Shakespeare na atualidade

“Parece-me que, se viesse a conhecer Shakespeare, eu explodiria de medo“, escreveu Gustave Flaubert numa carta para sua amada Louise Colet.

O Bardo do Avon

A confissão de Flaubert, feita quase 250 anos após a morte do Cisne de Avon, dá uma boa imagem da vitalidade e força intimidadora de Shakespeare mesmo entre seus pares mais poderosos, como é o caso do autor de “Madame Bovary”. É provável que a maioria dos grandes escritores de qualquer época não hesitasse em subscrever tal afirmação.

Isso dá mostra da posição excepcional de Shakespeare na cultura. Suas peças continuam sendo executadas no mundo inteiro em grande escala. Isso significa que seus personagens e as situações por eles vividas continuem emocionando espectadores e leitores de épocas bem diversas e latitudes muito variadas, fazendo-os se identificarem com eles, reconhecendo neles suas emoções mais fundas e secretas.

A explicação disso nos deu Freud, ao mostrar que os grandes artistas entendem com acuidade a realidade psíquica. Por este motivo, transcendem as circunstâncias temporais e espaciais, pois remetem aos eternos conflitos de amor e ódio que regem as relações humanas, presentes desde os primeiros momentos vitais no seio da família, quando se organizam no contato com os pais e irmãos, estabelecendo modelos que marcarão os vínculos sociais a serem mantidos no futuro.

Segundo Freud, os artistas têm uma facilidade especial para entrar em contato com seu próprio psiquismo inconsciente, o que não ocorre com a maioria das pessoas, que vêem esta possibilidade vedada pela repressão. Deste contato com o inconsciente os criadores retornam com uma obra que expressa verdades internas logo reconhecidas por todos que dela se aproximam.

Se esse é um dom comum a todos os artistas, não se pode negar que entre eles Shakespeare ocupa um lugar único. Em Shakespeare se conjugam a perfeita compreensão dos desvãos mais escuros da mente humana com uma extraordinária linguagem poética, cuja beleza e magnificência arrebatam o leitor ou espectador. É por isso mesmo que – ao contrário do que ocorre com a obra de muitos dramaturgos – o prazer obtido com a leitura das tragédias de Shakespeare é semelhante àquele proporcionado ao assistir sua encenação.

A linguagem esplendorosa de Shakespeare devolve ao drama humano sua real dimensão, retirando-o da banalização com a qual defensivamente envolvemos nossa existência, na vã tentativa de manter ao largo a percepção de nossa desconcertante irracionalidade, da gravidade de nossos embates com os semelhantes, da rápida consumação do tempo que nos aponta a finitude.

A compreensão da alma humana por parte de Shakespeare se evidencia de modo exemplar quando mostra seus personagens em ruminações consigo mesmo, ocasião em que fica exposta a trama de seus pensamentos e sentimentos, que transpõem as barreiras da moralidade e da habitual repressão da consciência, alcançando a mais recôndita dimensão inconsciente. Falstaff, Hamlet e Edmundo, em seus solilóquios, mostram possuir um admirável entendimento de suas próprias emoções, comparável apenas àquele obtido após anos de uma psicanálise bem sucedida.

Os personagens de Shakespeare vivem no topo da pirâmide, eles fazem parte da nobreza, são reis e rainhas, são os poderosos do mundo. Tolstoi, um dos poucos grandes da literatura a censurar Shakespeare, viu essa escolha como uma falha, como um desprezo ao homem comum, à multidão e à classe operária. Entretanto, isso que poderia ser entendido como uma limitação decorrente das contingências históricas que cercavam o autor, nas mãos de Shakespeare se transforma num precioso instrumento de análise dos impasses próprios da condição humana. Ao centrar a urdidura das grandes tragédias numa classe social na qual os problemas da sobrevivência imediata são inexistentes, Shakespeare parece dizer que os conflitos específicos do ser humano – focados na busca da felicidade e do amor, no manejo do ódio e no enfrentamento com a morte – podem ali ser vistos em sua forma mais depurada.

Quer isso dizer que somente os ricos e poderosos vivem efetivamente tais conflitos? Claro que não. Eles são inerentes à condição humana, afligindo a todos – pobres e ricos, senhores e escravos. Mas estes conflitos podem ficar encobertos e mascarados por várias circunstâncias.

Tomemos um cidadão comum, preso a limitações econômico-financeiras concretas relacionadas com casa, comida, saúde, filhos, inseguranças quanto ao futuro, etc. Este cidadão facilmente atribuirá sua infelicidade, sua insatisfação e sua sensação de incompletude às carências reais que o perturbam. Mas ao atribuir sua infelicidade a tais necessidades, ele se equivoca, pois acredita que bastaria ter aqueles bens materiais que lhe faltam para ter garantida a felicidade, como se os ricos fossem felizes por terem acesso a tudo que o dinheiro pode comprar.

É nesse sentido que a luta pela sobrevivência encobre os problemas mais específicos do ser humano. Eles ficam mais visíveis quando as necessidades básicas estão satisfeitas e garantidas.

Somente então aparece claramente aquilo que é a marca da natureza humana – a impossibilidade de satisfazer o desejo, a percepção de uma incompletude estrutural, de um vazio que em vão procuramos preencher durante a vida. É isso o que Shakespeare mostra com seus reis e rainhas, com seus donos do mundo. Apesar de tudo terem, continuam mergulhados em angústias e culpas, prisioneiros de compulsões, movidos por loucas ambições, arquitetos ensandecidos de seus próprios infortúnios. É nesta paisagem sombria que vamos encontrar os ciúmes assassinos de Othelo, a perfídia de Iago, a insaciável vontade de poder de Lady Macbeth, as dúvidas paralisantes de Hamlet, o desespero de Lear frente a velhice e a morte.

Por esta via também fica clara a discriminação entre as necessidades conscientes – reais, concretas e objetivas, e os desejos inconscientes – irrealísticos, fantasiosos, anacrônicos em sua tentativa de refazer a onipotência narcísica infantil.

A genialidade de Shakespeare é tão impactante que custa a crer que o filho de um modesto luveiro, sem educação formal bem definida, possa ser o autor de peças tão brilhantes, nas quais desfilam personagens da mais elevada estirpe, possuidores de alta cultura e discorrendo com desembaraço sobre temas sutis e complexos. Por este motivo, levantou-se a hipótese de que algum nobre da corte elisabetana seria o verdadeiro autor das peças e, para proteger sua identidade contra o estigma social que então cercava o teatro, teria usado o nome de Shakespeare, o humilde ator e diretor da companhia teatral. Entre os supostos autores escondidos sob o nome de Shakespeare, os mais importantes são Francis Bacon e Edward de Vere, conde de Oxford. Este último teve um grande número de defensores, ditos “oxfordianos”, entre eles o próprio Freud.

Hoje em dia tais suspeitas são desconsideradas. De qualquer forma, homem humilde ou nobre cortesão, o autor das obras excelsas que têm deslumbrado incontáveis gerações continua nos assombrando como a maior e mais genuína manifestação de genialidade literária.

Por tudo isso Shakespeare é considerado pelo crítico literário norte-americano Harold Bloom como o ápice do cânone ocidental, ou seja, do conjunto dos grandes escritores da civilização judaico-cristã.

Para Bloom, Shakespeare estabelece o padrão e os limites da literatura.

Artigo publicado na revista E do Sesc- SP, no. 159 – agosto 2010

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