PSICANÁLISE – O INFERNO ASTRAL

MUITOS QUESTIONAMENTOS SOBRE A PSICANÁLISE – Desdobramentos de uma correspondência

Ao iniciar minha coluna aqui na “Psychiatry on Line”, esperava ter um debate aberto e frequente com os leitores. Imaginava receber, via “e-mail”, opiniões, críticas e sugestões que me ajudariam a ajustar o enfoque do que escreveria. Mas, fora uns dois ou três “e-mails” de leigos me solicitando informação sobre terapias, tal não ocorreu. Isso me fez suspeitar que nosso editor, Giovanni Torello, por obrigação de ofício, era meu quase único leitor, idéia que lhe expus e que ele bondosamente refutou.

Essa situação se alterou recentemente, quando recebi um “e-mail” de um colega, que me enviou um attachment de 19 páginas, intitulado “Psicanálise: a oficialização da mentira”, onde veiculava violentas críticas contra a psicanálise.

Tal documento consta de um conjunto de vários textos, sendo o primeiro supostamente de autoria do remetente. Em suas quatro páginas, lemos coisas do tipo: “(Os psicanalistas) Pregam a busca incansável pela verdade do inconsciente, mas são cegos para perceberem que oficializaram a mentira, criaram e nela passaram a acreditar veementemente e hoje reconhecer que sua estrada não dá a lugar algum é extremamente penoso, difícil, a mentira lhes dá o sustento, o status, o poder, são na verdade prisioneiros do próprio desejo de ser Deus….Ela (a psicanálise) não é hoje senão mais um dos meios que a cupidez humana encontrou para explorar a miséria e o sofrimento alheio…”.

Além deste, ali está o prefácio de um livro intitulado “Acuso” de autoria de Diógenes Magalhães, de onde tirei este fragmento: “São iguais os objetivos dos assaltantes e dos psicanalistas: arrancar dinheiro dos incautos. Os métodos porém são diferentes. A psicanálise é muito mais lenta e a violência que aplica é de cunho psicológico. O psicanalista agride, porém não com armas brancas ou de fogo e sim com palavras: chama suas vítimas de covarde, mentiroso, homossexual, gramático, etc; e não deixa vestígios. Se eu disser que fui agredido por um psicanalista ninguém acreditará: Todos querem ver equimoses – e eu não posso mostrá-las, porque estão na alma”.

O missivista inclui ainda algumas vinhetas clínicas que querem provar a inadequação da psicanálise no manejo do autismo, da DOC e depressão; a reprodução de um artigo do “Der Spiegel” publicado no “Estadão”, em 11/7/98; uma matéria com entrevista de Frank Sulloway, intitulada “Freud Fraude?”, publicado na “Folha” em 5/4/91 e, finalmente, um texto assinado por “Daniela” onde é afirmado que “a psicanálise é a avó de todas as terapias pseudocientíficas, secundada apenas pela cientologia…”. A título de curiosidade, anexei o “attachment” a este artigo para que os interessados possam examiná-lo.

Várias coisas me suscitaram este “e-mail”. Em primeiro lugar chamou-me a atenção seu tom passional e agressivo que me fez desejar responder no mesmo nível. Esse impulso inicial transformou-se temporariamente numa formação reativa de superioridade e desprezo, que me levaria a simplesmente ignorar a missiva, considerando-a não merecedora de uma resposta.

Mas logo mudei de ideia. Relendo os textos, percebi que o remetente tinha alguma informação sobre o mundo psicanalítico e não pude deixar de ver que a violência agressiva com que expunha seus argumentos expressava um forte envolvimento pessoal, talvez decorrente de uma grande decepção com a psicanálise. Depois, se alguém se dá ao trabalho de coligir tanto material e me mandar, por mais agressivo que isso possa parecer, não deixa de ser um pedido de interlocução, de diálogo – o que aliás, era exatamente o que eu desejava, que os leitores se manifestassem, dissessem de suas discordâncias, dúvidas e interesses.

