Resumo de um artigo de Glenn Gabbard sobre a publicação de casos clínicos em psicanálise

A publicação de casos clínicos inevitavelmente põe em causa questões ligadas à privacidade do paciente, protegida pelo sigilo profissional preconizado pela ética hipocrática e a necessidade de promover o ensino e a pesquisa da medicina, que muito se beneficia com tais publicações. Além do mais, está em jogo o projeto pessoal do autor do trabalho, que sabe ter a publicação um efeito positivo em seu próprio currículo, proporcionando-lhe prestígio profissional.

Há claramente um conflito de interesses e os responsáveis pelas publicações médicas no Primeiro Mundo têm desenvolvido normas que estabelecem diretrizes estritas na produção de trabalhos clínicos.

International Committee of Medical Jounals Editors (ICMJE) (Comitê Internacional de Editores de Jornais Médicos), depois de anos sublinhando a necessidade de proteção do anonimato do paciente, decidiu enfatizar a necessidade de o autor obter a autorização do paciente para a publicação de seu caso. A diretriz, que foi publicado no British Medical Journal em novembro de 1995, ficou assim estabelecida:

“Os pacientes têm o direito à privacidade e este não deve ser infligido sem seu consentimento informado. Informações que permitam sua identificação não deveriam ser publicadas em textos, fotografias e outros dados a não ser que sejam essenciais para os propósitos científicos e que o paciente (ou pai ou tutor) dê uma autorização por escrito autorizando a publicação. O consentimento informado para esse propósito exige que o paciente tenha visto o manuscrito a ser publicado”.

Diz ainda a diretriz que detalhes que levem à identificação do paciente devem ser omitidos se não forem essenciais, mas os dados do paciente jamais deverão ser alterados ou falsificados em função do sigilo de sua pessoa. A completa proteção da privacidade do paciente é dificil de obter e o pleno consentimento deve ser sempre obtido em casos de dúvida. Por exemplo, ocultar a reagião ocular em fotografias é insufiente para proteger seu anonimato.

O pedido por consentimento informado deveria estar incluído nas instruções da publicação para os autores oferecidas pelas revistas e periódicos. Quando o consentimento informado for obtido, isso deve ser indicado no artigo publicado.

Vê-se claramente que esta diretriz do ICMJE dá preferência à precisão científica em detrimento da proteção da privacidade do paciente.

É interessante essa tomada de posição dos editores de revistas médicas sobre privacidade e precisão científica, pois ela permite, de imediato, evidenciar algumas peculiaridades do campo psicanalítico. Se do ponto de vista científico, é necessário o maior rigor na descrição dos fatos clínicos, que não devem ser alterados sob risco de invalidá-los, de imediato vemos como isso é impossível no relato psicanalítico, onde a questão do sigilo profissional e da proteção da privacidade do paciente tem um alcance e uma dimensão que não existe na medicina. Uma coisa é a publicação dos dados de uma doença do fígado, outra é o relato analítico, que envolve a biografia, o comportamento atual, as relações sociais e pessoais do paciente.

Os casos analíticos, pela sua própria especificidade, não podem seguir as imposições dos editores de revistas médicas e seus parâmetros de precisão científica. Os casos necessariamente têm de ser disfarçados, os dados pessoais biográficos não podem ser enunciados. Têm que ser camuflados e, em alguns casos, até mesmo inventados, no intuito de proteger a privacidade do paciente. Também aí, a questão do pedido de autorização para publicação têm implicações que não existem nos casos médicos.

Isso mostra como a psicanálise não pode seguir os parâmetros de cientificidade de campos tão próximos quanto a medicina, o que dizer então dos mais distantes, pertencentes às ‘hard sciences’ – a física e a química, por exemplo.

Isso não quer dizer que a psicanálise não pode almejar ser considerada uma ciência. Apenas que as questões epistemológicas por ela desencadeadas devem receber respostas específicas, que estamos ainda estabelecendo.

Vivemos no Brasil atualmente um auspicioso momento de grande produção de trabalhos analíticos. Por isso mesmo, é importante relembrar as questões éticas ligadas à confidencialidade, fazendo com que os autores – pressionados pela política do “publish or perish” – não coloquem acima dos interesses do paciente seus próprios desejos ligados – legitimamente, diga-se de passagem -à aquisição de maior prestígio profissional, coisa habitualmente vinculada com a publicação de trabalhos em revistas especializadas.

