Sobre “Prova de coragem” de Roberto Gervitz

Prova de Coragem, de Roberto Gervitz (*)

Sérgio Telles

Não é fácil a transposição de um romance, concebido em linguagem escrita e com estrutura narrativa especifica, para a linguagem visual do cinema. Mas Roberto Gervitz tem-se saído bem nessa empreitada. Em 1987, realizou “Feliz Ano Velho”, grande sucesso de público baseado no best seller de Marcelo Rubens de Paiva e em 2005 lançou o “Amor Subterrâneo”, inspirado num conto de Cortazar. Agora apresenta o “Prova de Coragem”, uma leitura livre do livro “Mãos de Cavalo” de Daniel Galera.
“Prova de Coragem” mostra o acerto de contas consigo mesmo de Hermano, um médico cirurgião bem sucedido, casado há 7 anos com Adri, uma artista plástica que acaba de receber um convite para participar de importante exposição e se angustia se será capaz de produzir algo à altura. Hermano pratica alpinismo com um amigo de infância, escalando rochas e montanhas, quando é sempre acometido por vertigens. Mesmo assim, não abandona o esporte e com tenacidade procura enfrentar o perigo inerente a essa prática e vencer o medo das alturas, mostrar sua coragem e o sangue frio exigidos em tal atividade.
O equilíbrio do casal é rompido com a gravidez de Adri, algo que provoca desconforto em Hermano, pois não fora consultado sobre tão grave decisão. Ao expressar esse sentimento para a mulher, ela o acusa de não se entregar à relação, de nunca ter querido um filho e de se manter distante, como se tivesse um segredo que a exclui.
Adri se envolve com a produção da obra a ser exposta e Hermano a censura por não se cuidar adequadamente nem da gestação, pois tem uma gravidez de risco, o que a impediria de fazer o esforço físico implicado na montagem da exposição.
Os ânimos se acirram e ele lhe comunica que vai para a Terra do fogo escalar um paredão intransponível, grande desafio para qualquer alpinista. Ela interpreta isso como uma irresponsável fuga frente à paternidade e rompe o relacionamento. Hermano se muda para a casa do amigo com quem faria a planejada escalada e que age como seu instrutor.
Em meio a tudo isso, por acaso Hermano encontra Naiara, sua antiga namorada, que o convida a visitá-la no bairro onde moraram na infância e do qual ele se afastara muitos anos antes. Isso precipita o retorno do passado e logo vamos descobrir os reais motivos de seus medos e porque precisa tanto dar mostras de coragem.
Ao chegar à antiga vizinhança, paulatinamente voltam as memórias da adolescência, as pressões para ingressar e ser aceito no grupo e se haver com o violento chefe da turma, Bonobo, irmão de Naiara.
Flashbacks mostram os traumas que marcaram Hermano e o impedem de ingressar plenamente na maturidade, estabelecer uma ligação estável e segura no casamento, ao mesmo tempo em que o obriga à prática de um esporte de alto risco com que procurava afirmar sua coragem, vencendo os fantasmas do passado que o acusam de covardia.
Mas é a gravidez da mulher que convoca Hermano de forma definitiva e o faz assumir a vida adulta, dar um adeus definitivo à adolescência e enfrentar seus medos mais arraigados e assustadores, a culpa que o perseguia. Somente assim ele se sente apto a enfrentar os perigos de um comprometimento amoroso, os riscos de perder a pessoa amada, os desafios de criar um filho, o peso da paternidade.
Ele compreende que a verdadeira coragem não é se expor a perigos físicos ou vencer desafios arriscados. Ela consiste em se deparar com a própria verdade, reconhecer qualidades e defeitos, limitações e dificuldades, aprender a conviver com eles e aceitá-los, ao invés de empreender uma incessante luta para não vê-los.
