Para além da soberana crueldade, uma utopia possível

Em julho de 2000, Paris, 1250 psicanalistas de diversos países e pertencentes às mais variadas correntes e instituições reuniram-se num grande encontro chamado “Estados Gerais da Psicanálise”.

O nome deriva de episódio da história francesa, dos momentos que antecederam a Revolução. O rei convoca uma assembléia, chamada de “Estados Gerais”, onde representantes da sociedade dão conta do que nela ocorre. Os “Estados Gerais” se transformam na Assembléia Constituinte que alija do poder o rei, detonando o gatilho da Revolução.

Vê-se que a escolha do nome tem amplas ressonâncias políticas.

Os “Estados Gerais” são um desdobramento natural do espaço transinstitucional “Confrontation”, criado por René Major e que, por 10 anos (1973-1983), teve importante papel no ambiente “psi” francês.

Momento culminante deste encontro em Paris foi a conferência pronunciada por Jacques Derrida, filósofo de obra intimamente ligada à psicanálise e reconhecidamente o mais importante da atualidade, cujo nome ficou ligado – na grande midia internacional – à “desconstrução”, moda que causa grande polêmica ainda hoje nos campi norte-americanos.

Nesta conferência, agora publicada (Estados-da-alma da psicanálise – O impossível para além da soberana crueldade – Escuta Editora – março 2001 – 104 pp – R$ 18,00),

Derrida considera inicialmente a inelutável existência do mal na humanidade e a necessidade de enfrentá-lo. Se antes o mal era compreendido em termos religiosos, isso não mais é possível. Na atualidade, o único discurso capaz de enfrentá-lo, dimensioná-lo, entendê-lo e criar hipóteses para operacionalizá-lo é o discurso psicanalítico. Esse mal que existe na essência do homem, se manifesta a nível individual ou inter-relacional (no sado-masoquismo, no prazer em fazer sofrer, no prazer em sofrer) e, como não poderia deixar de ser, se infiltra em suas instituições sociais, sob a forma de uma pulsão de poder, que se exerce como crueldade e soberania. Exemplo cabal da crueldade soberana do estado é a pena de morte.

Diz Derrida: “Hipótese sobre uma hipótese: se existe alguma coisa de irredutivel na vida do ser vivo, na alma, na psique (…) e se essa coisa irredutível na vida do vivo é bem a possibilidade da crueldade (…) então nenhum outro discurso – teológico, metafísico, genético, fisicista, cognitivista, etc – saberia abrir-se para tal hipótese. Eles seriam, todos, feitos para reduzí-la, excluí-la, privá-la de sentido. Se há um discurso que poderia, hoje em dia, reivindicar a causa da crueldade psíquica com assunto próprio, esse é o que se chama, de mais ou menos um século para cá, psicanálise”(p.9)

E é justamente aí onde Derrida constata a omissão da psicanálise, pois se o mundo resiste à psicanálise, a psicanálise resiste ao mundo e a ela mesma. É contra essa psicanálise que resiste ao mundo e que se inibe a si própria que responde, de certa forma, a convocatória dos “Estados Gerais” (p.15).

Sobre a resistência do mundo à psicanálise e o generalizado aferrar-se a uma concepção da realidade humana centrado na consciência, concepção que se centra implícitamente na idéia de soberania (ou em um seu possível equivalente, a idéia de “livre arbítrio”), concepção que não se sustenta depois da descoberta freudiana do inconsciente, diz Derrida: “O mundo (…) sem dúvida resiste, hoje, à psicanálise. (…) À psicanálise opõe-se, notadamente, afora um modelo de ciência positiva, ou melhor, positivista, cognitivista, fisicista, psicofarmacológica, geneticista, às vezes também o academismo de uma hermenêutica espiritualista, religiosa ou chãmente filosófica – ou, pior, quando tudo isso não se exclui -, instituições, conceitos e práticas arcaicas do ético, do jurídico e do político que parecem ainda dominadas por uma certa lógica, isto é, por uma certa metafísica ontoteleológica da soberania (autonomia e onipotência da pessoa – individual ou estatal -, liberdade, vontade egóica, intencionalidade consciente, se se quiser, o eu, o ideal do eu, e do super-eu, etc). Tal soberania, o primeiro gesto da psicanálise teria sido o de explicá-la para dar conta de sua inelutabilidade, ao mesmo tempo projetando desconstruir sua genealogia- que também passa pelo assassinato cruel”.(p.17-8)

