A MORTE DO PAI

Freud atribui importante papel à elaboração do luto pela morte de seu pai para a criação de “A Interpretação dos Sonhos”, sua “opera magna”.

Diz ele no prefácio da segunda edição daquele livro: “Porquanto este livro tem para mim pessoalmente outro significado subjetivo – um significado que somente aprendi após tê-lo concluído. Ele foi, assim verifiquei, uma parcela de minha própria auto-análise, minha reação à morte de meu pai – isto é, ao evento mais importante, à perda mais decisiva na vida de um homem”.

Esse “evento mais importante”, essa “perda mais decisiva na vida de um homem” que é a morte do pai, continua provocando os mais variados efeitos naqueles que a têm de suportar, como os dois casos marcantes registrados pela imprensa esse mês.

O primeiro, extremamente tocante, falava de um jovem adolescente que, sem nenhum recurso, fugiu de Honduras rumo a Nova York, em busca do pai que ali estaria perdido. Consegue provocar comoção geral no correr de sua aventurosa viagem, recebendo ajuda de todos a quem relata sua procura, desde os cruéis “coiotes”, a máfia que controla o contrabando de gente na fronteira dos Estados Unidos com o México, até o prefeito de Nova York. Nesta cidade acontece o triste desfecho. Descobre-se que o menino havia mentido para todos. Seu pai tinha falecido de AIDS tempos atrás, fato sobejamente conhecido por ele.

O outro caso expõe a história de um homem de 29 anos, o operário norte-americano Ronald Shanabarger, que matou o filho de 7 meses. Ao ser interrogado sobre os motivos de seu gesto, disse tê-lo realizado como uma vingança contra sua mulher, por ter ela, quando sua namorada, recusado a interromper uma viagem para voltar à cidade onde o pai dele tinha falecido e prestar-lhe as honras fúnebres. Ronald não a perdoou e planejou engravidá-la, fazê-la apegar-se ao filho para, somente então, matá-lo. Desta forma, disse ele, ela iria entender a dor que ele sentira ao perder o pai. Esperou o filho chegar aos 7 meses com o explícito intuito de alimentar o laço emocional entre mulher e filho, tornando para ela mais dolorosa a morte dele. (Datas – Veja, 7/7/99).

Em ambos os casos, se evidencia uma impossibilidade de elaborar o luto pela morte tão importante.

O adolescente de Honduras faz uma negação completa da morte do pai, organizando uma fantasia onde junto com a rejeição a um pai denegrido, morto de AIDS, aparece a imagem de um outro pai desejado, um pai idealizado, potente, capaz, “trabalhando em Nova York”.

O caso do operário americano é mais enigmático. Ao dar tanta importância à atitude da mulher de não querer interromper uma viagem pela morte do pai, parece entendê-la como grave ofensa ao pai. Configura-se um quadro onde é ela, a mulher, quem despreza e desconsidera o pai, não ele. Desta forma estaria projetando na mulher seus desejos agressivos contra o pai. Tão intensos são estes desejos agressivos contra o pai que não é suficiente cindí-los e projetá-los na mulher, mas deve ser ela rigorosamente punida por sua maldade. Para tanto planeja engravidá-la, com o único intuito de matar o filho para fazê-la sofrer.

Terrivel situação. Apesar de tão dissociados, projetados e negados, parece que seus desejos de morte em relação ao pai persistem e para afirmar sua inocência, para afirmar que não é um parricida, torna-se um filicida. Para afirmar que não matou o pai, mata o filho.

Mas essa solução trás novos problemas. Sua atitude frente ao filho é muito singular. Não consegue vê-lo como tal e sim como mero veículo de sua vingança. Seria uma impossibilidade de se ver no lugar de pai? Temeria estar neste lugar por acreditar estar usurpando o lugar do pai? Para ele só resta o lugar de filho “amoroso”?

Por outro lado, ao matar o filho, ele não poderia demonstrar uma rejeição maior. Essa atitude assassina, refletiria alguma identificação com o próprio pai? Teria sentido os desejos assassinos do pai em relação a si mesmo? Seu “inquestionável” amor ao pai esconderia uma idealização de um pai filicida, com o qual está identificado, e que se revelaria no assassinato que praticou?

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