Nos desvãos da psicopatologia social

Nos desvãos da psicopatologia social (*)

Sérgio Telles

Em 1935, já chegando ao final da vida, depois de ter batalhado duramente para instaurar a psicanálise dentro do campo das ciências, fazendo com que seus pressupostos teóricos e sua terapêutica fossem reconhecidos, Freud confessa que naquela última década seus interesses haviam se voltado para as questões culturais, dando assim maior atenção a uma antiga paixão despertada na juventude. Diz ele: “No próprio clímax do meu trabalho psicanalítico, em 1912, já tentara em Totem e Tabu fazer uso dos achados recém descobertos da análise a fim de investigar as origens da religião e da moralidade. Levei então esse trabalho mais um passo à frente em dois ensaios ulteriores, O futuro de uma ilusão (1927) e O mal-estar na cultura (1930). Percebi ainda mais claramente que os fatos da história, as interações entre a natureza humana, o desenvolvimento cultural e os precipitados das experiências primitivas (cujo exemplo mais proeminente é a religião) não passam de reflexos dos conflitos dinâmicos entre o ego, o id e o superego que a psicanálise estuda nos indivíduos – são os mesmíssimos processos repetidos numa escala mais ampla”.

Ou seja, Freud está dizendo que os conhecimentos advindos da descoberta do inconsciente e de seu funcionamento, que tornaram possível a compreensão dos sintomas do paciente expostos na intimidade do consultório, poderiam e deveriam ser usados para entender acontecimentos sociais e culturais, pois em sendo eles produções do espírito humano, da mesma forma neles se manifesta o inconsciente. A esta atividade Freud chamou de “análise aplicada”.

Para Freud o analista não deveria se ater à solitária prática clínica. Acreditava que o pensamento psicanalítico poderia enriquecer o debate das grandes causas que movem a sociedade, opinião reforçada mais recentemente por Jacques Derrida. Uma das formas de exercer esta participação no debate público é justamente a “análise aplicada” ou qualquer denominação correlata que se lhe dê hoje, em função dos diversos dialetos teóricos em vigência no campo analítico.  Ela possibilita o grande público ver em ação o pensamento analítico elaborando hipóteses e produzindo sentido onde antes prevalecia a perplexidade frente ao aparentemente inexplicável.

Autor de livros de relevo na bibliografia brasileira de psicanálise, exercitando a prática clínica e funções acadêmicas (PUC), Renato Mezan é um analista que não se furta ao debate público. Escreve com freqüência em jornais e revistas de grande circulação, instigando seus leitores com interessantes textos de análise aplicada (ele prefere dizer “implicada”, que, a seu ver, ressalta o envolvimento ativo do analista com aquilo que aborda).

Em “Intervenções”, Mezan reúne 43 artigos publicados na imprensa (a maioria no jornal “Folha de São Paulo”), nos quais comenta acontecimentos, fait diverse produções culturais. Sem assumir o papel onipotente daquele que tudo sabe e tudo explica, neles Mezan mostra como o instrumento criado por Freud continua afiado e absolutamente necessário para a compreensão da alma humana; que a psicanálise não é uma velharia a ser descartada frente a novas aquisições, como é propalado pela neurociência, que dá exclusividade  ao tratamento farmacológico e às terapias cognitivistas, apresentadas como a nova panacéia.

Mezan dividiu seus artigos em três grupos. O primeiro mostra seus comentários sobre acontecimentos que foram manchetes, como o ataque do PCC, o menino que foi arrastado pelo carro de bandidos por quilômetros, a moça seqüestrada em Santo André, o escândalo do mensalão, os assassinatos na escola de Realengo, a devolução dos quadros roubados no MASP, o “rodeio de gordas”, etc. Abre esta seção com um comentário sobre a comoção pública frente à morte de Mário Covas, a quem saúda como um político que não se deixou corromper pelo poder.  No artigo seguinte, analisa o fracasso de Marta Suplicy em sua candidatura à prefeitura de São Paulo, o que atribui a características pessoais da candidata, “em particular a arrogância”. Isso lhe serve de gancho para fazer uma bela divulgação sobre a forma como a psicanálise entende esta manifestação do que os antigos gregos chamavam de “hubris”.

O segundo conjunto aborda o que o filósofo Castoriadis caracteriza como “imaginação instituinte”, ou seja, “a capacidade humana de inventar o novo”, de criar novas formas nas diversas esferas da existência. Sob este prisma, Mezan examina aspectos da religião (Pessach, estrela de David), das artes (Mozart), e das ciências (novos conceitos e teorias). Os artigos mostram como o novo pode surgir quando um elemento já existente é retirado de seu contexto original e inserido noutro diferente, o que produz efeitos até então inexistentes.

O terceiro reúne ensaios curtos e reflexões sobre a prática analítica, o poder, a educação, a violência, a psicologia das massas.

Escrito com a clareza e a inteligência familiares aos que acompanham sua produção, esta nova coletânea de Mezan nos ajuda a compreender o papel do inconsciente nos desvãos da psicopatologia social.

(*) Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 26/06/2011

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