Estes importantes problemas ligados à apresentação de caso clínico receberam uma recente e muito boa revisão feita por Glen Gabbard em “Disguise or consent: problems and recommendations concerning the publication and presentation of clinical material”, artigo publicado no International Journal of Psychoanalysis – IJP (2000 – 81,1071) e colocado há pouco na sua lista de discussão na internet, onde desencadeou um interessante debate.

Gabbard é membro do American Psychoanalytic Association Joint Committee on Confidentiality e membro do Ethics Subcommittee da mesma instituição, além de editor do International Journal of Psychoanalysis.

Por considerar muito oportuna sua leitura, fiz um resumo do mesmo. Espero que tenham a mesma opinião. Alguns dados acima foram retirados deste artigo.

RESUMO DO TRABALHO DE GLEN GABBARD “DISGUISE OR CONSENT: PROBLEMS AND RECOMMENDATIONS CONCERNING THE PUBLICATION AND PRESENTATION OF CLINICAL MATERIAL”

Frente ao conflito inevitável entre a necessidade de manter a privacidade do paciente; a necessidade da produção de trabalhos clínicos publicados com fins de estudo e pesquisa imprescindíveis na transmissão do conhecimento analítico; e os interesses profissionais do que escreve tais trabalhos, Gabbard aponta para quatro tipos de solução possíveis.

São eles – o forte disfarce do material, o consentimento do paciente, o enfoque processual, o uso de compósitos e de um colega como autor.

Claro que é possível uma combinação destes elementos, nenhum deles previne inteiramente os riscos, todos têm suas vantagens e desvantagens.

Gabbard diz que o Comitê de Atividades Científicas da American Psychoanalytic Association tentou tomar uma posição sobre a escolha entre o uso do forte disfarce do material para manter o sigilo do paciente ou o pedir-lhe a autorização para publicação, sem chegar a um consenso.

Em 1991 o Comitê de Atividades Científicas da American Psychoanalytic de Ética na Revisão, voltou a abordar a questão, chegando a uma solução do tipo “ou/ou”.

Dizia a resolução deste Comitê:

” Se o psicanalista usa material confidencial em apresentações clínicas ou em situações científicas e educacionais com colegas, o material deve estar o suficientemente disfarçado para impedir a identificação do paciente ou o consentimento informado do paciente deve ser anteriormente obtido.

Se este for o caso, o psicanalista deveria discutir com o paciente os propósitos de tais apresentações, os possíveis riscos e benefícios para seu tratamento do paciente e seu direito de negar a permissão para tanto”.

Claro que, na verdade, mesmo havendo o consentimento por parte do paciente, deve haver o disfarce de seu material.

DISFARCE SEM CONSENTIMENTO NÃO É ACEITÁVEL

Há os que dizem que o disfarce sem consentimento é inaceitável. As editoras e jornais psicanalíticos encaram o problema sob diferentes enfoques. Alguns editores de livros de psicanálise estão agora pedindo ao autor que obtenha consentimento escrito dos pacientes descritos no livro. O Journal of the American Psychoanalytic Association e o International Journal of Psychoanalysis pedem a seus resenhadores para identificar potenciais problemas de quebra de sigilo profissional (confidencialidade) nos trabalhos que estão sendo avaliados, mas ambos deixam a critério do autor a forma de resolver o problema, quando ele existe.

Numa pesquisa recente, mostrou-se como o grupo estudado se dividia entre os que pedem e os que não pedem autorização ao paciente para a publicação de casos. Outro trabalho mostra como o grupo estudado – 20 terapeutas da área de Washington e Baltimore – na maioria das vezes usava tênues disfarces, apesar de que 70% deles ter conhecimento de queixas de pacientes contra a quebra de sigilo por parte de analistas que publicaram casos.

DISFARCE ESPESSO

O disfarce é provavelmente o método mais comum de lidar com a confidencialidade nos relatos de casos clínicos.