Sobre a resistência da psicanálise ao mundo e a si mesma, diz: “(…) (há) a resistência ao mundo de uma psicanálise que resiste a si própria, que se dobra em si mesma para resistir, se assim posso dizer, para se inibir ela mesma, de maneira quase auto-imunitária”. (p.14)

E mais: “De fato, no mundo e nas comunidades analíticas, esses modelos positivistas ou espiritualistas, esses axiomas metafísicos de ética, de direito e de política ainda não afloraram, nem sequer foram “desconstruídos” pela revolução psicanalítica. Eles resistirão a isso por muito tempo, eles estão feitos, na verdade, para resistir a isso. E pode-se, de fato, chamar isso de “resistência” fundamental. Sem dúvida, diante dessa resistência, a psicanálise – nas formas estatutárias de sua comunidade, na maior autoridade de seu discurso, em suas instituições as mais visíveis – resiste duplamente ao que continua arcaico nesta globalização. Ela não a quer, mas ela não se dispõe à luta, não a analisa. E essa resistência é também uma resistência a si própria. (…) A psicanálise, acho eu, ainda não empreendeu e, portanto, ainda menos conseguiu pensar, penetrar e mudar os axiomas da ética, do jurídico e da política, notadamente nos lugares sísmicos onde tremula o fantasma teológico da soberania e onde se produzem os mais traumáticos acontecimentos geopolíticos, digamos ainda, confusamente, os mais crueis destes tempos”.(p.17-8)

Na atualidade, vivendo a sociedade grandes transformações geradoras de perplexidades, muito se esperaria do pensamento psicanalítico e é justamente ai quando se evidencia seu silêncio. Diz Derrida: “São muitas as coisas a propósito das quais, se não me engano, a psicanálise como tal, em seus discursos estatutários e autorizados, mesmo na quase totalidade de suas produções, ainda pouco disse ou quase nada teve a dizer de original. Isso onde é dela que se espera a resposta mais específica, na verdade a única resposta apropriada”. (p.19)

Como um exemplo de que nem sempre foi assim, Derrida lembra os “Considerações atuais sobre a guerra e a morte” e “Porque a guerra?”, títulos de Freud de 1915 e 1932. Este último é uma correspondência trocada entre Freud e Einstein, a convite da impotente Sociedade das Nações, que inutilmente tentava impor uma paz mundial.

Naquela correspondência, ambos, Freud e Einstein, estabelecem o irreversível da pulsão de morte, da crueldade e da necessidade de se defrontar com ela, do saber lidar com ela. Diz Derrida: “(…) é sempre em torno da palavra “crueldade” e do sentido da crueldade que a argumentação de Freud se faz ao mesmo tempo a mais política e, em sua lógica, a mais rigorosamente psicanalítica.(…) Recorrendo mais de uma vez a essa palavra (crueldade), Freud a inscreve numa lógica psicanalítica de pulsões destruidoras indissociáveis da pulsão de morte.(…) Será que – e, então, como – essa lógica pode induzir, senão fundar uma ética, um direito e uma política capazes de medir-se de uma parte com a revolução psicanalítica deste século, de outra, com os eventos que constituem uma mutação cruel da crueldade, uma mutação técnica, científica, jurídica, econômica, ética e política, e étnica e militar e policial destes tempos?”(p,71-2)

Em sua correspondência com Eistein, Freud aconselha a não se alimentar nenhuma ilusão frente a irrevogável existência das pulsões de ódio e destruição. É preciso levá-las sempre em conta e saber lidar com elas de forma indireta, sem ter a pretenção de extirpá-las, como alguns regimes utopicamente planejaram: “Se a pulsão de poder ou a pulsão de crueldade é irredutível, mais velha, mais antiga que os princípios (de prazer ou de realidade, que são no fundo o mesmo, como gostaria eu de dizer, o mesmo na diferença) então nenhuma política poderá erradicá-la” (p.35, 75)

Freud salienta que não há direito sem poder (força, violência), (“Macht und Recht”, primeiro título pensado por Freud para aquele seu texto), estabelecendo assim a diferença entre a força (ou a violência) necessária, que cria e impõe a lei, e a crueldade, que pertence a outro dominio. Lembra Freud ainda que, além da irrevogável realidade humana da pulsão de morte, há outra realidade que não pode ser ignorada – a também irrevogável desigualdade inata dos seres humanos, que os divide em duas classe: por um lado, as massas dependentes; por outro, os líderes que as comandam. Realisticamente, Freud diz que esses líderes devem ser treinados – psicanalizados? – para que possam exercer da forma mais adequada o poder, sem aceder à tentação da crueldade. “Seria, pois, necessário educar uma camada superior de homens de espírito independente, capazes de resistir à intimidação e cuidadosos da verdade, para que dirijam as massas dependentes. Claro que o Estado e a Igreja tendem a limitar a produção de tais espíritos.” (p.77)

Derrida aponta duas vertentes significativas e problemáticas para o advir do novo tempo, dessa “progressividade e racionalismo desassombrado”, das “novas Luzes para nosso tempo”(p.77).

