Religião e Bioética

Considerações em torno de A “BATEDORA” DE LACAN – Lembranças de uma estenotipista irritada, reflexões de uma psicanalista aflita – de Maria Pierrakos, Editora Perspectiva, 2005, tradução de Eva e Fábio Landa, 69 p.

Maria Pierrakos foi durante doze anos estenotipista oficial dos seminários de Lacan. Ocupava, pois, um lugar privilegiado como observadora da grande cena que então se dava. A presença do mestre, seus discípulos, a platéia. Posteriormente Maria Pierrakos fez sua formação psicanalítica e fundou, com outros analistas, o Collège International de Psychanalyse et Anthropologie.

Seu pequeno livro é um libelo contra o fanatismo religioso que se desenvolveu em torno da pessoa de Lacan, com efeitos extremamente prejudiciais na formação analítica, na clinica, na política institucional e suas lutas pelo poder. Anos depois de sua morte, essa situação persiste na posição militante agressiva da Escola da Causa Freudiana, liderada pelo genro de Lacan, Jacques Allan Miller.

Embora centrando suas baterias no fundamentalismo lacaniano, Pierrakos nos lembra como a prática analítica exige um comprometimento ético rigoroso, única coisa capaz de contrabalançar os perigos e facilitações inerentes à posição do psicanalista. É sempre necessário lembrar o poder que o analista tem advindo da transferência dos analisandos, que na situação analítica revivem o desamparo com suas angústias primárias, seus anseios de proteção, seu amor idealizado. O narcisismo e a pulsão de dominação, a megalomania e o sadismo, a onipotência do analista estão todos permanentemente mobilizados pela situação transferencial, e ele não pode se entregar ao gozo que lhe é aí oferecido. Eticamente deve lembrar do sofrimento que ali trouxe o analisando e mobilizar sua capacidade reparadora para ajudá-lo a libertar-se da anacrônica fantasmagoria infantil da qual é prisioneiro.

Ao falar do fanatismo religioso despertado por Lacan e mantido até hoje por seus discípulos, Pierrakos nos faz lembrar da maneira como Freud interpretou o sentimento religioso e sua extraordinária força na humanidade.

O anseio pelo infinito, o desejo de Deus é entendido por Freud como decorrente da vivência de desamparo experimentado pela criança ao ter que romper sua relação fusional com a toda-poderosa mãe. Seu desvalimento, sua fragilidade frente às intempéries do mundo fazem-na desejar restabelecer a fusão com um ser maior, que a abrigue e a proteja, que a garanta contra os perigos que tem de arrostar. Num desdobramento, a criança vai almejar a proteção de um pai forte, a quem prestará obediência e respeito.

Essa estrutura psíquica faz com que qualquer atividade grupal humana possa adquirir uma conotação religiosa. A necessidade infantil de proteção e garantia contra os perigos inevitáveis da vida fazem com que se escolham textos que passam a ser vistos como “sagrados”, elegem-se pessoas que são idealizadas (“santos” e “deuses”) e às quais se prestam homenagens e obrigações, recebendo-se em troca proteção e a garantia de fazer parte de um todo maior e mais forte, que afaste a solidão e o isolamento.

Por alimentar um desejo tão arcaico infantil, a religião pode ter efeitos extremamente perniciosos, impossibilitando os seres humanos de usarem seus recursos intelectuais criativos e inventivos na produção de uma vida autônoma e responsável.

Muitos consideram a religião como uma das grandes aquisições da humanidade e acham impensável qualquer proposta de superá-la ou torná-la desnecessária. Acreditam que ela é um dos fundamentos do laço social e que sua abolição implicaria no estabelecimento da barbárie, da selvageria mais desenfreada.

Penso que tal opinião advém de uma confusão entre religião e ética, confusão compreensível pois, milenarmente, a religião tem sido a depositária dos valores éticos e morais. A própria origem da ética tem sido atribuída às divindades, que teriam estabelecido inquestionáveis definições do certo e do errado, do bem e do mal. Assim atestam as antigas imagens que mostram Hamurabi recebendo da mão de Deus o código que veio a receber seu nome, um dos mais antigos da humanidade. Da mesma forma, temos notícia de que Moisés recebeu de Deus as tábuas com os dez mandamentos.

