Trotando no Ibirapuera

Trotando no Ibirapuera (*)

Sérgio Telles

Estava caminhando pelo Ibirapuera, hábito que há muito cultivo com incerta assiduidade, quando fui atubibado mais uma vez por uma familiar indagação.

Um parêntese. O “atubibado” emergiu agora inesperadamente, vindo da longínqua infância em Fortaleza. Esquecida por tanto tempo no fundo de alguma gaveta mental, a palavra saltou dali direto para a tela do laptop, sequiosa de liberdade, querendo circular mais uma vez ao ar livre, invadindo com reminiscências distantes o texto que começo a escrever. Ao invés de me irritar, sua impertinência me comove, pois com ela veio o som da voz de minha mãe que tanto a usava. Escudada em tão forte padroeira, não tenho alternativas senão deixar que ela aqui se instale, cuidando apenas que a forte intensidade afetiva nela embutida não distorça meus propósitos nesta escrita. Fecho o parêntese.

A questão familiar que me atubibava mais uma vez ao entrar no Ibirapuera era uma coisa irrelevante, que até me embaraça confessar. Tratava-se do misterioso motivo que nos leva a balançar os braços quando andamos. Tal questão me ocorria sempre que estava no parque andando em meio a tantos outros andadores, todos balançando seus braços e achando isso a coisa mais natural do mundo. Aparentemente eu era o único a se preocupar com tal problema.

É verdade que a inquietação provocada pela questão não era muito intensa, caso contrário já teria tentado resolvê-la, perguntando a alguém com maior entendimento em anatomia e fisiologia. Pode ser também que já não perguntara a quem de direito por temer exibir uma curiosidade infantil ou expor uma ignorância sobre assunto que seria de conhecimento geral.

O fato é que a questão só se me apresentava ali no Ibirapuera e eu mesmo não lhe dava a devida importância, pois, mal saindo do parque, a esquecia, substituindo-a por outras mais momentosas e pertinentes ao meu dia a dia.

Durante as caminhadas, enquanto não tinha equacionado de forma definitiva o problema, encontrei uma solução temporária ao improvisar uma teoria que explicava o mistério: o balanço dos braços seria um reflexo neurológico, resquício arcaico de quando andávamos de quatro, movendo sincronicamente todos os membros no solo para nos deslocar de um lugar a outro.

Ontem no parque, como sempre, retornou-me a questão no exato momento em que tocava em meu iPod o Exultate, Jubilate, moteto de Mozart que convida as almas abençoadas a exultarem e jubilarem com a bondade da Virgem e demais poderes celestiais. A coincidência me fez pensar nestes extraordinários animais que somos nós, seres humanos, no longo trajeto que percorremos até atingirmos a posição ereta, desenvolvermos o cérebro e podermos criar uma música como aquela. Lembrei que o Exultate, Jubilate, que ouvia com ouvidos leigos, fora composto numa época que acreditava piamente terem sido os homens criados à imagem e semelhança de Deus, longe de suspeitar que pudessem ser eles o fruto de uma evolução das espécies, como, tempos depois, mostrou Darwin.

Estimulado pela música de Mozart, não abandonei a questão ao sair do Ibirapuera, como de hábito. Levei-a para casa e, em lá chegando, fiz o que já devia ter feito há muito tempo – coloquei-a no onisciente Google, quando constatei que muitas outras pessoas compartilhavam minha curiosidade sobre o trivial fenômeno. Por exemplo, vi que, em julho de 2009, Steven Collins, engenheiro biomecânico da Universidade de Tecnologia de Delft, na Holanda, usando voluntários, mostrou que o balanço dos braços tem uma razão de ser, pois, requerendo pouco esforço muscular, facilita a marcha, ajudando o movimento e o equilíbrio, o que não ocorreria se os braços permanecem imóveis. Com isso, diz ele, “deixa-se de lado a teoria de que o balanço dos braços é uma relíquia vestigial de nossos ancestrais quadrúpedes”.

Descobri, assim, que a teoria à qual havia chegado em minhas deambulações pelo Ibirapuera era conhecida e estava sendo contestada. Mas as explicações do engenheiro não me convenceram de todo. Pareceu-me que, com elas, procurava afastar uma verdade incômoda, a do nosso pertencimento ao reino animal. Não queria reconhecer que, enquanto pensamos andar com elegância humana ao balançar os braços, nosso corpo secretamente rememora épocas remotas em que trotaria por campos e prados.

A comparação entre a visão religiosa do mundo vigente na época de Mozart e a atual, representada por Darwin, me fez lembrar a enquete recentemente lançada pela revista Inteligent Life, que convidou intelectuais e artistas a responderem a uma pergunta – em que tempo e lugar do passado teria gostado de viver? Patrick Dillon, historiador e primeiro a responder, diz que, para entrar na brincadeira, o convidado deve deixar de lado os avanços tecnológicos que modificaram radicalmente a qualidade de vida da humanidade. Basta lembrar os desenvolvimentos da medicina, como a anestesia, os antibióticos, as medicações inexistentes há tão pouco tempo. Estes aspectos, bem como o tratamento dado aos direitos humanos nas diferentes épocas (escravos, discriminações raciais e de gênero, etc.) são de tamanha importância que, diz ele, poderiam desencorajar tout court qualquer fantasia de viagem ao passado.

Se fosse responder à pergunta, diria que, pelos motivos acima discriminados e apesar de tudo, penso que o melhor tempo para se viver é o atual. Uma visão de mundo regida pela ignorância e preconceito, limitada por dogmas religiosos seria insuportável para qualquer um que viveu longe de tais constrangimentos. E não precisamos voltar para épocas muito remotas para constatar isso. O admirável filme de Michael Haneke, A Fita Branca, cuja ação se passa no início do século 20, mostra como o mundo era escuro sem as luzes trazidas pelo marxismo e pela psicanálise.

Quanto ao lugar desejável, a escolha não pode ser outra senão o Primeiro Mundo, pois ali a vida tem condições de florescer com maior conforto e tranquilidade, usufruindo com largueza bens materiais e culturais, situação inexistente em outras plagas, o que aponta para as imensas diferenças socioeconômicas que persistem entre diferentes regiões do planeta.

(*) Publicado no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 29/10/2011

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