Goldberg levantou questões sobre o disfarce por causa do risco de ter a precisão sacrificada e que as alterações no caso podem refletir as distorções inconscientes do analista a respeito do tratamento.

O Comitê de Atividades Científicas da American Psychoanalytic Association também sublinhou o prejuizo do status científico da psicanálise quando disfarce extensivo é usado. Mostram um exemplo de um análise infantil que descrevia um paciente como portador de uma úlcera gástrica. No final da discussão, o apresentador inadvertidamente observou que o paciente na verdade tinha diabete juvenil. Tais distorções poderiam – por exemplo – levar esse caso errôneamente à literatura de resenhas sobre a psicologia das úlceras quando na verdade trazia a psicodinâmica de um caso de diabete juvenil.

Acredita Gabbard que quando o disfarce é usado judiciosamente, pode-se preservar a integridade científica e ainda assim proteger a confidencialidade do paciente.

Pensa que a prevenção de danos para o paciente e a preservação da confidencialidade são valores maiores do que a precisão de detalhes relativamente triviais sobre o paciente que não afetam de forma substancial os pontos analiticos abordados no trabalho.

Para manter a integridade científica, os disfarces devem seguir uma lógica. Por exemplo: pode um homem ser descrito como mulher? Se o trabalho tem as questões de gênero como tema maior, a mudança de sexo é impensável. Pode um paciente coreano ser descrito como iraniano? Se o autor de um trabalho transcultural quer provar algo sobre a cultura coreana, o autor não pode alterar a identidade étnica do paciente.

Assim, o aspecto da maior ou menor necessidade de disfarçar o material será determinado pelo tema do trabalho e a situação clinica particular descrita.

De quem o autor deseja esconder a identidade do paciente?

A família do paciente? Os colegas do analista? Os amigos do paciente? Provavelmente de todos eles. Uma regra não escrita mas em vigor por muitos anos na literatura psicanalítica reza que o caso deve estar disfarçado de tal modo que apenas o analista e o paciente possam reconhecer de quem se trata.

Lembra Gabbard que ter como critério pedir ou não consentimento do paciente levando em conta seu interesse na leitura de material analítico deve incluir os pais do paciente, caso seja ele uma criança.

Diz ser importante saber que hoje em dia o acesso à literatura analítica é especialmente fácil com a revolução cibernética. Os pacientes podem tomar conhecimento de trabalhos de seus analistas a partir de seus computadores. Os autores devem levar em conta que os pacientes que não mostram interesse algum em publicações analíticas podem desenvolver tal interesse após o término da análise, anos depois de ter perdido contato com seus analistas.

Um dos problemas do disfarce para proteger o paciente é que ele às vezes torna necessário que deliberadamente o analista dê informações falsas, pois afirmações genéricas não o protegem suficientemente. Por exemplo se um paciente é “contador”, e você diz que ele é um “profissional”, isso é vago mas não engana o leitor. Por outro lado, se você afirma que o “contador” é um “engenheiro”, o leitor supõe que o paciente não é um “contador”. O analista tem dificuldade de fazer isso – mesmo sabendo que é para proteger seu paciente – por causa de seu treinamento ético de valorizar a verdade antes de tudo.

Há muito debate sobre o escrever sobre pacientes que estão ainda em análise. Isso poderia fazer o analista inconscientemente alterar o curso da análise para uma determinada direção que o interessa naquele momento.Crastnopol diz que o escrever destrói a fantasia de que a dupla analista-paciente está protegida numa redoma, isolada de toda e qualquer influência externa. A escrita analítica é inevitavelmente parte da experiência intersubjetiva da dupla e os analistas que acham que sua escrita não interfere nela estão de alguma forma negando os fatos.

Há sempre um conflito de interesse entre os objetivos do analista (crescimento profissional, prestígio, etc) e do paciente (antes de tudo manter sua privacidade)

Uma outra vantagem de escrever sobre pacientes antigos, além do não interferir no processo analítico em andamento, é que um elemento de disfarce está presente. Eles podem estar englobados num número muito maior de ex-pacientes, dificultando sua identificação. A passagem do tempo facilita o analista a dar detalhes que o protejam melhor. No clima atual não podemos ignorar o fato de que há um quadro de críticos que é extremamente hostil à psicanálise e que está ansioso para desvendar a identidade dos analisando e perseguir detalhes dos casos publicados que podem desacreditar o tratamento psicanalítico.

