TERAPIA PSICANALÍTICA DE FAMÍLIA – Um importante campo a ser estudado

Penso, como já tive oportunidade de afirmá-lo nesta coluna outras vezes, que um dos campos mais promissores da psiquiatria e da psicoterapia é aquele que tem a família como objeto de estudos.

Tal afirmação pode soar paradoxal neste momento onde, por uma série de injunções, a abordagem “neurocientifica” parece prevalescer, impondo uma ênfase quase exclusiva na abordagem medicamentosa do sofrimento psíquico, num descaso sintomático do mundo simbólico no qual estamos todos mergulhados e que, através da linguagem, dá as bases para a construção de nossa realidade psíquica.

É lamentável mas compreensível a resistência da psiquiatria e da psicanálise a essa realidade. Em ambas as áreas, por partirem de um enfoque individual, a abordagem familiar exige uma ampla revisão epistemológica da etiologia e da abordagem terapeutica da doença mental.

A psiquiatria ignora a família como fator etiológico, e só a leva em consideração como eventual coadjuvante do tratamento do paciente, devendo ter ela informações que a permitam exercer algumas funções “terapeuticas” de diagnóstico precoce, de manejo de situações emergenciais ligadas ao paciente, etc. É interessante lembrar como, ao contrário e no passado, a psiquiatria “responsabilizava” inteiramente a família pela doença do paciente, coisa feita através do uso e abuso do famigerado conceito de “hereditariedade”. É verdade que a essa “atribuição de responsabilidade”, a psiquiatria respondia com um total niilismo terapeutico. Nada havia a ser feito.

Hoje em dia, volta a “hereditariedade” com novas vestimentas, que seguem a última moda da pesquisa genética. A montagem do genoma humano é, sem dúvidas, um projeto de inegável transcendência e importância, mas devemos nos precavermos para não transformá-lo numa nova mitologia científica, geradora de uma panacéia.

A psicanálise, por sua vez, ignora oficialmente a família como objeto de estudo e tratamento. Tal como com a psiquiatria, também aqui, a abordagem familiar levanta importantes questões epistemológicas e institucionais. A esse respeito, diz Kaes: “Para pensar o desenvolvimento psicossexual não mais podemos fundamentar nossa análise, exclusivamente, sobre a dinâmica, a economia e a tópica intrapsíquicas. Uma clinica e uma metapsicologia intersubjetivas devem ser constituídas, como nos dizem as premissas de Freud, mas sem que ele as tenha dotado de uma situação metodológica correspondente. Tal proposição inscreve os efeitos da intersubjetividade na estrutura do psiquismo, na própria formação do inconsciente; ela descobre os pontos obscuros das formações e dos processos do inconsciente entre vários sujeitos; enfatiza os lugares de passagem e de abertura do recalcado que eles se concedem; presta atenção à aparelhagem de seus dispositivos pulsionais e representacionais, cada um podendo servir de elo e de mediador aos outros. (…) Mas, hoje, parece difícil somente proteger-se contra eventuais impasses; se, por um outro lado, evita-se considerar tanto o fantasma pessoal do sujeito quanto o efeito do desejo parental sobre o destino da sexualidade infantil, das identificações precoces e de seus avatares no complexo fraterno”. (1)

Kaes – psicanalista francês do Quarto Grupo – é uma respeitável exceção na medida em que é um teórico do estudo psicanalítico da família e luta contra o que chama de “representações solipsistas do indivíduo” e “concepções intradeterminadas do aparelho psíquico” próprias da psicanálise.

Tem ele feito importantes contribuições como a postulação da “transmissão do psiquismo entre gerações”, diferençando o que é da ordem da transmissão “intergeracional” e da “transgeracional”. “Transmite-se” as vivências psíquicas dos que nos antecederam geracionalmente, a partir, evidentemente, dos pais. O “intergeracional” é aquilo que foi transmitido devidamente simbolizado e representado, de modo que pode ser retomado, reelaborado a nível de grupo familiar e vincular, individualmente. O “transgeracional” é aquilo que foi transmitido sem ter sido devidamente representado, simbolizado, impossibilitando sua reelaboração posterior tanto pela família quanto pelo indivíduo. São transmissões como imagens em “negativo”. Esse último tipo de transmissão é especialmente característico de famílias onde surgem psicóticos.

