sim o grande público. Isso é parte do que acontece numa psicanálise, onde o analista, a partir do relato informe e confuso que recebe inicialmente do paciente, o ajuda a encontrar os eixos básicos de sua história, fazendo com que ele possa finalmente dela se apropriar.
Na história que Babenco nos conta, a morte mais parece um caixeiro viajante, um funcionário subalterno de uma multinacional, bem diferente da figura imponente e assustadora de Bergman. Condizente com nossos tempos agnósticos, portanto despida de toda transcendência, a morte não nos leva mais para paraísos ou infernos, ela simplesmente nos elimina do jogo da vida. Essa mudança não diminui muito (talvez até o potencialize) o terror que ela inspira, que se não transparece em sua aparência corriqueira, surge de forma brutal na grotesca figura de sua amante.
“Meu amigo hindu” começa com a morte do pai e termina numa exibição de grande força vital, com Barbara Paz dançando “Singing in the rain”. Assim Babenco comemora o triunfo (sempre incerto e temporário) da vida sobre a morte, celebra o amor e, ao mesmo tempo, declara sua paixão pelo cinema.
Não é raro que diretores homenageiem o cinema citando cenas de antigos musicais norte-americanos. Tais filmes não tinham grandes pretensões artísticas ou autorais, eram produtos comerciais que pretendiam apenas divertir o grande público. Que tenham transcendido esse estreito objetivo e se constituído como ícones da cultura do século XX mostra como pode variar ao longo do tempo a avaliação de uma criação artística.
Certamente as plateias atuais e futuras saberão reconhecer o valor de “Meu amigo hindu”, sóbria e bem lapidada meditação de Babenco sobre a condição humana.

(*) Uma versão mais curta desse artigo foi publicada no caderno “Aliás” do jornal “O Estado de São Paulo”,sob o titulo “Fronteiras movediças”, em 01/11/2015

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