Amado Batista e a tortura

Amado Batista e a tortura

Sérgio Telles

Neste momento em que a Comissão da Verdade trabalha para trazer à tona os crimes da ditadura, chamaram atenção as declarações do cantor Amado Batista em entrevista a Marília Gabriela. Preso e torturado pelo regime militar, surpreendeu a entrevistadora ao dizer que compreendia o tratamento que lhe foi então dispensado.

Amado, nos anos 1970. Afirmação polêmica surpreendeu Marília Gabriela - Arquivo Pessoal
Arquivo Pessoal
Amado, nos anos 1970. Afirmação polêmica surpreendeu Marília Gabriela

Como se sabe, a tortura é o eficaz instrumento usado pelo Estado para extrair informações que julga necessárias e lhe são negadas por aqueles que suspeita serem delas conhecedores. Nunca formalmente admitida, os regimes autoritários a usam rotineiramente contra os que consideram seus inimigos, e os países democráticos defensores dos direitos humanos, apesar de a condenarem, dela não se abstêm em situações consideradas “excepcionais”, como mostram as denúncias de seu uso pelos Estados Unidos em Guantánamo e em suas guerras arábicas, elemento importante no filme A Hora mais Escura (2012), de Kathryn Bigelow, cuja produção, por isso mesmo, chegou a ser investigada pelo Departamento de Defesa daquele país. Sem mencionar o feijão com arroz das delegacias policiais do mundo todo, que arrancam confissões de ladrões pés de chinelo na porrada, fato para o qual ninguém dá muita importância.

A tortura não é uma parte abstrata do aparato clandestino do Estado; ela se concretiza no agônico corpo a corpo entre torturado e torturador. O torturado se encontra em posição de desamparo frente ao torturador, que ocupa o papel de senhor absoluto, dono da vida e da morte. A consciência de ter a vida por um fio, à mercê dos humores do torturador, tem efeitos desestruturantes sobre a personalidade do torturado, que pode regredir a funcionamentos psíquicos muito arcaicos. A situação estrutural da tortura pode remeter a imagos inconscientes muito primárias, a da relação primordial do bebê em total desamparo frente a uma mãe má todo-poderosa, de quem depende para não morrer. É uma experiência essencialmente traumática.

Como acontece com toda experiência traumática, o torturado vai reagir a ela usando mecanismos custosos em termos de rendimento e sofrimento mental, pois não impedem o desenvolvimento de sintomas (fixação no trauma, negações, angústias, depressões, persecutoriedades, culpas, etc). Um deles é a “identificação com o agressor”, mecanismo de defesa descrito por Anna Freud em 1936 e popularizado como “síndrome de Estocolmo” nos anos 1970 em função de um episódio de sequestro naquela cidade, no qual os sequestrados, ao serem libertados, se posicionaram em defesa dos sequestradores. Esse mecanismo é a resposta a uma situação extrema de risco de vida. Para sobreviver, o sujeito nega estar sendo objeto de uma violência, abdica de suas convicções e adota o ponto de vista do agressor. Dessa forma tenta ganhar suas boas graças, ao mesmo tempo em que deixa de se ver como vítima impotente e procura assumir a força do poderoso agressor.

As declarações de Amado Batista poderiam ser entendidas dentro desse modelo, seriam uma forma de resposta típica ao trauma, o que, obviamente, mereceria todo o respeito, algo que não poderia ser censurado. Claro que não podemos saber os reais motivos de Amado Batista; essa é apenas uma hipótese interpretativa construída em cima do que foi publicamente exposto.

Se na tortura é encenada uma arcaica relação dual na qual o torturado fica no papel do indefeso bebê, o torturador ocupa o lugar complementar de mãe má todo-poderosa. É o que se depreende do filme A Morte e a Donzela, de Polanski, baseado em peça de Ariel Dorfman. O torturador Miranda, ao ser desmascarado, confessa o gozo que o dominava durante a tortura, gozo advindo do sentimento de onipotência decorrente do absoluto domínio sobre o outro, algo completamente desvinculado das questões político-ideológicas que sustentavam o procedimento. Dessa forma, fica claro que a motivação do Estado (obtenção de informação) se dissocia da motivação inconsciente do torturador (gozo com o controle onipotente do outro). O que permite especular até que ponto o Estado manipula a doença mental do torturador, seu sadismo, para atingir os próprios objetivos.

Exercício da maior violência que o Estado pode exercer sobre o cidadão, a tortura desencadeia justas revolta e oposição. Mas também provoca profundas ressonâncias inconscientes, na medida em que evoca, como vimos, a relação primária com a mãe má, e também figuras de sadomasoquismo, importante expressão erótica. O infligir e sofrer dor podem ser fonte de extremado prazer. Elementos de sadismo e masoquismo estão presentes na maioria das práticas eróticas, na medida em que põem em jogo princípios básicos de atividade e passividade, domínio e submissão, controle e entrega. Além disso, sadomasoquismo e tortura se prestam ao imaginário em torno da chamada “cena primária” – a forma como a criança fantasia o coito entre os pais, supostamente realizado em meio a violências e agressões.

O fascínio horrorizado que a tortura nos suscita decorre da indignação ética consciente e dessas escuras ressonâncias inconscientes. A ameaça global do terrorismo de variada proveniência faz com que o uso da tortura para a obtenção urgente de informações concernentes à segurança seja um dos problemas éticos mais candentes de nossos tempos.

(*) Publicado no Caderno “Aliás” do jornal “O Estado de São Paulo”em 01/06/2013, sob o título “Amor e dor de Batista”.

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