Person descreveu como duas de suas pacientes declararam ter-se sentido “estupradas” quando descobriram-se em trabalhos escritos por seus analistas anteriores

Stoller mostra como uma paciente que por acaso encontrou um parágrafo que ele tinha publicado sobre ela, anos depois da análise. A paciente disse;

“Meus sentimentos iam do horror ao ódio, do prazer narcísico à indignação. Até mesmo a tristeza apareceu. Me senti usada. Me senti particularmente honrada… Você disse que isso não me minha machucado, que você estava justificado porque eu não seria identificada… Será que foi assim? Foi esse o limite de seus pensamentos e sentimentos? Como você poderia saber isso sem me informar ou me avisar, ou qualquer coisa, que você estava tranpassasdo um limite sagrado, a confiança infinita que coloquei em você?

O exemplo literário mais conhecido deste tipo de descoberta corre na novela “Minha vida como homem” de Philip Roth, de 1974. O protagonista da novela, Peter Tarnopol, está em tratamento com Otto Spielvogel. Encontra um periódico no consultório com um artigo do analista intitulado “Criatividade: o narcisismo do artista”. Ele o lê e descobre que duas páginas são sobre ele. Fica indignado, mas o que mais o atinge é o sentimento de que o analista plagiou seu próprio material, por que um trauma infantil descrito no artigo tinha sido escrito por Tarnopol num artigo publicado no “The New Yorker”.

O crítico literário Jeffrey Berman engenhosamente ligou esse relato ficcional com o ensaio realmente publicado no American Imago (Kleinschmidt, 1967). O título do trabalho era “O ato raivoso: o papel da agressão na criatividade”. Berman notou que Roth se volta contra seu analista na vida real, criando paralelos muito próximos entre o trabalho ficcional de Spielvogel, o analista na novela e o que Kleinschmidt realmente escreveu. Berman nota que certos detalhes do pai e da mãe do paciente descrito por Kleinschmidt são identicos aos descritos por Spielvogel na novela. Nota ainda que até a interpretação que Roth dá para o ódio que o personagem sente em relação às mulheres no trabalho ficcional é a mesma dada por Kleinschmidt. Berman aponta que o personagem Tarnopol sentia-se plagiado pelo uso que seu analista fazia de seu material e Roth pode ter roubado de volta as palavras do analista usando-as em sua própria novela.

Qual a moral da história? Há moral em vários níveis neste caso. Certamente no mais superficial, pode-se concluir que quando um analista escreve sobre um paciente escritor, o paciente rirá por último. Num segundo nível, vemos algo a respeito dos chamados pacientes VIP. Quando o analisando é célebre, o analista deveria esquecer as gratificações derivadas do exibicionismo frente aos colegas que o levaria a escrever sobre o paciente. Um terceiro e mais sombrio nível neste provocante situação diz respeito às motivações do analista. Uma agressão não bem resolvida dirigida contra o paciente pode ser um significante fator inconsciente nas motivações do analista que escreve. Muitos de nós escrevemos num esforço de controlar complexas e difíceis situações contra-transferenciais no nosso trabalho clínico. Consequências adversas da publicação do material clínico pode em alguns casos refletir nossa própria hostilidade não analisada em relação ao paciente que escolhemos usar como exemplo clínico.

Refletindo sobre a publicação de casos disfarçados e sem o consentimento do paciente, o analista deve reconhecer que há um possibilidade irredutível, especialmente nesta era da internet, de que o paciente ou sua família algum dia descubra ter sido objeto de um trabalho. Mas esse risco não deve impedir o analista de usar esse recurso em alguns casos. Como Tuckett diz, a potencial malefício ligado à não solicitação da permissão ao paciente, deve ser levada em conta dentro de uma moldura ética mais ampla e não deve ser regida por regras estreitas e fundamentalistas. Entretanto, a possibilidade deste malefício fez com que alguns analistas, como Stoller, afirmarem que deve-se sempre obter permissão do paciente antes da publicação do caso. Apesar de que, como veremos, isso não evita que o paciente saia igualmente ferido.

