Heranças

Heranças

Sérgio Telles  (*)

A transmissão de bens materiais e valores imateriais entre a geração mais velha e a mais nova não acontece automaticamente e pode sofrer entraves. Para que a herança chegue a bom termo, é necessário que os mais velhos, imbuídos da consciência da finitude, cedam o centro do palco para os mais novos. Não é uma decisão fácil e alguns não conseguem concretizá-la. Outros, tomados pela ambivalência, o fazem pela metade ou de forma inadequada, criando inúmeras complicações.

Esse é o tema central de Rei Lear de Shakespeare. Embora à primeira vista a peça trate da ingratidão das filhas frente à generosidade de Lear, que lhes doou o reino e foi por elas abandonado na mais negra miséria, uma leitura psicanalítica mostra uma outra visão. A doação pretendida por Lear tem efeitos catastróficos pela ambivalência com a qual foi realizada. Lear quer abdicar do reino sem abrir mão do poder e suas insígnias. Dominado pelo desejo infantil de receber provas de amor incondicional, manipula as filhas de forma regressiva, instigando-lhes a cobiça e a rivalidade fraterna. Visando a obter vantagens, Goneril e Regan se submetem às demandas loucas do pai, o que não acontece com Cordélia, a única a expressar um amor genuíno e realístico, pelo que é punida e deserdada. Apesar de tudo, é legítima a reivindicação que as duas primeiras fazem quanto à posse da herança que o pai lhes deu, mas resiste em realizar de forma definitiva.

Como mostram Goneril, Regan e Cordélia, também para os filhos a transmissão da herança é um processo difícil. Para que ele se dê, é necessário que larguem a irresponsabilidade infantil ou a revolta adolescente e assumam suas próprias vidas adultas, deixando de lado a proteção até então fornecida dos pais. Precisam conhecer o que lhes foi dado. Na eventualidade de ser um legado pernicioso, devem descartá-lo, neutralizá-lo, esquecê-lo. No caso contrário, impõe-se o reconhecimento, a gratidão e o compromisso de preservar o recebido para entregá-lo às gerações seguintes.

Na transmissão da herança, é necessário que o doador (o pai) efetivamente se desligue daquilo que doa e que o herdeiro (o filho) se sinta autorizado a recebê-lo e fazer dele o uso que lhe aprouver, reconhecendo seu posicionamento na ordem geracional.

Ambos precisam lidar com seus narcisismos – o pai por abdicar de funções e posses de que dispunha até então, o filho por ter de reconhecer a dádiva e a dívida.

Questões narcísicas são especialmente agudas no campo da política. Os poderosos são propensos àquilo que os antigos gregos chamavam de húbris, condição na qual os homens, levados pela soberba, negam os limites e rompem a fronteira entre potência e onipotência, mergulhando em desastrosos delírios de grandeza.

A luta política e a alternância de poder próprias da democracia acrescentam aspectos específicos às questões psicológicas ligadas à herança. É frequente os governantes desmerecerem o legado das gestões anteriores, como tem feito o PT ao atacar a herança recebida do PSDB. Numa atitude ambígua, dela se apropriou e, à sua maneira, lhe deu prosseguimento. Ao mesmo tempo, nega que aja assim e a desvaloriza sistematicamente, chamando-a de “maldita”.

Recentemente, Fernando Henrique Cardoso disse que a insistência de Lula e do PT em fazer comparações com o PSDB e sua pessoa envolveria uma “questão de psicanálise”, algo como uma fixação na figura paterna a ser superada. Ou ainda, seria manifestação de franca ingratidão, um “cuspir no prato que comeu”.

A observação de FHC é pertinente, pois Freud mostrou que os pressupostos da psicologia individual são os mesmos que regem a vida social. A questão do pai, da herança, do transgeracional, central para a constituição do sujeito, é igualmente importante nas organizações e instituições sociais.

As dificuldades inerentes aos dois momentos da transmissão da herança – o recebimento dos antecessores e a doação para os sucessores – teria uma boa ilustração na atuação de Lula. Quanto ao recebimento, como vimos, não há um reconhecimento da dívida com a herança, que, apesar de ter sido apropriada, é denegrida, numa atitude arrogante, narcísica, que nega a realidade. Seria o equivalente à fantasia de um filho de ter gerado a si mesmo, desfazendo o imprescindível concurso dos pais para sua existência. Na outra ponta do processo, a transferência do legado para o sucessor, aparece a resistência em fazê-lo plenamente, não deixando que seus delfins exerçam de fato o poder, com isso ocupando um lugar inusitado que FHC ironicamente chamou de “presidente adjunto”. O constrangimento de Haddad, patente na foto de uma reunião onde Lula teria ido fazer uma visita à Prefeitura de São Paulo, fala mais do que qualquer palavra.

Ainda assim, a coisa não é tão simples, pois se Lula reluta em abrir mão do poder, talvez seus prepostos não desgostem de todo, pois reconheceriam que foram alçados à atual posição não por méritos próprios. Seriam como filhos que não podem abrir mão da proteção paterna e que, consequentemente, não se empenham em receber uma herança que lhes é hesitantemente oferecida.

A transmissão da herança é um aspecto das relações entre pais idosos e filhos adultos. O filme Amor, de Haneke, que comentei há pouco aqui, tem como tema central o relacionamento do casal e a forma como lida com a doença grave que abate um de seus membros. Mas, na medida em que existe uma filha, a situação fica mais complexa, abrindo novas questões que ali são apenas insinuadas. Os velhos de Haneke compartilham com Lear algumas características. Não abrem mão do lugar de cuidador ou protetor, tentando manter a autonomia e o poder decisório que tinham no vigor de suas forças. Com isso ignoram a maturidade da filha, mantendo-a numa posição infantil, desconsideram suas opiniões e não confiam em sua capacidade de cuidar e proteger. Ao contrário de Lear, não exigem dela provas de amor e as recusam quando ela espontaneamente lhes oferece.

São mostras da diversidade de configurações do relacionamento familiar nessa etapa da vida que nos cabe reconhecer e analisar, sem lhes atribuir juízo de valor.

(*) Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 02/03/2013

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