UMA COMUM FANTASIA SOBRE A ANÁLISE

O que acontece quando um paciente volta à análise?

Uma fantasia negativa comum sobre o trabalho analítico é aquela que gira em torno da idéia de que o analista estimula a neurose do paciente para explorá-lo. O analista faria todo esforço para que o paciente não abandone a análise, no intuito de explorá-lo, sugar-lhe todas as forças (o dinheiro). Em nenhuma hipótese pensaria numa interrupção do processo, seu desejo é perpetuá-lo. A análise deixaria os pacientes “dependentes”, no mesmo sentido em que a palavra é usada em relação à droga.

Não é à toa que existe esta fantasia. Ela representa, de forma projetada, o desejo infantil de fusão com o seio materno, de reencontro com a Coisa lacaniana, de reconstrução do narcisismo primário, do gozo com o corpo da mãe, do alcançar a plenitude definitiva. É a projeção da voracidade infantil frente ao seio bom materno. O analista é colocado no lugar da criança voraz que suga indefinidamente o seio inesgotável representado pelo paciente.

Esta fantasia, que ataca a análise e o analista, tem pois um fundo de verdade, na medida que aponta para o desejo mais profundo do ser humano. Esse desejo é assim reconhecido, articulado mas expresso de forma paranóica, ou seja, projetada no outro, aqui representado pelo analista.

Muito bem, se este no fundo é a projeção que a cultura faz sobre o analista, é o desejo do paciente de restaurar a relação narcísica com a mãe, de fundir-se com ela, qual é o desejo do analista?

O analista, para usar o modelo médico, quer que o paciente “evolua bem”. O que é esse “evoluir bem” ? É o paciente poder superar padrões infantis de relacionamento com o mundo. É não mais atualizar permanentemente seu passado nas relações atuais, quebrando as amarras da compulsão à repetição. É poder prescindir do analista por ter integrado em seu psiquismo aspectos até então negados, cindidos, reprimidos. É ter ele condições de manter uma auto-análise que o deixe capaz de administrar bem seu conflito interno, sendo capaz de lidar com as formações que o Inconsciente continuará a produzir. É ter ele compreendido seu funcionamento psíquico. É ele ter crescido.

Irônicamente, assim, vemos que o desejo do analista é o exato oposto daquele que lhe atribuem. Ao contrário de querer reconstruir a díade narcísica mãe-bebê, que é o desejo do paciente, a meta maior do analista é exatamente destruir esta díade, é romper com a estrutura narcísica do paciente e – representante do nome-do-pai, da lei – fazê-lo aceitar a castração simbólica, reconhecer sua limitação e incompletude, acatar o outro como diferente de si, admitir o outro sexo, perder sua onipotência infantil. Embora isso implique em severas perdas, são elas a base imprescindivel para o acesso aos efetivos ganhos dentro da realidade.

Estamos dentro de assunto polêmico, o “desejo do analista”. Todos conhecem a afirmação de Bion (“o analista não deve ter memórias nem desejos”), que tantas vezes e equivocadamente é entendida ao pé da letra. Lacan afirma ser o desejo do analista diferente do desejo do paciente. Este – como ilustra a fantasia acima – tem um caráter mortífero, por objetivar a fusão com o objeto, a indiscriminação, a negação da diferença. A consequência é a destruição do objeto. Já o desejo do analista tem por meta a “diferença absoluta” – o rompimento do narcisismo.

São teorizações mais atuais que em nada contradizem as claríssimas instruções de Freud sobre a técnica e o manejo da transferência. Dali se depreende a exigência ética de o analista compenetrar-se de sua responsabilidade, sabedor que é do extraordinário poder que pode ter sobre o paciente, que com ele reatualiza o desamparo infantil, que o idealiza como figura paterna amada e odiada. É preciso que o analista saiba não usar essa situação para satisfazer o próprio narcisismo e sim para ajudar a seu paciente a sair do dele, enfrentando a castração.

Se o desejo do analista é a “diferença absoluta”, é que o paciente “evolua bem”, “cresça”, como vê ele o paciente que retorna à analise, um veterano que volta à luta? É um problema vasto, que circunscrevei a duas situações típicas.

Todo analista sabe como o curso da análise, sempre singular, tem momentos turbulentos que podem levar a desfechos inesperados e indesejados, como sua interrupção prematura. Os conflitos atualizados na transferência transbordam e não é possível interpretá-los a tempo. O paciente atua e vai embora. Se este paciente retorna à análise é provável que contra-transferencialmente predomine no analista uma atitude de aceitação, pois entende a volta como uma evidência de sua atuação adequada e pertinente, a qual o paciente reconhece passado o calor do conflito que o fizera interromper o trabalho.

