Imaginação Erótica – Mona Lisa tem sobrancelhas?

“…dois rapazes pubescentes são entusiásticos adeptos da felação. Cada um, durante o desempenho desse ato, está eroticamente excitado em nível consciente. A sensação de um pênis ereto na boca é sensualmente prazerosa para cada rapaz, e eles ressoam com memórias/fantasias conscientes-pré-conscientes-inconscientes de prazeres orais do nascimento em diante (alguns tentam usar rótulos clinicamente descuidados como “moralidade”). Cada rapaz acredita em uma dinâmica bem conhecida de comportamento homossexual – que seu senso de existência, de integridade, de si mesmo é realçado pelo sêmen que está prestes a ingerir. Mas um desses rapazes está a caminho de tornar-se um cabeleireiro efeminado, homossexual, em Los Angeles, ao passo que o outro se transformará em um guerreiro/caçador másculo, heterossexual, na Nova Guiné”.

Esta é uma mostra da forma instigante que Stoller usa neste seu excelenteOBSERVANDO A IMAGINAÇÃO ERÓTICA (Imago Editora – 1998), onde reúne ensaios psicanalíticos sobre a “imaginação erótica”, tendo como pano de fundo reflexões sobre as vicissitudes atuais que sofre a psicanálise.

Stoller aborda a “imaginação erótica” em claros e acessíveis artigos sobre os usos da pornografia, obscenidade e estética, travestismo em mulheres, homossexualidade e o curioso “Página Central”, onde é examinado o erotismo de uma mulher que posa nua para revistas masculinas. Terá ela, que vai acalentar as fantasias masturbatórias de milhões de homens, pleno uso de sua sexualidade ou é uma frígida histérica, confusa quanto a própria identidade, vivendo um simulacro da feminilidade?

Com estes artigos, Stoller retoma um tema no qual ficou famoso – as questões ligadas à identidade de gênero sexual, às caracterizações do masculino e feminino. Tendo como pano de fundo as chamadas “perversões” (incluindo aí uma interessante defesa desta denominação atualmente abolida e tida como politicamente incorreta), mostra como a hostilidade (agressividade) joga um papel importante em toda e qualquer excitação erótica: em toda fantasia sexual é possível encontrar, mais ou menos disfarçado, o desejo de ferir (humilhar) o objeto amoroso.

Desta forma, Stoller mostra que existe uma continuidade entre a fantasia perversa e a dita “normal”, para concluir, como Freud já o tinha feito antes, que a sexualidade humana não é “natural”. Evidentemente sem negar seus aspectos biológicos, a sexualidade humana se afasta da Natureza para ser regida por outros princípios, aqueles advindos da Cultura. A excitação sexual e o erotismo humanos não são produtos exclusivos da biologia, mas construções complexas decorrentes de intrincados roteiros de fantasias e desejos inconscientes, regidos pela representação e significação simbólicas.

Entre os artigos, chama a atenção o muito interessante “Teorias das Origens da Homossexualidade Masculina: Uma Visão Transcultural”, onde Stoller estuda o comportamento sexual do povo sâmbia de Nova Guiné, ao qual o trecho citado acima faz referência. Neste artigo Stoller rebate a atual moda que valoriza as teorias cognitivas e comportamentais behavioristas, teorias que ignoram a descoberta freudiana do Inconsciente, não dão o devido peso aos impactos da cultura na formação de padrões de comportamento, centradas que estão apenas nos aspectos conscientes dos processos da aprendizagem e condicionamento. Teorias que, como diz Etchegoyen, estão preocupadas com o “resultado”, enquanto nós – analistas – estamos mais interessados em entender as “intenções”.

O pano de fundo do livro é uma rica, bem humorada, humilde e crítica reflexão sobre a psicanálise, feita por alguém que a conhece e ama. “Como a psicanálise é meu lar, sinto-me livre para não tratá-la com polidez”, diz Stoller com toda a propriedade.

Embora esta seja uma postura que permeia o livro todo, fica mais explícita nos dois últimos artigos, “Avaliando a terapia de Insight” e “Dialética Psiquiátrica Mente-Cérebro, ou A Mona Lisa Não Tem Sobrancelhas”.

Nestes movimentos pendulares, dialéticos, próprios do conhecimento humano, vivemos um momento onde a “mente” cede espaço para o “cérebro”. Acuada pela exigência de cientificidade, pelas terapias cognitivo-comportamentais, pelos avanços da farmacologia e da neuro-ciência, a psicanálise parece fora de moda. Os analistas, numa “identificação com o agressor”, parecem querer provar que a psicanálise é uma “ciência” e passam a escrever num jargão incompreensível. Em “Pesquisa Psicanalítica: As Regras do Jogo”, Stoller com ácida ironia critica a forma como os trabalhos psicanalíticos são escritos para parecerem “científicos”. Frente a estes impasses, ele propõe, no artigo “Uma Mulher Homossexual”, uma forma simples e clara onde a experiência psicanalítica pode ser registrada sem impostura.

Stoller nos lembra que o campo da psicanálise é outro que o das ciências exatas. Nossos conhecimentos não são aferíveis estatisticamente, nossos procedimentos não são mensuráveis, não podemos querer fazer “pesquisas” no modelo “científico” mas mesmo assim, apesar de tudo, é inegável que temos um tipo de saber que dá o acesso único e inestimável a uma verdade que sem ele ficaria para sempre inalcansável.

Ah, sim. Mona Lisa não tem sobrancelhas. Stoller usa este fato para ilustrar a capacidade de observação característica de um psicanalista, que está habilitado para ver o que a maioria das pessoas não percebe.

 

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