Mais, o que estava ali exposto não era nenhuma novidade. Tirando o tom agressivo e difamatório, possivelmente parte dos médicos e psiquiatras pensa mais ou menos o mesmo, tem o mesmo descrédito, a mesma desconfiança em relação à psicanálise. Apenas usa mais tato ao enunciá-lo. Mais ainda, o texto levanta questões muito sérias e pertinentes, que são centrais na reflexão psicanalítica atual.

Afinal de conta, mais uma vez afastada a virulência com a qual foram veiculadas, alí estão expostas a questão da cientificidade da psicanálise, sua capacidade terapeutica, suas relações com a psiquiatria, os problemas ligados às instituições psicanalíticas e à formação profissional.

Este “e-mail” me fez lembrar uma troca de correspondência ocorrida recentemente na Lista de Psiquiatria Brasileira psiq-brasil@psiquiatria.epm.br , sob o título “Tolices na lista”. Ali, um colega reproduziu um programa de pesquisa a ser realizado num posto de saúde, programa este embasado em pressupostos psicanalíticos. Em que pese o fato do mesmo ter sido escrito no jargão lacanês, que, como todo jargão, exclui os não iniciados, fiquei – tal como com meu missivista – surpreso com a virulência das críticas, com a hostilidade e rejeição com que tal proposta foi comentada. (Também inclui aqui como objeto de documentação).

A tudo isso se soma o fato de que a grande imprensa com frequência anuncia – tal como voltou a ocorrer, em 28/3/99, no “Estadão” – a decadência, o ostracismo, a morte ou qualquer coisa que o valha, da psicanálise.

Assim, terminei por considerar como sintomático o “e-mail” do meu missivista. É mais uma evidência das vicissitudes, do “inferno astral” que a psicanálise está atravessando no momento.

E, afinal de contas, o que se passa com a psicanálise no momento? Embora sem ter a pretensão de dar respostas a problemas tão amplos e que há muito preocupam-nos a todos, tentarei abordar alguns aspectos.

A meu ver, para entender estas complexas questões é necessário fazer antes uma certa contextualização, falando da relação da psiquiatria com a medicina e com a psicanálise.

Como sabemos, a angústia frente ao sofrimento psíquico e o medo à loucura levam à negação dos problemas mentais, à diminuição de sua importância e à estigmatização de seus portadores e daqueles que os tratam, estabelecendo preconceitos os mais variados. Tais preconceitos existentes na sociedade e, impossível negar, dentro da própria Medicina.

Lembro de meu tempo de faculdade, onde todos nós que tínhamos escolhido a psiquiatria éramos considerados os “loucos”, os que não tinham jeito para mais nada, os que iam fazer uma especialidade que era um arremedo da medicina. A julgar por recente “e-mail” lido na Lista de Psiquiatria, essa situação não mudou muito.

Vivemos um momento muito específico da psiquiatria. Orgulhosa com os avanços dos fármacos, da neuroquímica, das neuro-imagens, das descobertas genéticas, ansiosa para ser considerada uma especialidade médica “séria”, “científica”, a psiquiatria se deixa encantar e seduzir pelas novas aquisições.

Essa aproximação com a medicina faz a psiquiatria enfatizar sua vertente “organicista” em detrimento da vertente “psicogênica”, dualidade da qual padece em função do próprio objeto de seus estudos – a vida psíquica, inegavelmente sediada organicamente no cérebro mas articulada e expressa no mundo simbólico cultural e interrelacional, na linguagem. As psicoterapias são desvalorizadas, vistas como acessórias, o que cria situações surrealistas, pois os psiquiatras, que deveriam melhor do que qualquer outro profissional entender do funcionamento psíquico, perdem a capacidade de captá-lo.