CONSENTIMENTO DO PACIENTE

O pedido de consentimento ao paciente para a publicação de seu caso tem aspectos positivos por evitar problemas legais. Mas a controvérsia central a respeito deste enfoque é se o consentimento informado é sequer possível nestas situações por causa da influência da transferência na decisão do paciente.

Lipton descreveu como um paciente vivenciou o pedido para a permissão de publicar não como uma evidência da preocupação ética do analista, cmas como uma exigência de um pai psicótico que tinha de ser aceita sem questionamento. De fato, muitos pacientes podem sentir que para ficar nas boas graças de seu analista, eles devem concordar com o pedido. Eles podem sentir, com razão, que o analista ficará aborrecido ou zangado com uma recusa. Uma confirmação desta hipótese é a desconcertante constatação de que poucos pacientes parecem ter escolhido não ter seu material publicado.

Como se pode entender a ambivalência do paciente nestas situações? Sabemos que a resposta consciente do paciente pode esconder outros significados. Além do mais, mesmo que se considere efetivo o consentimento dado num determinado momento da análise, o mesmo poderá não se manter em momentos futuros, na própria análise ou depois de seu término. O paciente pode concordar no momento do pedido e depois, ao ver o caso publicado, mudar de idéia.

Muitos analistas rapidamente aceitam a concordância do paciente (sem refletir todos esses aspectos) por se sentirem culpados, pois sabem que os maiores beneficiários da publicação são eles mesmos e não os pacientes. Temem estar explorando os mesmos em seu próprio benefício.

Claro que dizer ao paciente que vai publicar seu caso pode afetar muito o andamento de uma análise. Uma forma de tentar contornar este problema é pedir permissão depois do término da análise. Mas não é uma solução simples, pois há uma grande literatura que mostra como a transferência persiste mesmo depois de anos que a análise terminiou. Ou seja, mesmo depois de anos, o problema persiste.

Um item mais profundo eticamente falando diz respeito ao questionamento de que o simples fato de pedir permissão já pode ser danoso ao paciente. Além do mais, deve-se pensar no efeito que será produzido no paciente a leitura de seu caso. Gabbard diz conhecer pessoalmente dois casos onde os pacientes se sentiram arrasados ao lerem seus casos, mesmo após terem dado o consentimento

Gabbard relata um desdobramento possível. Um colega que pedira permissão a seu paciente para escrever sobre seu caso foi surpreendido, tempos depois de publicá-lo, pelo desejo da paciente de enviar para a revista onde seu caso fora publicado sua própria versão daquilo que o analista descrevera. A paciente achava que isso poderia enriquecer sobremaneira o trabalho. Pode-se imaginar o nível de complicação desencadeado, tanto entre o analista e a paciente como com os editores. Para concluir, a verdade é que não se pode prever se é melhor pedir o consentimento nem como o paciente reagirá.

Uma coisa que não se pode negar é que a publicação de um caso é sempre uma necessidade do analista, com a qual o paciente nada tem a ver.

Um último ponto a ser considerado é que o pedido de consentimento ao paciente pode restringir a auto-exposição do analista. Na atual zeitgeist analitico, não fica bem o analista aparecer como uma esfinge nos relatos clínicos. De fato, alguns resenhadores de revistas acham importante o relato da subjetividade do analista, desejam informações sobre sua contratrasferência, considerando-a parte da situação analítica que está sendo relatada. Se o analista pede licença ao paciente, isso o inibe de descrever mais abertamente seus sentimentos e reações contratransferênciais em relação ao mesmo (p. ex. – sentimentos eróticos ou agressivos), coisa que no modo de disfarce sem pedido de consentimento fica menos problemático.Também é necessário sublinhar que o disfarce e o pedido de consentimento não são, evidentemente, excludentes. Mesmo com a permissão, deve-se cuidar da confidencialidade do paciente.