A fuga de Hermano, a tentativa de negar os próprios problemas internos é um comportamento muito frequente. Porque agimos assim? Em grande parte pelas severas exigências do superego ou do ideal do ego, que estabelecem padrões de conduta muitas vezes impossíveis de serem alcançados. Quando isso acontece, eles punem o ego, gerando sentimentos de culpa, humilhação e vergonha, a impossibilidade de se sentir merecedor de qualquer coisa que não seja a punição.
Vê-se que Hermano é um cirurgião bem sucedido, vive com uma bela mulher numa grande casa, mas age como se não merecesse tantas benesses. Sua culpa não permite que ele usufrua de suas próprias conquistas ou as estabilize, através do nascimento do filho, consolidando assim uma família. Tudo é quase destruído pela necessidade de punição pelo que considera ser uma grande falta cometida anteriormente e da qual não se perdoa. Ao enfrentar definitivamente o problema e não mais manter uma mentira, sente-se mais integrado e seguro de prosseguir confiante frente aos novos desafios que se lhe apresentam.
Há alguns elementos apenas insinuados na trama principal que aqui desdobro por considerá-los prenhes de significados. Nos encontros de Hermano com Naiara fica estabelecido um traço de seu caráter, que é o de se deixar machucar, o não evitar a dor, o que a faz mordê-lo tão ferozmente a ponto de provocar uma cicatriz, como mostra para ela anos depois, já adultos. Teria esse traço masoquista alguma ligação com o episódio decisivo da trama, no qual se machuca para simular uma agressão não ocorrida?
Desdobramento semelhante merecem os apelidos adolescentes “Mãos de cavalo” e “Bonobo”.
Sobre “Mãos de cavalo”, há apenas uma rápida cena em que Naiara, pegando as mãos de Hermano, diz que elas são “belas” e que ele “só era cavalo com ele mesmo”. Disso se depreende que “mãos de cavalo” seriam mãos toscas e grosseiras, o oposto da delicadeza, destreza e precisão supostas nas mãos de um cirurgião.
Poderíamos pensar que nessa antinomia estão condensadas as transformações ocorridas entre a adolescência e a vida adulta, quando qualidades pessoais que ainda não brotaram plenamente, que ainda não são plenamente discerníveis, geram impressões enganosas nos observadores – como “mãos de cirurgião” erroneamente tomadas como “mãos de cavalo”.
“Bonobo”, por sua vez, é um significante muito ambíguo. Como se sabe, bonobo é um tipo de chimpanzé que se caracteriza por apaziguar todas as lutas grupais através de relações hetero e homossexuais. Esse fato é interessante na medida em que todas as modalidades de sexo e violência são vislumbradas, senão atuadas, em grupos de adolescentes. Ao contrário do chimpanzé que lhe dá o nome, Bonobo é um encrenqueiro, um criador de brigas, um violento que resolve suas pendências não através do sexo bissexual e sim através da luta.
Um outro aspecto diz respeito à dupla gestação de Adri – a de sua obra de arte e de seu filho. Preocupada com a exposição, termina por achar inspiração numa velha árvore encontrada casualmente num passeio com o marido. Faz Hermano parar o carro, tira fotos, mas ele, indiferente à beleza da árvore, diz apenas que ela provavelmente está infestada de cupins e logo será abatida, o que de fato acontece. É justamente a destruição da árvore o que a estabelece como tema e matéria para a criação de Adri. Ao tentar recriar artisticamente um objeto amado e perdido, Adri ilustra um preceito psicanalítico de Hanna Segall, que afirma ser a arte um processo de reconstrução do objeto perdido ou destruído. Segall pensa que não há criação na arte e sim recriação.
O roteiro enxuto, a correta direção do atores, a fluidez da sequência narrativa, a ambientação, a locação, os enquadramentos, tudo confirma a maturidade e domínio de Gervitz como diretor e roteirista, criando (ou recriando?) obras consistentes, com densidade psicológica.

(*) Versão mais curta desse texto foi publicada no Caderno 2 do jornal “O Estado de São Paulo” em 20/05/2016

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