Como lamenta Stoller, em livro por mim resenhado aqui neste espaço, “Uma suspeita horrível: muitos psiquiatras não podem decifrar as comunicações não verbais sutis e difusas que são o modo como os seres humanos expressam seu íntimo. Esses colegas não foram treinados para fazê-lo, em sua formação não foram expostos a professores que faziam isso e não sentem que isso seja importante. Eles não sabem o que estão perdendo. Serão tais habilidades demasiadamente não-científicas, não-médicas, demasiadamente distantes de cérebros, sinapses, moléculas, reflexos, dissonâncias cognitivas, associações contíguas ou respostas evocadas? Mais terrível ainda: serão estatisticamente incontroláveis?”

A vertente “psicogênica” da psiquiatria recebeu um extraordinário aporte com os estudos de Freud, que construiu um corpo teórico consistente sobre o funcionamento do psiquismo humano, com a descoberta e o mapeamento deste novo continente que é o Inconsciente. Da psicanálise descendem inúmeras linhas terapeuticas que usam variados recortes de sua ampla teoria para fins mais pontuais.

Como vimos, a ênfase nos aspectos orgânicos do psiquismo, sua suposta cientificidade, seriedade, medicalidade, relegaram a um segundo plano as terapias pela fala, a não ser as “cognitivas” (antes chamadas de “behavioristas”, “comportamentalistas”), que – por se basearem no psiquismo consciente – são consideradas mais “científicas”, ao administrarem conselhos e exercícios de uma simplicidade acaciana, que deixam constrangidas quaisquer pessoas medianamente inteligentes.

Na prática psiquiátrica, esta ênfase organicista leva a uma visão onde os pacientes são preferencialmente considerados portadores de desordens neuroquímicas a serem medicados, sendo ignorada toda a dimensão existencial, relacional, histórica, cultural, situacional que os constituiram enquanto sujeitos humanos desejantes.

É o que mostram os testemunhos de William Styron e, noutro nível, de Teixeira Coelho. Ambos são escritores que usaram estados depressivos como material para produção literária. Em ambos fica patente o vazio da abordagem psiquiátrica ao enfatizar só a medicação, esquecendo a dimensão simbólica da experiência de sofrimento psíquico trazida pelo paciente. Aos interessados, sugiro a leitura da resenha que fiz do livro de Coelho neste espaço.

Aqui talvez se faça necessário um esclarecimento. Ninguém em sã consciência poderia ir contra os desenvolvimentos “organicistas” da psiquiatria. Só podemos nos orgulhar pela ampliação de nossos conhecimentos e pelos benefícios que proporcionam a nossos pacientes. Também é necessário estabelecer que é uma falsa antinomia colocar a psicanálise contra a medicação. O próprio Freud antevia descobertas da neuroquímica. O que, sim, é criticável é reduzir a vida psíquica à biologia e à organicidade, ignorando os complexos processos que estabelecem a subjetividade humana, em sua dimensão simbólica, histórica, cultural.

É preciso também manter um certo distanciamento crítico em relação a essa excessiva ênfase na organicidade, detectar idealizações e lembrar da história da psiquiatria, o que talvez nos faça reconhecer roupagem nova em velhas teorias organicistas localizacionistas (neuro-imagens) ou geneticistas (degenerescência e hereditariedade), ou mesmo a negação total das descobertas freudianas, num retorno às compreensões do psiquismo centradas na consciência (teorias “cognitivas”).

Não podemos esquecer, ao que me conste, que as incontestes alterações neuroquímicas detectadas em determinadas patologias mentais não afastam a importância das relações primárias entre bebê e mãe. É uma questão em aberto o que seria primário na etiologia da doença psíquica. As relações primárias intersubjetivas (bebê-mãe) estabeleceriam padrões neuroquímicos cerebrais? Os padrões neuroquímicos cerebrais determinariam as formas das relações primárias intersubjetivas (bebê-mãe)?

Dentro da ênfase “organicista” da psiquiatria, o grande argumento contra a psicanálise é que ela não é “ciência”. É preciso dizer que este é um assunto extremamente rico e interessante, estudado pelos epistemólogos. Sugiro enfaticamente a leitura do esclarecedor trabalho de José Perres, “La epistemologia del psicanalisis: Introducción a sus núcleos problemáticos y encrucijadas”, disponível na revista Acheronta.