A esse respeito, diz Olga Ruiz: “Na família do psicótico, encontramos, com frequência, que os objetos transgeracionais estão vinculados a criptas e segredos, com um sentimento de que são portadores de alguma fatalidade. (…) Os silêncios (aqueles que estão ligados aos segredos), o que não se fala, os “buracos” ou “brancos”da história familiar são denominados “objetos não transformados” que, transmitidos nesta forma, constituem o que foi assinalado como negativo da transmissão. Estas falhas ou defeitos na transmissão psíquica são derivados de traumatismos na história familiar. Existe, então, uma censura familiar inconsciente.(…) Observamos, no transcurso das sessões, um material que é transmitido em “telescopagem” sobre várias gerações, sem ter tido a possibilidade de uma metabolização ou simbolização a nivel individual. É o caso, como já foi assinalado, de incestos, mortes violentas como suicídios, acidentes, genocídios, etc. Em outra ordem, adoções não esclarecidas ou informações importantes censuradas (muitas vezes por vergonha ou humilhação) que perturbam a memória familiar, na medida em que são perdas ou lutos não elaborados. O modo de transmissão é fundamentalamente não verbal, podendo ser veiculado pelos rituais familiares.(…) A ritualização se manifesta no grupo familiar em forma de comportamentos, palavras, manifestações corporais ou algo semelhante a uma montagem de “cenas da vida familiar”, repetitivas, nas quais cada membro ocupa um lugar e desempenha um “role” para que o grupo continue junto; interfere para que determinadas situações angustiantes sejam metabolizadas ao nivel individual. Isso forma parte dos mecanismos da censura familiar para proteger o vínculo. Não podemos esquecer que o mito familiar, na medida em que inclui convicções partilhadas e “aceitas a priori”, apesar de seu caráter de irrealidade, terão uma dimensão de sagrado ou tabu, não sendo questionadas para manter a homeostase do grup, evitando que este se deteriore ou corra riscos de destruição”.(2)

Fiz citações extensas destes autores, que trabalham dentro da mesma linha, por considerar muito claros e representativos esses trechos quanto a proposta teórica que sustentam sobre a família. Acho que eles resgatam a família da abordagem meramente sistêmica, enriquecendo-a criativamente com o arsenal analítico, sendo o conceito de “transmissão entre gerações” uma consequência lógica de toda a obra freudiana, desde que para Freud o inconsciente é atemporal e, como lembra Laplanche, o complexo de Édipo está presente nos pais antes de ser reeditado nos filhos. E é o complexo de Édipo dos pais que vai conformar o complexo de Édipo dos filhos.

Acho que com isso se retoma em bases muito promissoras o estudo das famílias, que tão originalmente fora defendido por Cooper e Bateson nos anos 50 e 60, mas cujo radicalismo antipsiquiátrico terminou por prestar um grande desserviço à causa da terapia familiar, ao propor formulações reducionistas que demonizavam a família, caracterizando-a como o grande mal, vitimizando o paciente.

Com as formulações que aqui exponho, vemos que a situação é muito mais complexa, não dá para reduzir tudo em “vítimas” e “agressores”.A rigor, se é para colocar as coisas nestes termos, poderíamos dizer que somos todos “vítimas”, na medida em que pais e filhos estamos todos enredados na grande rede do inconsciente familiar, nas sucessivas reedições do complexo de Édipo, que a cada geração é “contada” de uma forma única e singular em cada família. Aqui bem cabe o que Gilberto Gil diz na bela letra de sua música “Flora”: “Não há o que perdoar, por isso mesmo é que há de haver mais compaixão”.

Assim como a antipsiquiatria com seu radicalismo terminou por ser contraproducente na defesa do enfoque familiar do sofrimento psíquico, um equívoco semelhante ocorrera um pouco antes, na década de 40 nos Estados Unidos, com os estudos sobre a “mãe esquizofrenogênica”. A correta apreensão da existência de um vínculo com especial conotação patológica observado entre mães e filhos esquizofrênicos foi, a meu ver, erroneamente usada, o que terminou por desencadear uma compreensível reação defensiva por parte das mães, que se sentiam injustamente acusadas.

Se era, e é, um erro culpabilizar a mãe ou qualquer membro de uma família pela loucura de um de seus componentes, esse erro não deve ser substituído por outro que é o de ignorar toda a rica dinâmica familiar e o reconhecimento do extraordinário papel que o inconsciente paterno/materno vai ter na estruturação do psiquismo dos filhos e na organização da própria dinâmica específica do grupo familiar.

