Uma fila para ver o nada

Uma fila para ver o nada (*)

Sérgio Telles

No dia 21 de agosto de 1911, um século atrás, aconteceu algo que hoje nos pareceria impossível – a Mona Lisa foi roubada do Louvre.

Ao ser constatado o roubo, houve uma comoção geral. Durante os dois anos nos quais ela permaneceu em lugar desconhecido, esse era o assunto obrigatório em todas as rodas de Paris, motivo de preocupação e piadas. O pintor holandês Kees van Dongen, ridicularizando o alvoroço em torno de Mona Lisa, disse: “Ela não tem sobrancelhas e devia ter dentes estragados para sorrir sem abrir a boca”.

Inúmeras e esdrúxulas hipóteses foram levantadas para explicar o roubo. A mais interessante envolveu Apollinaire e Picasso. O poeta, em seus arroubos revolucionários, havia anteriormente declarado que o Louvre deveria ser incendiado. Uma forma romântica de expressar sua rebeldia contra o peso asfixiante da arte estabelecida. Não só fizera tal declaração, como era amigo de um belga que havia efetivamente roubado pequenas estatuetas ibéricas do museu – o que confirma a precariedade da segurança naquele momento -, presenteando os amigos com as mesmas. Um deles era Picasso, que teria se inspirado em algumas dessas estatuetas para compor Les Demoiselles d”Avignon, que pintava na ocasião. A polícia terminou por detê-los para investigações e ambos, esquecidos da petulante atitude de desafio contra o poder estatuído, ficaram assustados e choraram durante os interrogatórios. No julgamento posterior, negaram tudo e foram liberados, pois de fato nada tinham a ver com o roubo da Mona Lisa.

A polícia achava que o roubo fora realizado por um sofisticado grupo de ladrões de arte e compradores milionários. Quando se descobriu que quem o praticara fora Vicenzo Peruggia, o humilde operário italiano de 32 anos que havia construído a moldura de vidro que protegia a pintura no museu, houve certa decepção anticlimática, dada a insignificância do ladrão e as razões tacanhas por ele alegadas. Ressentido com o preconceito dos franceses contra os pobres imigrantes italianos como ele, Peruggia imaginou resgatar sua honra enxovalhada e a de seus conterrâneos, devolvendo para seu país a mais famosa obra de Leonardo, que – pensava ele – teria chegado à França como espólio de guerra por Napoleão. Peruggia ignorava que o quadro fora levado da Itália pelo próprio Leonardo, que, a convite de Francisco I, rei da França, se mudara para aquele país, fixando residência em Amboise, nas margens do Rio Loire. Mais ainda, Francisco I comprara o quadro de Leonardo.

Até voltar ao museu, o quadro ficou na cozinha do modesto apartamento de Peruggia em Paris. Apesar de ter justificado seu roubo com uma patriotada, afirmando que pretendia devolver à Itália uma obra da qual teria sido despojada, a verdade é que Peruggia fez várias tentativas de vender o quadro, sem que os compradores por ele procurados o levassem a sério. O que não ocorreu com um galerista de Florença, que o denunciou à polícia.

Mas uma das questões mais interessantes em torno desse episódio é ressaltada pelo psicanalista inglês Darian Leader, em seu livro O Roubo da Mona Lisa (Elsevier – Editora Campus, 2005). Quando se espalhou a notícia de que o quadro havia sido roubado, multidões acorreram ao Louvre e, durante semanas, uma fila imensa se estendeu formada por aqueles que queriam ver o lugar vazio antes ocupado pelo quadro. Curiosamente, Kafka e Max Brod, que estavam a passeio em Paris, fizeram parte dessa multidão.

Por que milhares de pessoas se dirigiram ao museu? Haveria alguma explicação além do desejo de verem com os próprios olhos algo que lhes parecia inacreditável? Ou estariam ali para ver o vazio em si, a falta, a ausência de Mona Lisa?

Em seu abrangente livro, Leader toma esse sintomático comportamento do público para focalizar uma instigante questão: é possível ver o vazio, ver o nada? Será que tudo o que vemos serve para tapar essa insuportável visão? E o que é mesmo o “nada”, o “vazio”?

Para responder a essa questão, Leader apela para a teoria psicanalítica.

Ao nascer, o bebê faz uma unidade com a mãe. Paulatinamente a realidade mostra que essa unidade é imaginária e impõe sua ruptura. É o rompimento dessa fusão que constitui, por um lado, o sujeito (eu) e, por outro, seu primeiro objeto de amor (mãe). A partir daí, passam a existir duas entidades – ligadas, mas distintas entre si.

Pode-se dizer que a fusão inicial mãe-bebê é vivida de forma imaginária como o paraíso, lugar da completude narcísica, da ausência de faltas. O desfazer a fusão, por sua vez, é imaginada como a maior perda possível de ser vivida, a expulsão do paraíso. Essas imagens e sentimentos de grande intensidade, que excedem a possibilidade de representação, persistem no inconsciente e são reativadas pelas posteriores experiências existenciais, necessariamente atravessadas durante a vida.

O vazio ou o nada seriam então um aspecto decorrente do rompimento da fusão original constitutiva entre mãe e filho e sua impossibilidade de representação. A fusão, que Freud chama a Coisa, é bastante desenvolvida pela teoria lacaniana como o espaço vazio não representável, um lugar traumático onde prevalece de forma ambivalente uma insuportável ausência ou uma proximidade sufocante, um lugar terrorífico e sagrado vazio de representações.

Leader defende a ideia de que a arte, através da criação de representações e simbolizações estéticas, tradicionalmente tentou minorar o impacto da falta do objeto ou obturar o vazio decorrente do rompimento da fusão. Mais recentemente, a arte procura não mais camuflar a falta e sim evocar o horror do vazio inominável. Daí a estranheza e a aspereza com as quais se reveste e que provocam desconforto e rejeição na maioria.

Se, como diz Leader, o olhar procura sempre aquilo que não se dá a ver, o proibido de ser visto, o que atiça o desejo e a curiosidade (anteriormente representado pelo hoje tão banalizado sexo), atualmente o que não se deixa ver ou representar é o vazio. Por essa via, ele propõe que o que as pessoas procuravam ver, ao olhar a parede do Louvre onde faltava a Mona Lisa, era o lugar vazio da Coisa, que as remete a vivências arcaicas e primitivas.

Talvez o leitor ache tal explicação excessivamente complicada. Ele tem razão, mas ele deve também admitir que não é possível simplificar determinadas coisas que são, de fato, muito complicadas. E, depois, teria ele alguma explicação melhor para o enigmático fato de até mesmo Kafka ter entrado numa fila para ver um lugar vacante numa das paredes do Louvre?

(*) Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 03/09/2011

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