Sublinharei alguns dos tópicos ali estudados. A origem da afirmação de que a psicanálise não é “ciência” e sim uma “pseudociência” advém de filósofos da ciência de viés positivista ou neopositivista, como Popper, Nagel e Bunge. Eles propõem definições “a priori” do que é ou deve ser ciência, usando unicamente o modelo das ciências “duras” (ciências exatas), especialmente a física e, dentro dela, a mecânica newtoniana. Consideram haver uma “unidade da ciência” e de um só “método científico”. É claro que dentro deste referencial a psicanálise não é nem jamais será uma “ciência”.

Tal modelo implica que existe uma única ciência, A Ciencia. Hoje em dia não se pode absolutamente partir destes “a prioris” propostos pelos neopositivistas que defendem a “metologia científica” e muito menos aceitar que haja um único “método científico”. Temos que pensar em diferentes formas de cientificidade e distintas abordagens epistemológicas em função das características de cada disciplina em questão. Há diferentes formas de produzir conhecimento válido, dependentes de métodos particulares. Hoje fala-se As Ciências, dentro inclusive da tradicional oposição entre “ciências duras” (exatas), que desdobrariam um “saber científico”, e as “disciplinas discursivas”, que gerariam um “saber narrativo”. É a antiga oposição entre as “ciências da natureza” e as “ciências do espírito”.

O próprio método proposto pelos neopositivistas baseia-se na crença que na relação entre o “objeto de conhecimento” e o “sujeito cognocente” existe uma total objetividade do último, ou seja, a observação científica seria totalmente “objetiva”, estariam excluídas quaisquer subjetividades por parte do observador, o “sujeito cognocente”. Hoje tal pretensão caiu em descrédito, é considerada um mito, o mito da objetividade totalmente desinteressada do cientista e da ciência, negando toda a realidade de sua inserção sócio-política e subjetiva.

Por exemplo, haveria uma pura e desinteressada procura científica da cura da AIDS ou ela está regida e sobredeterminada por problemas sociais, políticos e econômicos, na medida em que há grandes interesses industriais em jogo, grandes negócios referentes aos seguros saúde e orçamentos nacionais, além do interesse narcísico de seus eventuais descobridores, que seriam cobertos de dinheiro e fama?

Quanto a isso, Perrés afirma que Freud na verdade introduz uma verdadeira revolução epistemológica, ao propor o contrário da posição positivista. Freud postula não só que na relação “objeto de conhecimento”/”sujeito cognocente” não existe o mito da objetividade como incorpora na observação científica a subjetividade do observador, criando um novo campo de cientificidade. Mais ainda, mostra como o próprio observador, o “sujeito cognocente” está cindido pelo Inconsciente, e somente tendo conhecimento desta sua dimensão terá acesso aos processos de conhecimento de si-mesmo e do outro.

Então, a psicanálise é uma ciência? Como vimos acima, a psicanálise inaugura uma nova forma de entender a epistemologia. Diz Koren, citado por Perres: “Quando enunciamos epistemologia da psicanálise apontamos para a possibilidade de uma crítica exaustiva e rigorosa dos fundamentos teóricos da psicanálise que permita, por sua vez, a afinação conceitual e a formalização conveniente da teoria psicanalítica com vistas a sua coerência e consistência teórica e a sua transmissão, portanto e em quanto crítica, se opõe resolutamente a toda pretensão de dogmatismo ou ortodoxia”.

