Três orelhas de livro

Três orelhas de livro – “Abraços Negados” de Simone Paulino (2005) “A Maldição das Cadeiras de Plástico” (2006) de Doris Fleury (ambos da Editora Allbooks – Casa do Psicólogo) e “Contos do Divã” de Sylvia Loeb (Ateliê Editorial, 2007)

1) Abraços Negados – de Simone Paulino

“Abraços Negados”, o livro de estréia da jornalista Simone Paulino que dá seguimento à nossa coleção “Além da Letra”, proporciona uma tocante leitura.

Seus contos curtos seguem o périplo dos moradores das distantes periferias de São Paulo, a luta pela sobrevivência das famílias de migrantes nordestinos, com seu conhecido cortejo de carências – a falta do pai, a habitação precária, o trabalho infantil, a fome e a experiência do desamparo social, a marginalidade.

O que surpreende em “Abraços Negados” é a forma como Simone Paulino aborda essa penosa realidade. Afastando-se das facilidades do panfletário e do demagógico, a autora usa uma linguagem cujos distanciamento, contenção e apuro formal bem poderiam ser chamados de clássicos. Isso faz com que a denúncia implícita em seu texto tenha mais força e impacto do que qualquer abordagem mais engajada.

Ainda assim, sua escrita lembra, por sua clara linearidade, descrições escolares infantis, nas quais nos deparamos, de repente, com súbitos e profundos mergulhos no mais puro lirismo.

Outro ponto original: ela mostra a migração vista pelos olhos da segunda geração, por aqueles que não conheceram diretamente o nordeste, que o vêem como um lugar mítico, recriado imaginariamente na busca das origens para sempre perdidas.

Simone Paulino expõe como os filhos de (i)migrantes são receptáculos da memória secreta dos pais, sofrem por delegação seu luto pela perda da terra e dos costumes.

Dividido em três segmentos, “Abraços Negados” mantém uma unidade temática – o mesmo universo: os bairros de periferia e sua gente humilde, tratada com a mesma sensibilidade mostrada por Chico Buarque na letra que fez para a música de Garoto.

Os contos amealhados na primeira parte configuram uma espécie de autobiografia ou livro de memórias da narradora. Usando a primeira pessoa, ela discorre sobre uma existência dura e sofrida, na qual os afetos são intensos e sufocados. Por todos eles, perpassa a figura perdida do pai, uma grande e enigmática sombra a toldar para sempre sua alegria.

Na segunda, entram em cena novos personagens, mas o mundo é o mesmo anteriormente retratado.

A terceira parte se afasta das anteriores, na medida em que tudo o que fora expresso anteriormente reaparece agora noutro registro ficcional, no qual a narradora faz sua profissão de fé como escritora.

2) A Maldição das Cadeiras de Plástico – de Doris Fleury

O sexo do autor condicionaria sua produção literária? Essa é uma questão importante nos estudos sobre gênero sexual no cânone literário encetados na academia norte-americana. Tal perspectiva, levada a extremos do “politicamente correto”, classifica os grandes clássicos como produção de “machos brancos europeus mortos”, salientando dessa maneira – o que não deixa de ser verdade – o fato do referido cânone literário não ser universal e sim ocidental; dele, portanto, estão excluídos mulheres e autores de outras etnias e culturas.

Diluindo esse conceito, em meados dos anos 90 a mídia norte-americana passou a veicular no mercado o conceito de chick lit – algo como “literatura das garotas, das minas” – e sua contraparte masculina, a lad lit ou dick lit (aproximadamente “literatura dos caras, dos manos”). Como se vê, ambas as denominações estão carregadas de conotações sexistas e um tanto debochadas.

A chick lit tem como paradigma os livros de Helen Fielding (O diário de Bridget Jones) e Candace Bushnell (Sex and the city) – estrondosos sucessos editoriais transformados em filmes e séries de TV de grande apelo popular. É uma literatura pós-feminista, na medida em que as mulheres já não estão brigando por direitos – especialmente os sexuais – e sim relatando as vicissitudes do usufruto desses direitos.

Há um quê de chick lit em Dóris Fleury. Suas personagens são inteligentes, independentes, despachadas e decididas, e nos divertem ao relatar suas peripécias no exercício da condição feminina na atualidade.

Mas há algo em Dóris Fleury que a afasta da conotação de mero entretenimento comercial de alto nível, própria da chick lit, e garante seu assento entre os produtores da boa literatura. É o trato da linguagem e a profundidade com que aborda seus/suas personagens. Suas mulheres não são Bridget Jones nem, muito menos, Amélias ou peruas deslumbradas. São seres humanos dotados de vida mental complexa e ambígua, vivendo seus impasses existenciais sem perder o humor ou a crítica.

Assim, A Maldição das Cadeiras de Plástico é um livro sério sem ser sisudo, de leitura muito prazerosa.

3 – Contos do Divã – de Sylvia Loeb

O livro “Contos do Divã” da psicanalista Sylvia Loeb tem um ritmo narrativo ágil, possibilitando uma leitura fácil e agradável. Apesar disso, na medida em que avança em sua leitura, o leitor vai sendo tomado por uma crescente, inesperada e talvez inexplicada comoção.

Seus sentimentos ficam esclarecidos ao se deparar com o Posfácio, no qual Sylvia Loeb explicita aquilo que já fora sugerido no próprio titulo do livro.

Todos os casos ali coligidos são regidos pela pulsão de morte, apontam para a compulsão à repetição, para o eterno retorno que nos leva aos impasses, aos impedimentos, às impossibilidades de mudanças, aos fracassos nas tentativas de buscar o novo.

Ao fazer um recorte muito especifico de sua clinica e privilegiar o tanático, Sylvia Loeb nos mostra o lado negro, mais difícil e doloroso de nossa tarefa como psicanalistas – aquele que nos faz deparar com limitações, quer sejam as do analisando; quer sejam as nossas próprias, pessoais, que se refletem em nosso papel de analistas; quer sejam as da psicanálise; quer sejam as da vida, do destino, da história de cada um de nós seres humanos.

Desprende-se do livro um pathos trágico, despertando no leitor a comiseração e a compaixão pelo sofrimento humano, assim como o desejo de dele poder ter uma maior compreensão e entendimento.

Não seria esse o pathos da psicanálise configurado na leitura freudiana de Édipo Rei ?

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