É claro que se vamos entender a psicose, ou as demais patologias mentais – retiradas evidentemente aquelas de indiscutível etiologia somática – como decorrência de disfunções comunicativas no grupo familiar, de projeções massiças da conflitiva inconsciente dos pais (entenda-se seus complexos de Édipo, o que – por sua vez – se referem ao complexo de Édipo de seus próprios pais, o que justifica o enfoque familiar “transgeracional”) organizada em complexa rede intersubjetiva com os filhos, se vamos assim entender o sofrimento psíquico, precisamos estar aparelhados para poder dar atendimento a esse universo que se amplia de forma assustadora, tanto que quase nos faz temer cair no papel impossível do alienista descrito ironicamente por Machado de Assis.

Aquilo que ocorria com a “mãe esquizofrenogênica” nos anos 40 parece ter um correlato atual. Refiro-me à grave problemática do autismo. A imensa carga de sofrimento dos pais de um autista não deve ser aumentada com sua “culpabilização”, evidentemente. Pelo contrário, seu sofrimento com a dificuldade evidenciada pelo filho é uma porta de entrada para poderem entender suas próprias dificuldades, dificuldades internas, dificuldades interpessoais, diculdades que necessariamente se agudizam com a chegada do filho.

Nunca é demais lembrar este fato que demonstra a importância do inconsciente tal como Freud nos descreveu e que evidencia também a distância entre o somático e o psíquico. O ato da procriação é uma evidência da franca maturidade biológica. Pois é justamente neste momento de vigor biológico onde os seres humanos mais se fragilizam, regredindo psiquiamente a estágios anteriores, revivendo dores de sua própria infância ligadas às vicissitudes do complexo de Édipo.

Transcrevo aqui – mais uma vez extensamente – o que Carel, outro analista que trabalha na linha de Kaes, fala com grande propriedade sobre esse momento. Diz ele: “(…) a conjunção, em período perinatal, da regressão psíquica normal, que põe os pais em contato com sua infância, e da realidade da vulnerabilidade biológica e psíquica da mãe e da criança, submete a dura provação a psique dos pais, e assim, o conteúdo psíquico que irá acolher o novo ser. É desta maneira que pode haver uma situação traumática para o bebê, o traumatismo do nascimento, na brecha de riscos de seu ambiente humano e de sua própria vulnerabilidade sômato-psíquica. As ocorrências peri-natais só podem fornecer seu contingente ao desencadeamento do traumatismo familiar em favor de uma nova atualização de disturbios infantis na psique dos pais.A cena do nascimento fornece, então, um terreno fértil para a reincidência de angústias primitivas dos pais que irão encontrar, na ocasião, seja a ressignificação constrututiva, seja, ao contrário, a desestruturação do “continente estrutural edípico”. (…) a potencialidade traumática da chegada de uma criança é bem mais dependente de movimentos de investimento e de identificação inconsciente dos pais do que de fatores da realidade exterior.(…) A mãe vive sua gravidez em um estado de desassossego intenso, que atinge a sideração imaginária. As percepções quase alucinatórias do ventre vazio ou do bebê grandioso são frequentemente relatadas. À aproximação da data do parto, a angústia amplia-se até o sentimento de morte iminente. Paralelamente, o pai pode começar um movimento de regressão na rivalidade narcísica com o bebê. Ele se desorganiza ou se exclui, não mais representando, então, o papel de terceiro que emoldura a díade mãe-criança. Chamo traumatose este estado de angustia de catástrofe, de confusão, de desorganização interna, no qual o indivíduo sente sua vida física e psíquica ameaçada. Sabe-se que este estado não pode durar muito tempo. O indivíduo deve encontrar arranjos defensivos para lidar com o afluxo de excitação. Na falta deles, sente-se ameaçado pelos maltratos da descompensação psicótica, psicossomática ou psicopática.