Como dizia Freud, o pensamento científico se opõe diretamente ao pensamento religioso. A religião é a verdade revelada por um ser supremo. A ciência é este corpo de conhecimento lenta e laboriosamente conquistado da escuridão e da ignorância pelo engenho humano, um trabalho paciente, sempre incompleto, em perpétua correção, preso ao regime do ensaio e erro. Por esse critério, diria que a psicálise está definitivamente dentro do campo da ciência. Que ela ainda não conseguiu estabelecer de forma definitiva padrões de pesquisa e ter suas próprios formas de avaliação, controle e reprodução é uma verdade reconhecida por todos e um obstáculo a ser superado. Ao invés de encobrir suas falhas e dificuldades epistemológicas, como faria uma empreendimento eivado de charlatanice ou de embuste, a psicanálise é a primeira a reconhecê-los e tentar resolvê-los. A psicanálise pressupõe a ciência para existir, somente pode medrar num ambiente científico.

Vê-se assim que dizer que a psicanálise não é ciência envolve uma série de questões muito complicadas.

Outros aspectos também teriam influenciado nesta atual ênfase psiquiátrica na organicidade. Acredito que, no Brasil, a psicanálise nunca esteve realmente no centro do “establishment” psiquiátrico. Durante muito tempo esteve restrita a São Paulo, Rio e Porto Alegre e somente no final dos anos 70, começo dos 80 a situação começa a mudar com a quebra do monopólio da IPA e do kleinismo em São Paulo, com a fundação de cursos de psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae e o começo da implantação lacaniana no pais. Os interessados quanto à história da psicanálise nos ultimos 20 anos poderá ler oexcelente artigo de Mezan.

A situação era diferente em países como os Estados Unidos e alguns da Europa. Ali a psicanálise estivera no centro do “establishment” psiquiátrico. Fora idealizada, transformada em uma panacéia que a tudo curaria e, nos Estados Unidos, para muitos adquiriu uma conotação claramente adaptacionista, desvirtuando-se de seus pressupostos. Passados alguns anos, constatou-se que terapeuticamente a psicanálise não era tão eficaz quanto se imaginava.

Diz Stoller: “As razões para essa oscilação do pêndulo… não são misteriosas. Primeiro, as terapias de empatia/insight, orgulho dos psiquiatras americanos da década de 50, produziu uma literatura tão densa de explicações que a maioria de nós finalmente reagiu contra sistemas que explicavam tudo mas não produziam com frequencia os resultados esperados. Segundo, à medida que lutávamos com estas realidades, apareceram outras técnicas que, por maior que fosse sua indiferença por insight ou mudança de caráter, podiam mudar o comportamento e reduzir ou eliminar síndromes dolorosas. Esses tratamentos, em particular os de farmacologia e os comportamentais não nos exigem uma alta consciência interpessoal (embora possam funcionar melhor quando o relacionamento médico-paciente é bom)”.

Um subproduto disso é, como vimos acima, a produção de psiquiatras que não sabem mais entender o paciente.

Alejandro Ariel tem algumas explicações para este atual deslocamento da psicanálise para a margem. Situando-se em sua vivência na Argentina, onde a psicanálise também foi muito prestigiada, acredita que na medida em que a psicanálise entra nos jogos de poder institucional, seja com a psiquiatria ou com a burocracia estatal, ela se enfraquece e abastarda. A seu ver, a psicanálise só recupera sua potência transformadora quando abandona as posições de poder e se situa no que chama de “interstícios”, lugares onde pode efetiva e descompromissadamente indagar, perguntar, questionar o nome.

Um outro fator não sem peso para a ênfase nos tratamentos organicistas repousa no controle progressivo em muitos países das empresas de seguro-saude, que exigem tratamentos rápidos a baixos custos. Dentro deste referencial o uso das medicações, que movimenta poderosíssima industria, se torna absolutamente prioritária, em detrimento, mais uma vez das terapias de fala, demoradas e de efeito incerto.

Não se pode negar que as pretensões terapeuticas da psicanálise ficaram muito aquém do desejado. As coisas se revelaram mais difíceis do que pareciam. A força da compulsão a repetição, a viscosidade da libido, a dificuldade em alterar estruturas psíquicas por demais enrijecidas trouxeram grandes decepções. Mas, com a psicanálise se dá o mesmo que Churchill dizia a respeito da democracia: é um péssimo regime político, mas não há nenhum melhor que ele. A psicanálise também é assim. Demorada, lenta, incerta, mas ainda não descobrimos nada melhor efetivamente que isso.

