Resenha do livro “Praia de Manhattan”, de Jennifer Egan

“Praia de Manhattan” de Jennifer Egan
Sérgio Telles

Para quem leu e gostou da originalidade criativa de “A visita cruel do tempo”, com o qual Jennifer Egan ganhou o prestigioso Pulitzer Prizer de 2011, seu novo livro “Praia de Manhattan” é um tanto decepcionante.
Trata-se de um longo e convencional romance histórico sobre as décadas de 30 e 40 em Nova York, cobrindo os anos da Depressão e o período da Segunda Guerra, época em que políticos, policiais e gangsters mafiosos tinham acordos bem azeitados, compartilhando o poder através da violência e da corrupção. A ação está mais centrada na época da guerra, quando as mulheres tiveram de ocupar os postos de trabalho dos homens que estavam no front, batalhando fora do país.
A personagem principal, Anna Kerrigan, é uma moça de 19 anos descendente de irlandeses e residente no Brooklyn, que tem de trabalhar no Arsenal da Marinha para sustentar sua mãe e a irmã inválida. Lida inicialmente com a produção de peças mecânicas utilizadas na guerra mas consegue ser aceita como mergulhadora de escafandro, trabalho até então estritamente masculino, reparando navios avariados pelos temidos torpedos alemães. Seu pai Eddie, um operador da bolsa, desaparecera inesperadamente uma década antes. Quando criança, Anna o acompanhava em seu nebuloso trabalho. Agora adulta, ela se empenha em conhecer as circunstâncias do sumiço do pai, descobrindo que ele era o homem de confiança do mafioso Dexter Styles, de quem então se aproxima. Numa reviravolta rocambolesca, recebe uma carta do pai, que se refugiara esse tempo todo na marinha mercante, algo sabido desde sempre por sua tia, através de quem lhes mandava dinheiro.
É patente o exaustivo trabalho de pesquisa feito pela autora. No fim do livro ela agradece extensamente às pessoas que entrevistou e que ajudaram na bibliografia, possibilitando o minucioso inventário da vida cotidiana, do linguajar e dos objetos de consumo de uma Nova York diferente daquela mostrada no filmes de Woody Allen, pois restrita às regiões portuárias e litorâneas.
O leitor se sente sufocado pelo excesso de detalhes e descrições que talvez sejam saborosas para os que vivem naquela cidade e que reencontram no livro uma reconstituição bastante vívida de seu passado recente. Essa pletora de descrições não chega a inibir a ação e a caracterização dos personagens, mas o leitor fica com a sensação de ter adquirido uma quantidade desnecessária e indesejada de informação sobre assuntos sobre os quais não tem interesse, como sobre as atividades de mergulhadores de escafandro e suas pesadas roupas de 90 quilos ou a nomenclatura de inúmeros objetos de uso naquela ocasião.
Apesar de tão bem pesquisado, ainda assim cenas centrais da trama parecem inverossímeis, como as atividades oficiais e clandestinas como escafandrista da personagem principal. Entende-se que tais cenas servem para mostrar o esforço de guerra e a ocupação de funções masculinas pelas mulheres, e está calcada em depoimentos verdadeiros colhidos com a primeira mulher mergulhadora militar dos Estados Unidos, a primeira-sargento reformada Andrea Motley Crabtree. Ainda assim, soam falsas e pouco convincentes.
O mesmo pode ser dito das cenas em que o pai, condenado por Dexter Styles, é acorrentado a blocos de cimento e jogado ao mar. Mais habilidoso que Houdini, ele consegue se desvencilhar e fugir. Uma década depois, Anna convence Dexter Styles a voltar ao lugar exato da costa de Nova York onde o pai teria sido eliminado e, fazendo uso de suas habilidades de escafandrista, desce ao fundo e encontra seu relógio de bolso! Mais inverossímil impossível. O leitor se pergunta como cenas tão bisonhas não foram suprimidas por escritora tão talentosa. Da mesma forma causam surpresa algumas imagens e metáforas canhestras, como as que comparam os genitais masculinos a “um par de botinas pendurado de um lampião por cadarços”. (p.247).
Isso não quer dizer que não haja trechos magníficos, como os que relatam o naufrágio do navio torpedeado no qual estava Eddie, que envolvem plenamente o leitor, colocando-o junto com os marinheiros na luta pela sobrevivência em barcos improvisados, perdidos num oceano ora turbulento ora imóvel na pasmaceira das calmarias.
Para nós brasileiros, o livro provoca um efeito colateral, digamos. Se a corrupção e a promiscuidade entre o crime organizado, a polícia e a política que vigoravam nos anos 30 e 40 nos Estados Unidos foi efetivamente combatida e reduzida a níveis inevitáveis, ficamos esperançosos que o mesmo possa acontecer com o Brasil, ainda que com setenta anos de atraso.

Sérgio Telles é psicanalista e escritor, autor de “Posto de Observação” (Editora Blucher)

Publicado no suplemento Eu & Fim de Semana do jornal Valor Econômico, 06/07/2019

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