Coisa diferente ocorre quando retorna à análise um paciente que recebeu “alta” – momento importante, cujas complexidades não abordarei agora. A reação contra-transferencial do analista pode ser bem mais ambivalente.

Ao contrário da situação anterior, quando a volta do paciente é entendida como um sucesso de seu trabalho, agora essa volta pode colocar em questão os critérios de alta e sua eficácia como analista.

O analista não pode deixar de reconhecer que o paciente o reteve como um objeto bom a quem pode recorrer em momentos de maior necessidade. Se está num momento de integração, sabe que os descaminhos da vida levam a complicados impasses, a situações que podem desencadear as mais variadas regressões no paciente, deixando-o desarmado para enfrentá-las, por melhor que tenha trabalhado. O retorno aponta para uma nova fase da análise, onde pontos que não foram adequadamente abordados virão à tona. Sente-se motivado para reiniciá-la.

Se está vivendo um momento menos integrado, pode sentir o retorno do paciente dentro de uma perspectiva melancólica: é um fracasso seu, uma prova de que não o ajudou o suficiente, caso contrário não estaria ele ali novamente pedindo auxílio. Ou, o que é pior, na linha paranóide: o paciente retorna para acusá-lo de incompetência pessoal ou para denunciar a análise como uma falácia ilusória .

Nestes momentos de menor integração, o paciente fere o narcisismo do analista com sua volta. Ele está distante do desejo de “absoluta diferença”. Estabelece uma relação narcísica com o paciente, funde-se com ele, passa a vê-lo como um objeto persecutorio que o atormenta, não tendo cumprido com o papel de objeto bom tranquilizador, que em sua “evolução”, cumprindo com os deveres do “bom paciente”, daria evidência de sua competência..

O analista pode tentar isentar-se de qualquer responsabilidade frente ao que está sendo visto como um fracasso, atribuindo-o inteiramente ao paciente, cuja patologia pensa ter reincidido independente de qualquer esforço contrário seu anteriormente empreendido.

O analista tem de lidar com fortes sentimentos negativos de rejeição frente ao paciente. Não quer mais aceitá-lo em análise, “entrega os pontos”, acha que deve encaminhá-lo a um colega.

Mais do que nunca, o analista deve ficar muito atento e procurar exercer sua auto-análise. Ao pensar em encaminhar o paciente para outro colega, não deixa de ter suas razões. Não é impossível que seus pontos cegos tenham impedido de analisar adequadamente aspectos daquele paciente, coisa que não aconteceria com outro profissioanal, cujos escotomas dificilmente coincidiriam com os seus próprios. Assim, seria benéfico o encaminhamento.

Precisa discriminar bem se sua relutância em receber de volta o paciente deve-se ao reconhecimento de que efetivamente não tem mais condições contra-transferenciais de atendê-lo (o que é uma possibilidade), ou se decorre de seu narcisismo ferido.

Se o analista consegue analisar a relação narcísica que estabeleceu temporariamente com o paciente, ele entende as exigências de seu super-ego e ideal do ego, vence seu narcisismo que o leva a desejar pacientes perfeitos (filhos perfeitos) que mostrem a todos como ele é capaz e competente, que o reassegurem frente às angústias próprias da prática analítica. Aí tudo muda, pode retomar o desejo da “absoluta diferença”.

A volta do paciente deixa de ser sentida como um fracasso seu ou dele. Passa a ser um fato complexo, decorrente de muitas variáveis. A retomada implica em abordar aspectos não analisados anteriormente quer seja por escotomas que apresentava na época (e que talvez não os tenha da mesma forma no momento), ou por situações existenciais que fizeram emergir conflitos que até então não tinham se configurado para o paciente.

Desta forma sai de uma formulação maniqueista, que só reconhecia a polaridade fracasso-sucesso, proporcionando-se um ângulo de visão mais amplo. Ao aceitar o paciente, com suas queixas e regressões, aceita também suas próprias limitações e as limitações da análise, as imposições da vida.

Se isso acontece, o paciente se sente acolhido e não um filho fracassado que decepciona as expectativas do pai. O analista também se sente mais integrado, menos paranóico ou melancólico, podendo reavaliar o caso, reconhecendo o valor do trabalho anteriormente realizado, que apesar de limitações, deve ter ajudado o paciente, evitando situações de risco e infelicidades maiores, como o fato de ter ele voltado indica.

Com tudo isso, sai da compulsão à repetição e reinicia a análise de forma revitalizada.

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