AMOR ALÉM DA VIDA

O filme AMOR ALÉM DA VIDA (What dreams may come) chega precedido de larga propaganda sobre suas qualidades visuais pictográficas. Foram necessários 15 anos para que sua feitura se concretizasse. Sua direção foi entregue a Vincent Ward, que também é pintor, alguém habilitado a realizar cenários muito especiais, inspirados em quadros famosos.

De fato, seus cenários, criados a partir da história da arte e da alta tecnologia gráfica computadorizada, são o que o filme tem de mais interessante. Inspiram-se diretamente em pinturas impressionistas, pré-rafaelitas e da escola simbolista (nas cenas referentes ao Paraíso), e em Hyeronimus Bosch e Gustave Doré (nas cenas ligadas ao Inferno).

Além destas citações, há outros cenários chamativos, como as de uma biblioteca com ares de Veneza, os espaços fantásticos de piazzetas de sonho, os arcos góticos invertidos da casa no Inferno, e tantos outros detalhes que proporcionam um grande prazer a um olhar perquiridor.

Com boa vontade, AMOR ALÉM DA VIDA pode ser compreendido como uma nova versão do mito clássico de Orfeu e Eurídice, pois o protagonista procura salvar do Inferno sua mulher suicida. Sem boa vontade, o filme é apenas mais uma bobagem que vem engrossar a maré de misticismo barato que nos envolve por todos os lados, ligado à chegada do ano 2000. Ali se encontra todo o conhecido repertório de vidas passadas e futuras, reincarnações, Paraísos e Infernos, seres angelicais, etc.

Não podemos esquecer que o tal final (ou início) de milênio foi transformado pelo mercado em excelente mercadoria.

Não surpreende quando lembramos que o filme se baseia no romance do mesmo autor de outro grande sucesso dos anos 80, o EM ALGUM LUGAR DO PASSADO, onde um casal de estranhos se encontra num hotel para descobrir ter sido grandes apaixonados numa vida pregressa.

Em relação ao anterior, AMOR ALÉM DA VIDA é mais daninho pois não só alimenta a onda obscurantista do misticismo atual, como claramente apresenta uma atitude de oposição e hostilidade em relação aos psicoterapeutas. A personagem suicida que vai para o Inferno, explicitamente diz que não pode confiar no terapeuta, um incompetente incapaz, que nada sabe.

Até ai, tudo bem. Infelizmente há terapeutas com tais características. Além do mais, não podemos esquecer que, há efetivamente no momento nos Estados Unidos uma onda de desconfiança contra os terapeutas, decorrente dos abusos e loucuras cometidos por muitos deles que alimentaram as chamadas memórias reprimidas, loucas fantasias histéricas de suas pacientes que acusavam pais e/ou alienígenas de as terem estuprado, realizado abusos sexuais, etc.

Tal fato decorre, a meu ver, de um esquecimento de descobertas psicanalíticas básicas, que permitiriam uma discrimação adequada entre abuso sexual infantil e fantasias de sedução sexual decorrentes do complexo de Édipo, consequentemente estruturais, corriqueiras e normais.

O que é daninho e desinformador em AMOR ALÉM DA VIDA, especialmente quando se leva em conta o poder de comunicação de massa que o cinema pode ter, é que a suicida desqualifica o terapeuta não por estar ele dizendo loucuras, mas pelo contrário, por estar ele corretamente tentando confrontá-la com o trabalho de luto frente a morte dos filhos e marido. Na opinião da personagem, o erro do terapeuta é não alimentar suas negações maníacas, não propor-lhe saídas místicas.

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