O ENFOQUE PROCESSUAL

A esse ponto da consideração das alternativas, podemos ver que qualquer solução para o problema das exigências conflitivas entre a privacidade do paciente e os avanços científicos são potencialmente danosos para o paciente. O Comitê sobre Atividades Científicas da American Psychoanalytic Association propôs um modelo que tenta atender tanto às necessidades científicas quanto à privacidade do paciente. Os membros desse comitê expressaram alguma tristeza por quão pouco os relatos clínicos mostrarem o real processo que leva o analista a fazer suas formulações sobre o que estava acontecendo com o paciente. Eles acham que mais relatos textuais devem ser produzidos para possibilitar os leitores analíticos julgarem por si mesmos o processo dedutivo seguido pelo analista que relata o caso.

A partir destas preocupações, desenvolveram um formato experimental visando especialmente o exame das interações analista-analisando. O formato é desenhado para permitir os leitores julgarem os dados por seus próprios méritos. Em seu modelo sugerido, o autor primeiro relata a forma como o processo foi registrado (i.e. anotações, gravações em fita, etc). O autor também revela quanto tempo decorreu entre a sessão que está sendo relatada e as notas dela decorrentes. Mais ainda, o setting é descrito, de forma a ficar claro se o processo é de uma psicoterapia ou análise, quantas sessões por semana são realizadas e em que fase está o tratamento. Os comentários do paciente são escritos em caixa baixa (letras minúsculas) enquanto os do analista são escritos em caixa alta (maiúsculas). Informações não verbais vão entre parênteses. Os pensamentos privados do analista vão em maiúsculas e entre parênteses. Esse formato exige muito pouca informação identificatória do paciente. Ao escolher cuidadosamente o material, o analista pode facilmente encontrar sessões envolvendo uma troca que diga muito pouco sobre a vida externa do paciente. Os nomes próprios podem ser trocados ou apagados. Mesmo assim, o processo entre analista e analisando pode ser descrito muito acuradamente para fins científicos, sendo necessário pouco disfarce.

Esse modelo também atende uma preocupação maior nos escritos recentes psicanalíticos como articulou Tuckett em seu trabalho como editor do IJP. Em seu esforço para criar um padrão razoável para a avaliação (peer review) de trabalhos analíticos, ele tem estado preocupado com o método de argumentação usado nas publicações analíticas. Tem chamado a atenção para a tendência vista em muitos autores analíticos de usar uma forma muito insidiosa de persuasão de seus leitores, tal como argumentos baseados na autoridade (na maioria das vezes, Freud) ou sofismas. A vantagem do modelo processual prescrito pelo Comitê de Atividades Científicas é que o texto proporciona dados minuciosos do processo analítico que podem ser facilmente avaliados por um leitor de fora, permitindo ver se a tese do autor é convincentemente demonstrada pelo material clínico.

Esse método não é aplicável a todos os tipos de trabalho analitico. Enquanto esse enfoque ajuda a demonstrar um ponto da técnica, não será de muito uso se alguém está tentando ilustrar, por exemplo, a compreensão analítica de um sintoma, de um sindrome ou de um comportamento particular. Nestes casos, informação detalhada sobre a infância, o comportamento externo e as relações do paciente podem ser necessárias para apoiar a tese do autor.

O USO DE COMPÓSITOS

Se há um sério impedimento ligado à confidencialidade – por exemplo, os pacientes podem ser profissionais ligados à saúde mental – o autor pode considerar o uso de compostos. Em outras palavras, caracteristicas de vários diferentes pacientes podem ser combinadas num único exemplo para ilustrar determinados temas. Alguns autores pensam que esse método pode funcionar muito bem para fins educativos. Entretanto, eles enfatizam que o leitor deve ser alertado deste estratagema.

Gabbard, em seus próprios trabalhos com Eva Lester, deparou-se com um complexo problema de confidencialidade quando precisou ilustrar certos padrões entre 70 analistas que haviam cometido transgressões sexuais com pacientes. Como muitos dos envolvidos eram pessoas muito conhecidas pelos leitores, criou alguns compósitos que ilustravam as vulnerabilidades, desejos e conflitos de alguns subgrupos destes analistas.

Quando os compósitos não se mostraram exequíveis, obteve consentimento por escrito dos analistas envolvidos, que queriam fortemente contribuir para o campo tendo suas situações descritas.