Um fato clínico, frequentemente encontrado encontrado nesta conjuntura, faz pensar que a mãe, com a afluência tácita do pai, coloca em ação, dentre as defesas possíveis, uma que me parece poder ser qualificada como “solução de geração”. Ela é destinada a vincular, em identificação isomórfica, o imago do bebê a tal imago ancestral para lidar com as angústias de catástrofe geradas na posteridade das agonias primitivas, vividas pela mãe quando era bebê em relação a seus pais, eles próprios em desespero. A solução entre geração, então, contém, como a solução delirante, um fragmento de verdade-realidade histórica deformada, relativa à transmissão entre gerações dos estados de desespero”. (3)

É importante não esquecer que o que Carel descreve de forma tão dramática acontece não só na geração de psicóticos por pais especialmente doentes, mas é algo estrutural. Ou seja, toda criança ao ser concebida vai ocupar um lugar muito específico no inconsciente dos pais. Acho que essa concepção, que – como já disse – é apenas uma explicitação lógica das descobertas freudianas, enriquece sobremaneira não só os tratamentos de grupos familiares, mas as próprias análises individuais.

Como ilustração, citarei dois casos de psicanálise (ou seja, de uma terapia “individual”) onde o “transgeracional”, a história familiar não dita, se mostra de grande importância num determinado momento da vida destas pessoas.

O primeiro caso diz respeito a um homem que após suplantar muitas dificuldades pessoais, organiza-se emocionalmente a ponto de poder manter um casamento, suportar as tensões da paternidade e das exigências profissionais. Um dia – para surpresa de seu analista – diz estar planejando uma mudança de cidade, o que deveria acontecer em breve. Tal implicaria, como não poderia deixar de ser, em alterações radicais na vida do paciente, que poderiam colocar em risco tudo aquilo que tão sacrificadamente tinha conseguido até então. É verdade que várias vezes anteriormente tinha aparecido idéia semelhante, manifestando o paciente o desejo de ir morar numa cidade vizinha por estar ali um parente próximo. Nestas ocasiões foi-lhe mostrado o desejo regressivo de ter a proteção das figuras paternas, a dificuldade em elaborar o luto das separações das figuras importantes de sua infância, pois sua família originária morava numa outra região do país. Tais interpretações pareciam ter afastado tal desejo do paciente, que agora – muito tempo depois – voltava com intensidade redobrada.

O analista se perguntava o que poderia estar motivando naquele momento tal atitude. A resposta logo apareceu nas associações do paciente. Ele disse ter notado uma curiosa coincidência – o pai também tinha feito uma mudança de cidade com a mesma idade que ele, paciente, tinha naquele momento. Tal “coincidência” proporcionou a compreensão e a interpretação do desejo que estava prestes a atuar.

Em ocasiões anteriores o paciente tinha mencionado, esta mudança de cidade, sem dar qualquer ênfase especial a ela. Somente agora, ao falar de seu desejo e da “coincidência”, foi possível – através de um lento trabalho de construção – entender a dimensão catastrófica e traumática que esta mudança tinha assumido para a família e para o próprio paciente, que na ocasião tinha 4 anos. Foi possível entender que a mudança da familia tinha se dado logo depois do suicidio do tio materno que era o irmão mais querido da mãe e da morte da avó paterna. A mãe entrara em grande depressão com a morte do irmão e fôra para uma cidade vizinha juntamente com o paciente, onde ficou vários meses. A morte do tio materno fizera com que toda a família da mãe – que não era originária daquela cidade e já tinha enfrentado vários problemas ali – se mudasse para uma cidade maior, o que fez a mãe passar a insistir com o marido que deviam também mudar para lá. O pai do paciente era pessoa de grandes posses e prestígio profissional na cidade onde viviam, mas tinha se envolvido numa série de problemas sérios e fôra ameaçado de morte várias vezes. A morte da mãe dele, as ameaças de morte por parte dos inimigos, a insistência da mulher, sua própria depressão, tudo terminou por levá-lo a concordar com a mudança. Na cidade grande configurou-se a derrocada. O pai, figura poderosa e importante na cidade natal, eclipsou-se inteiramente e fracassou profissionalmente. A depressão paterna e materna marcaram de forma indelével a experiência do paciente, que estava em franco período edipiano. Um elemento importante foi a visão de um pai destruído, fraco e castrado confirmava suas fantasias de rivalidade e lhe proporcionavam um triunfo impossível de arcar sem o desencadeamento de uma culpa arrasadora. O plano de mudar de cidade era uma tentativa de resolver via atuação todo um montante de sua história pessoal e familiar não devidamente representada e simbolizada. Estava inteiramente identificado com o pai que tinha mudado de cidade na idade que agora possuia. Com a reconstrução deste fragmento de sua história, o paciente pode entrar em contato com as vivências catastróficas sentidas naquela ocasião, podendo representá-las, simbolizá-las, o que tornou desnecessário a atuação. A situação teve vários desdobramentos, que fogem ao escopo deste artigo.