Essa confusão entre religião e ética faz com que a grande sabedoria coletada nos livros sagrados de todas as religiões não seja reconhecida como um acervo humano, o testemunho da aventura do homem no tempo e o registro das formas como resolveu seus conflitos internos e com o outro.

Com a progressiva laicização da cultura, tem sido possível discriminar melhor esses dois campos, a religião e a ética, desfazendo uma visão totalizadora desta última. Filósofos, como Nietzche, têm desenvolvido o tema. Estudos transculturais mostram a extrema variedade do que é considerado certo e errado em culturas diferentes. Estudos com grupos de primatas evidenciam esboços do que, posteriormente, chamaríamos de ética e moral – os comportamentos baseados na reciprocidade e no parentesco. “Você tira meu piolho, que eu tiro o seu” – diria um primata para um outro. Se o que foi cuidado não age de forma recíproca, fica discriminado pelo grupo como um aproveitador. Ele não agiu “certo”, agiu “errado”.

Quem sabe, no futuro, estando a humanidade menos infantil e dependente, vamos reconhecer que devemos fazer o bem e evitar o mal não porque “papai do céu” vai nos castigar com o inferno se assim não o fizermos, e sim porque devemos respeitar nosso semelhante, o outro, e, reciprocamente, ser por ele respeitado.

Psicanaliticamente podemos dizer que os valores éticos se baseiam no abandono do narcisismo e na aceitação da radical alteridade do outro, no reconhecimento e acolhimento do diferente.

O contraste entre ética e religião, ou seja, a visão laica do homem oposta a uma visão religiosa, fica especialmente transparente em problemas como controle de natalidade, aborto e eutanásia. Abstraindo uma infinidade de problemas de ordem prática referentes à efetiva aplicação desses conceitos na realidade, é importante sublinhar a diferença conceitual das duas posições. A postulação laica diz que é um direito o homem poder escolher dar continuidade ou não à vida em determinadas situações desesperadoras, bem como planejar sua prole, através do controle da natalidade ou de um eventual aborto. A visão religiosa, por considerar a “santidade” da vida decorrente da existência de uma alma, considera que cabe exclusivamente a Deus dar e tirar a vida.

Frente a posição religiosa que defende a “santidade” da vida, uma visão mais laica propõe o que recebeu o nome de “bioética”, exatamente o estudo das implicações éticas das decisões que envolvem o aparecimento e o final da vida, englobando todo o leque de novas situações criadas pela tecnociência atual – inseminação artificial, “barriga de aluguel”, congelamento de esperma e óvulos, paternidade e maternidade de parceiros homossexuais, etc.

A bioética permite transformar em questões humanitárias o que antes era tido como questões religiosas, algo da ordem do sagrado.

As conseqüências disso são enormes, como todos sabem. Nos países do terceiro mundo, o planejamento familiar traria enormes benefícios econômicos e sociais. Em todo o mundo, a eutanásia aliviaria o sofrimento inútil de muitos pacientes e seus familiares.

Quanto ao aborto, a mesma coisa. Aliás, há um dado muito curioso, estabelecido por Steven Levitt, o jovem e original economista norte-americano ganhador de merecidos prêmios. Em 1999, ao perceber que nos Estados Unidos as taxas de criminalidade tinham caído radicalmente na década anterior, procurou entender seus motivos. Ficou surpreso ao notar que a criminalidade começara a cair em todos os estados dezoito anos depois de ter sido efetivada pela Suprema Corte a legalização do aborto. Ficou ainda mais surpreso pelo fato de que em cinco estados a criminalidade começara a cair três anos mais cedo do que nos demais. Eram exatamente aqueles que haviam legalizado o aborto três anos antes da federalização da decisão. Sua hipótese – o aborto evitou o nascimento de filhos não desejados pelos pais, que se tivessem vivido teriam sofrido abandono e traumas que os levariam à criminalidade. Embora não seja possível afirmar conclusivamente sua correção, não podemos negar que essa hipótese faz muito sentido.

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