COLEGA COMO AUTOR

Um enfoque mais inovativo sobre o qual tem-se escrito pouco é o analista pedir a um colega para escrever o caso clínico. Algumas experiências contratransferenciais podem ser extremamente difíceis para o analista discutir por escrito num trabalho. Ao ter o trabalho assinado por um colega, o analista contribui para a profissão preservando o anonimato.

Material particularmente delicado do paciente ou situações contratransferenciais também complicadas podem ser abordadas desta forma. Uma variante específica deste enfoque ocorre quando supervisores escrevem material clinico de seus supervisados. Aqui há um duplo problema, ambos devem decidir se pedirão ou não o consentimento do paciente e – por outro lado – se reproduz, entre supervisor e supervisando, o mesmo que vimos entre paciente e analista. Estaria o supervisando em posiçào de efetivamente negar satisfazer o pedido do supervisor?

DIRETRIZES E CONCLUSÕES

Esse resumo dos dilemas do analista entre o escrever e apresentar casos clínicos sugere que os direitos do paciente concernentes à privacidade, as exigências profissionais para publicar avanços e novos conhecimentos no campo, e a necessidade de reconhecimento por parte do analista estão inevitavelmente em conflito.Nenhuma das soluções apontadas neste trabalho é perfeita.Qualquer uma delas implica num montante de problemas potenciais ligados à privacidade e aos dados científicos.

Gabbard termina com algumas diretrizes fruto de conversas e discussões com colegas. O enfoque a ser escolhido pelo autor dependerá das especificações do caso. Por exemplo, quando o analista está apresentando um caso clínico numa cidade ou país distante, forte disfarce é suficiente, sem necessidade da autorização do paciente (a não ser que o paciente seja bem conhecido na área). Por outro lado, a apresentação contínua de um caso em seminário por um candidato pode expor demais um paciente daquele lugar e o analista talvez devesse pedir permissão do paciente. Se o ponto ilustrado diz respeito à interação analista-paciente, o método processual é o mais indicado. Claro que essas são generalidades que devem ser estudadas mais detalhadamente.

Quanto à proteção do sigilo, as vinhetas são melhores do que extensas histórias. O analista deve ser judicioso, decidindo quanto é realmente necessário dizer para a compreensão do caso. Se ele escolhe o espesso disfarce, deve estar atento às possíveis consequências na alteração do campo, como no caso visto do paciente que foi inicialmente descrito como portador de úlcera gástrica e depois como diabético. É importante lembrar que dados específicos são melhores que vagas informações para a proteção do paciente. Finalmente, autores deveriam omitir desncessários dados que permitam identificação, focalizando em desejos internos, fantasias e conflitos.

Escrever sobre pacientes que já terminaram a análise tem muitas vantagens. A necessidade de disfarçar o material é mais fácilmente realizável e o disfarce pode ser menor. Se é pedido o consentimento, isso se dá fora da análise, apesar de poder aparecer uma série de situações já mencionadas. Se o consentimento é obtido, o impacto da discussão deve ser totalmente analisado e deve-se ver com ceticismo uma fácil concordância por parte do paciente.

Para analisandos que trabalham na área, como candidatos, o pedido de consentimento é necessário. Goldberg diz que a situação especial de treinamento analítico não deveria estar protegida do escrutinio científico apenas por causa da confidencialidade. Isso cria uma série de dificuldades, mas é necessário o pedido de consentimento. O autor conhece situações onde candidatos se viram retratados sem terem sido consultados e o efeito não poderia ser pior.

Toda decisão sobre o método a ser escolhido pelo analista deve ser analisado singularmente. Não é possivel haver generalizações, não é possível haver posturas éticas absolutas, como as propostas pela ICMJE.

Havendo dúvida demasiada, consultar um colega pode ser de grande ajuda. De fato, é altamente proveitoso o trocar trabalhos rotineiramente entre colegas, para se ter uma avaliação dos mesmos.

As preocupações éticas a respeito da privacidade do paciente devem ter primazia sobre a necessidade do analista em publicar atendendo a seus proprios interesses e avanços profissionais.

Tuckett enfatiza que os psicanalistas devem confrontar frequentemente conflitos não resolvidos que podem ser negociados apenas de forma altamente circunstancial e individual.