O outro caso mostra um paciente cuja família imigrou para o Brasil quando ele estava na puberdade. Os pais eram originários de um outro país de onde tiveram de sair por problemas políticos, indo se asilar naquele onde nascera o paciente e de onde partiram para o Brasil posteriormente. O paciente sempre estranhara o fato de os pais não manterem nenhum contato com a família de origem. Nas muitas vezes que abordava o assunto com a mãe, lhe era dito que isso se devia a “divergências políticas”: supostamente os pais tinham posição política diferente do resto de suas famílias. Embora achasse a explicação pouco convincente, o paciente captava uma tamanha ansiedade nos pais toda vez que se falava sobre isso que terminou por abandonar totalmente o assunto. Tinha uma imensa curiosidade reprimida sobre o passado familiar mas não se permitiu fazer nenhuma investigação, mesmo quando tal se tornou possível em algumas ocasiões. Somente quando a mãe morreu, anos depois da morte do pai – e o paciente estava já de meia-idade – pode ele retraçar todo o passado familiar com relativa facilidade, pois nos papeis da mãe estavam as indicações necessárias para tanto. Ao visitar o país de origem dos pais, tomou conhecimento de vários e importantes fatos que deixaram claro para ele a vergonha e humilhação que geraria nos pais se tivessem de confessá-lo a ele.

Essa impossibilidade de ter acesso a seu próprio passado tem interessantes desdobramentos. Em primeiro lugar, sua vida profissional possibilita-lhe o exercício de uma atividade onde o manejo de informações confidenciais é uma constante que envolve uma considerável exposição a situações de risco. Muitas vezes é isso visto na análise como algo ligado ao exercício deslocado da investigação do passado familiar. Em segundo lugar, isso parece exercer decisiva importância na atitude que o paciente oferece frente a uma filha ilegítima. Soube da existência desta filha quando ela já teria uns 13 anos, momento em que foi procurado pela mãe da criança, uma antiga namorada que, ao engravidar, deixou de procurá-lo. Investigando melhor, ficou claro que antes disso a namorada tentou falar-lhe várias vezes e ele “não entendeu”, “não compreendeu”. É verdade que muitos outros fatores externos entraram em jogo dificultando a situação, mas internamente o paciente pouco fez e faz – apesar de ser um tema relativamente frequente na análise – para assumir esta filha, mantendo-a até hoje na ignorância de seu próprio passado, tal como aconteceu com ele mesmo. O ódio que o paciente tinha à mãe e ao pai por terem ocultado dele o passado é projetado inteiramente na filha, o que faz com que tema a reação dela ao ser revelada sua origem. Como já se passaram quase 10 anos desde que foi informado oficialmente de sua existência, teme a cobrança da filha. Numa construção possível, podemos imaginar a forma proibida e incestuosa com a qual os pais do paciente viveram suas sexualidades, o que os teria impedido de exercê-la abertamente frente aos pais (avós do paciente) e exibir para eles a progenitura. Seus filhos (o paciente entre eles) não puderam – por estes motivo – ser apresentados aos avós. De certa forma isso se atualiza com a filha ilegítima do paciente, que, vivida como fruto incestuoso e gerador de culpas, não pode ser assumido. É verdade, como já disse, que no caso específico fatores externos tem grande peso no desfecho desta situação, entre eles a posição da mãe da criança, que não deseja ser desvendada sua verdadeira origem. Mas, o que também é elucidativo no que diz respeito à patologia familiar, o paciente entra em total conluio com esta posição.

Bibliografia

1) Kaës, René – Complexo Fraterno: Aspectos de sua especificidade – in Ramos, Magdalena (Org.) – Editora Escuta – 2ª edição – 1999 – São Paulo
2) Correa, Olga Ruiz – Segredos de Família – in Ramos, Magdalena (Org.) -Casal e Família como paciente – Editora Escuta – 2ª edição – 1999 – São Paulo
3) Carel, André – A Posteridade da Geração – in Eiguer, Alberto – A Transmissão do Psiquismo entre Gerações – Enfoque em terapia familiar psicanalítica – Unimarco Editora – 1998 – São Paulo

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