Sebald e as lembranças de guerra

Sebald e as lembranças de guerra (*)

Sérgio Telles

W. G. Sebald (1944-2001) é o grande autor alemão que faleceu precocemente num acidente de carro na Inglaterra, onde vivia como professor universitário desde 1970.  Suas quatro obras mais importantes – “Austerlitz”, “Os anéis de Saturno”, “Os Emigrantes” e “Vertigem” – estão traduzidos no Brasil.

Além do intenso prazer estético, emocional e intelectual, estes livros me deram a impressão de grande originalidade narrativa por sua hábil combinação de fragmentos ensaísticos, anotações de viagem, personagens reais e fictícios em ação, reflexões políticas e filosóficas sobre a história, digressões sobre a persistência dos mortos entre os vivos, a marca do tempo que a tudo consome e, principalmente, o império da memória.

Os quatro livros mostram a estreita ligação entre a ética e a estética na escrita de Sebald e apontam para o que seria seu projeto literário – a recuperação da memória da Alemanha na Segunda Guerra, lutando contra a repressão, a supressão e a negação coletivas, decorrentes da vergonha e da culpa frente aos crimes de guerra. Ao recriar em sua obra a saga de vários personagens judeus, Sebald com eles se identifica e, à sua maneira, arca com a impossível e ainda assim indispensável tarefa de reparar o irreparável daqueles crimes. Em assim fazendo, também possibilita o trabalho de luto ainda não realizado plenamente pelo povo alemão.

Chega agora às livrarias seu livro “Guerra aérea e literatura” (Companhia das Letras). Nele estão as chamadas “Conferências de Zurique”, que Sebald proferiu em outubro de 1997, abordando o silêncio da literatura alemã sobre as décadas de 1930 a 1950, especialmente sobre os anos 40, quando o nazismo estava no auge, levando à total devastação da Alemanha no final da guerra.

Sebald se pergunta por que acontecimentos de tal envergadura tiveram uma representação tão pífia na literatura alemã.  Examina a magra produção da época e conclui que isso ocorreu, em primeiro lugar, pela própria condição  traumática dos eventos em jogo, a violência vivida e a dificuldade em representá-la, levando à ausência de simbolização que envolve as grandes tragédias. Depois, lembra as circunstâncias do pós-guerra. Tendo o nazismo levado a devastação por toda a Europa, como ousariam os alemães mostrar que a destruição e a violência também incidiram sobre eles, se sabiam que isso era a retaliação em conseqüência de seus próprios ataques? A magnitude da catástrofe, a vergonha e a culpa compartilhadas por todos levou à negação, impedindo a expressão literária desta realidade insuportável.

Como exemplo mais significativo, Sebald fala dos bombardeios sofridos pela Alemanha por parte da Royal Air Force (RAF) britânica. Tais mobilizações  começaram a ser planejadas em fevereiro de 1942, culminando com a Operação Gomorra, ocorrida em julho de 1943. Naquela ocasião, Hitler havia conquistado toda a Europa com exceção da Inglaterra, e se expandia rumo a África e Ásia. Seu poderio bélico estava voltado para as fronteiras em expansão, o que deixava o território natal a descoberto. Churchill então propõe o bombardeio das desprotegidas cidades alemãs. Ao invés de mirar alvos militares, o objetivo era a completa destruição destas cidades, o que implicava, é claro, na eliminação de seus habitantes. A RAF despejou um milhão de toneladas de bombas explosivas e incendiárias sobre 131 cidades, ocasionando a morte imediata de 600 mil civis, destruindo 3,5 milhões de residências, deixando 7,5 milhões de desabrigados no final da guerra, perambulando entre montanhas de entulhos dos quais exalava o cheiro nauseabundo dos corpos insepultos que persistiu até depois da guerra. Hamburgo foi o alvo especifico da Operação Gomorra, recebendo 10 mil toneladas de bombas em suas áreas densamente habitadas, que mataram no ato 200 mil civis. Sebald diz que o incêndio que destruiu completamente a cidade se expandia a uma velocidade de 155 quilômetros por hora e suas labaredas atingiram 2 mil metros de altura. O calor provocava correntes de ar com força de furacão e que faziam um ruído ensurdecedor ao se deslocarem, semelhante a um fantasmagórico órgão. A altíssima temperatura derreteu vidro, asfalto e diversos outros materiais, fazendo ferver a água dos canais.

A destruição das cidades alemãs foi de tal porte que Sir Solly Zuckerman, um dos principais responsáveis pelo planejamento dos bombardeios ingleses, depois de ver os escombros de Dresden, Colônia e Hamburgo no final da guerra, declarou não se sentir à altura da tarefa de escrever sobre o que vira, como antes combinara com uma revista, pois ela exigia uma abordagem mais ampla, algo como uma “história natural da destruição”.  Sebald, a meu ver, toma a sério a esta idéia e produz seu extraordinário “Os anéis de Saturno”. Ali, sem negar em nenhum momento a responsabilidade da Alemanha pelas monstruosidades realizadas pelo nazismo, mostra indiretamente que o cetro da maldade e da destrutividade humanas não pode ser atribuído com exclusividade ao povo alemão. Ao transitar pelos desastres destrutivos  acumulados no correr do processo civilizatório, não há como não admitir que estas características são próprias do ser humano, e aparecem em qualquer lugar ou época da história, como mostra detalhadamente em seu texto.

O livro traz ainda comentários de Sebald sobre Alfred Andersch, um escritor alemão que atravessa o nazismo e reinventa sua história em função da nova realidade do pós-guerra.

Este livro de Sebald ilustra bem o que o ramo da psicanálise desenvolvido pelos húngaros Maria Torok e Nicholas Abraham chama de “criptas” em traumas transgeracionais. Grandes sofrimentos sociais, como os ocorridos nas guerras, freqüentemente não são simbolizados e representados como seria necessário. Ficam excluídos na narrativa do passado, criando “buracos negros” simbólicos transmitidos através das gerações, impossibilitando a elaboração do trauma. O mesmo fenômeno acontece em nível privado, na intimidade das famílias, quando seus  conflitos, dificuldades e vergonhas não são falados, constituindo “segredos familiares” que também vão constituir vácuos simbólicos, gerando questões transgeracionais somente decifradas em terapias de familia.

(*) Publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em 09/07/2011

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