RESUMO DAS DISCUSSÕES NO GRUPO DA INTERNET

Das contribuições dos leitores na lista de discussão na internet, anotamos algumas posições que chamaram a atenção.

Um leitor questiona a necessidade de publicação, já que levanta tantos problemas. Não seria suficiente a discussão sistemática com colegas em ambiente interno de uma instituição analítica. A necessidade de publicação não seria uma submissão aos critérios cientificistas?

Tal atitude é combatida por muitos, que enfatizam a importância no aprendizado da leitura de casos clínicos, e por outros, que acham a publicação necessária para que o saber psicanalítico possa atingir outros áreas de conhecimento.

Uma leitora aponta para a questão do consentimento do paciente, mostrando uma outra variável além das levantadas no texto (referentes à fantasia do paciente de agradar ou não ao analista). Esta outra variável comportaria aspectos exibicionistas e narcisisticos da paciente, que a levariam a concordar com a publicação de seus dados, indiferente ao que essa publicação poderia provocar em terceiros. Tal teria ocorrido no caso da poeta e suicida Anne Sexton. O analista deve estar atento a essa questão. Por outro lado, a leitora também aponta para o dilema ético do que fazer com o material de uma paciente deste tipo, após sua morte. A terapeuta (segunda) de Anne Sexton, terminou por publicar um trabalho sobre ela despois de sua morte. Como fica o sigilo nestas condições? Esta analista parece desconhecer a polêmica que girou em torno dos Freud Archives, que por questões de confidencialidade e sigilo, terá material retido até o ano de 2100. Isso responderia cabalmente a sua questão.

Um outro leitor sublinha as implicações contratransferencias a serem reconhecidas e analisadas nas distorções impostas pela proteção à privacidade do paciente. Cita o caso de um paciente que foi apresentado como sendo do outro sexo, e que esta alteração decorreria da contratransferencia do analista e não de necessidade de proteger sua identidade.

Outro enfatiza a importancia do narcisismo do analista como fator preponderante em sua atividade como escritor.

A questão do “managed care” é lembrada por outro no que diz respeito à confidencialidade, pois dados são requisitados pela companhia de seguro-saúde para o reembolso dos custos.

Na correspondência na internet há dois aportes escritos por pacientes, mostrando grande ressentimento contra a publicação de casos, que consideram como grave traição à confiança do paciente. Um deles levanta que – para ser completamente justo – o analista também deveria se expor mais, ao falar de sua contra-transferência, analisando-a publicamente.

Um missivista propõe uma solução inusitada que – a seu ver – contornaria o problema da confidencialidade e a necessidade de propugnar pelo avanço da psicanálise. Propõe que antigos ex-pacientes, especialmente os ligados à área profissional, sejam convocados pelas instituições através da grande imprensa para colaborarem com as pesquisas. Estes antigos pacientes discutiriam com seus analistas aspectos da publicação.

Uma colega acrescenta que dependendo da linha teórica adotado pelo analista, o tratar da publicação poderia ter conotações diferentes. Refere-se, por exemplo, aos analistas que trabalham numa linha que valorize a intersubjetividade, que acha importante mostrar ao paciente as reações que este nele provoca. Os pacientes desse tipo de analista não se surpreenderiam tanto com o pedido de publicação do que aqueles de analistas mais convencionais, que nada deixam transparecer de suas contra-transferencias. Lembra ainda a relatividade da importancia dos dados históricos, que – a seu ver – sofrem grande variação no correr da análise.

Um outro colega aborda a complexidade das reações dos pacientes ao lerem casos clínicos, relatando uma situação onde um paciente seu identificou-se com um outro paciente descrito por ele num trabalho, julgando ser ele o objeto daquele trabalho.

Dado a complexidade do problema, um analista sugere que os psicanalistas troquem experiências com outros profissionais que vivem problemas semelhantes em outros campos. Refere-se a religiosos e advogados.

Tuckett (editor do IJP), meio em tom de brincadeira, se pergunta se no futuro o psicanlista deverá invocar a European Human Rights Act, que defende o direito de todos ao bom exercício de seu trabalho, para exercer o seu em liberdade.

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