Alguns se apressarão em dizer que claro que sim, que há coisa muito melhor que a psicanálise. Aí estão os “prozacs” e as terapias “cognitivas” que curam tudo com seus simples e sensatos conselhos. Talvez isso seja válido para muitos casos, que não necessitem de uma psicanálise e sim de uma ajuda mais circunscrita e circunstancial.

Entretanto é preciso reconhecer que o campo da psicanálise não é o da psiquiatria. Há muitas intersecções entre ambos os campos. É inegável, o quanto a psicanálise trouxe de informação e novidade para o campo da psiquiatria, que além das descrições nosográficas, minuciosas descrições de quadros e estados psiquicos emocionais, não tinha nenhuma abordagem mais compreensiva, que tornasse inteligível a sintomatologia. Frente a riqueza que a psicanálise trouxe, mesmo as elaboradas elucubrações de Jasper parecem bisonhas e simplificadas.

O campo da psiquiatria, com seus objetivos curativos plasmados dentro da ideologia médica não coincide com a amplitude dos pressupostos psicanalíticos. Estes, mais que a cura de sintomas, pretende-se dar “insight” ao sujeito, possibilitar-lhe o acesso a essa desconhecida e sempre atuante dimensão do seu psiquismo – o Inconsciente, cujo conhecimento poderá proporcionar-lhe uma completa reestruturação da personalidade, habilitando-o a continuar sua auto-análise de forma autonoma.

Há um outro problema. Ao enfatizar as relações primárias intersubjetivas como constituintes do sujeito humano e, consequentemente, como geradoras dos desvios psíquicos subsequentes, a psicanálise traz problemas – a meu ver insolúveis a curto prazo – para a prática da psiquiatria tal como é ela hoje desempenhada. O atendimento seria desfocado do paciente designado e centrado nos vínculos familiares, o que traria uma ênfase nas terapias de grupos familiares, muito distantes dos modelos atuais de atendimento.

A reação dos colegas da Lista de Psiquiatria a uma proposta lacaniana de trabalho sobre a esquizofrenia, tal como mencionei há pouco, parece ilustrar isso. Lendo tal proposta, achei-a coerente e pertinente. Parece-me que a irritação que ela provocou transcende àquela desencadeada pelo jargão que a todos exclui. Creio que ela vem por propor uma metodologia e um enfoque cuja aplicação é muito difícil no nosso atual sistema de saúde. Dar a medicação antipsicótica que corta o delírio é uma coisa e já é muito. Outra coisa é – além da medicação – trabalhar complexos vínculos familiares, como a suposta fusão narcísica mãe-filho decorrente da ausência paterna, ouvir o delírio enquanto produto transicioanal desta realidade psíquica e fazer atuações terapeutica dentro deste referencial. Se essa hipótese é correta ou não somente a experiência da implantação do projeto poderia responder. Que ela tenha sido de antemão rechaçada e ridicularizada é que me parece sintomático.

Até agora falamos de problemas extra-muros da psicanálise. Eles também existem intra-muros, como os das intituições e da formação de novos analistas, citados pelo colega missivista. Muito já foi escrito sobre as patologias institucionais psicanalíticas, as lutas de poder, a manipulação institucional das transferências não resolvidas, as disputas teóricas, os critérios de formação. No momento constatamos um grande transbordamento da psicanálise para fora da IPA, a grande organização internacional criada por Freud para preservá-la e defendê-la. Por inúmeros motivos, a psicanálise extravasa para a universidade e muitos outros grupos fora da IPA, situação onde Lacan teve grande importância.

A esse respeito, sugiro a leitura do material trazido por René Major, que faz uma convocatória para um grande encontro mundial a se realizar em Paris, em junho de 2000, chamado “Estados Gerais da Psicanálise”. Parte deste material está disponível no seguinte endereço http://www.geocities.com/HotSprings/Villa/3170/EG.htm. Dele citaria um pouco: “Não podemos ignorar que existe uma forma de degradação da prática psicanalítica que coloca questionamentos sobre as formas de avaliação, de seleção, de reconhecimento dos psicanalistas, bem como as formas de sua marginalização; que existem associações de psicanálise que se alicerçam na manutenção de uma transferencia que tende a assegurar a manutenção do grupo – até sua implosão; que exitem condições sócio-econômico-políticas de exercício da psicanálise que a deixam em liberdade relativa com relação a uma ideologia dominante, que a ligam de alguma forma a um sistema de classes, que a submetem ao controle do Estado; que alguns entre nós não levam em consideração senão a realidade psíquica e que outros tendem a articular esta realidade interna à realidade externa, isto é, às condições nas quais ela se desenvolve e ao contexto em que se insere; que alguns consideram que não há nenhum lugar para uma ética dentro da psicanálise ou para uma ética da psicanálise, a lógica interna de seu discurso lhe basta, enquanto que outros estimam que há na psicanálise uma ética específica do desejo e que é urgente que esta se inscreva em sua prática e suas instituições o discurso ético-político que lhe pertence; que alguns sustentam que a psicanálise é apolítica enquanto outros pensam que tal posição a expõe a todo tipo de manipulações pela política e que o pensamento psicanalítico é simultaneamente sócio-ético-político; que alguns consideram que o pensamento freudiano está ultrapassado devendo ser substituido por sucessores, enquanto que outros consideram que o retorno a Freud é sempre atual”.

Quanto a Frank Sulloway, citado pelo missivista, é um dos maiores praticantes do que nos Estados Unidos é chamado de “Freud-bashing” (espancamento de Freud, algo como “malhação” de Judas). Para que se entenda a origem desta situação seria necessário remontar a toda polêmica desencadeada pelo “Arquivos Freud”, as atuações de Jeffrey Masson e Kurt Eisler. É uma história interessante que não poderei resumir aqui. Aos interessados recomendo a leitura dos livros de Janet Malcolm (“Os Arquivos Freud”) e o de Masson (“Ataque à Verdade”). Se fosse tentar sumarizar, diria que Sulloway, com seu sistemático denegrimento difamatório de Freud é a contrapartida da idealização sistemática e equivocada feita pelas instituições oficiais.

Se algum dia forem provadas acusações que mostrem graves manchas no caráter de Freud – como Sulloway tenta fazer – eu, pessoalmente, lamentaria muitíssimo. Mas em nada alteraria meu reconhecimento de sua descoberta fundamental, o Inconsciente e as teorizações que produziu sobre ele.

A psicanálise, com sua severa ética, encara a perda e morte, aquilo que nos faz sujeitos desejantes. Parece deslocada neste momento em que a sociedade se volta para a alienação proporcionada pela cultura de massa, pelo consumo, pelo recrudecimento dos obscurantismo místicos e religiosos.

Espero não me ter deixado levar por nenhum zelo catequético ao repensar esses temas. Não tenho pretensão de converter os “ateus” e os “hereges” da psicanálise. Digo isso para mencionar os aspectos religiosos, sempre atribuidos à psicanálise, o que não deixa de ser irônico, quando lembramos o quanto Freud lutou contra os aspectos regressivos da religião. Cair no radicalismo e no fanatismo é sempre uma possibilidade, quando defendemos nossas opiniões.

Ao contrário da catequese, o que desejo é o diálogo respeitoso dentro da liberdade de opinião, a divulgação da informação e do conhecimento, únicas armas que nos salvarão da barbárie que sempre nos ameaça, alimentada que é pela ignorância, pelo preconceito, pelas imposturas, pelo narcisismo que não tolera a diferença, que só permite o Outro enquanto espelho.

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