A primeira leva em conta que a psicanálise não pode condenar, reprimir ou censurar a agressão e a destrutividade, por sabê-la constitucional e ter por objetivo sua compreensão e análise, cabendo assim a outros campos – a justiça, a ética e a política – este exercício, que deve ser praticado levando em conta o saber psicanalítico. Diz ele: “É nesse lugar difícil de cingir, no espaço da indecisibilidade – portanto, da decisão aberta pela descontinuidade do indireto – que a transformação por vir em ética, direito e política deveria levar em conta o saber psicanalítico (o que não quer dizer que se busque nisso um programa) e que, reciprocamente, a comunidade analítica deveria levar em conta a historia de um direito cujas mudanças performativas recentes ou em curso não lhe interessam – salvo exceção – nem para com ela contribuírem. Tudo isso, parece-me, fica por fazer, de ambas as partes” (p.79-80).

A segunda é a importância da luta contra a guerra e a crueldade dos estados. Como Freud enfatiza, não se pode negar as dualidades pulsionais, sem as quais a vida não poderia existir. Mas ao afirmar isso, Freud luta pelo direito de viver. E ao defendê-lo, implicitamente condena a guerra e a pena de morte enquanto expressão da crueldade do estado soberano. Freud sustenta que o pacifismo tem raizes orgânicas, constitucionais. Sua afirmação, que pode surpreender a alguns, é conseqüência lógica da existência da irrefutável pulsão de morte (pulsão agressiva ou destrutiva), com a qual somos todos dotados de forma diferente e cujo manejo teremos de praticar de forma singular.

Derrida, ao enfatizar, mais uma vez, a absoluta necessidade da presença dos conhecimentos psicanalíticos nas formulações e na prática da política, da ética e da justiça, sublinha a radical estranheza da pulsão de morte ou agressiva, que desafia toda e qualquer economia, desde a macroeconomia dos estados, passando pela micro-economia doméstica, até chegar ao que Freud chama de economia psiquica: ” Pode-se acreditar que a economia é desafiada pela especulação dita “mitológica” sobre a pulsão de morte e sobre a pulsão de poder, portanto sobre a crueldade, como sobre a soberania. Na pulsão de morte (..) pode-se recohecer, com efeito, uma aparência de aneconomia (ausência de economia). E o que é mais aneconômico, dir-se-á, do que a destruição? E do que a crueldade?”(p.83)

Derrida termina sua conferência estabelecendo três tarefas a serem assumidas pelos “Estados Gerais” com o intuito de estabelecer no futuro um novo período iluminista, uma nova Aufklärung onde o saber psicanalítico é imprescindível.

A primeira tarefa, “constativa” (da ordem do saber teórico) , é fazer com que a psicanálise não se afaste dos outros saberes e neles atue: “(…) a psicanálise poderia no futuro levar seriamente em consideração, para ter nisso uma conta rigorosa, como Freud prescrevia, ele próprio, a totalidade do saber, em particular saberes científicos que a mantem à borda do psíquico supostamente puro (…), mas também as mutações técnocientíficas que lhes são inseparáveis” (p.87)

A segunda, “performativa” (da ordem do fazer possível), “a psicanálise tem de tomar suas responsaabilidades, inventar ou reinventar seu direito, suas instituições, seus estatutos, suas normas, etc. suponho que vocês (os que participam dos Estados Gerais) estejam aqui por isso”. (p.87)

A terceira e última, Derrida poeticamente apela para que nós psicanalistas trancendamos os impositivos constativos e performativos e invistamos num “para além”, acreditemos na possibilidade deste “para além” que se configurará na medida em que o saber psicanalítico possa ser integrado nos diversos campos que organizam a vida em sociedade ( o juridico, o político e o ético). Caso esse “impossível” se torne possível, seria o advento daquilo que chama de “a democracia que está por vir”, seria a realização de uma utopia possível.

Durante muito tempo, se dizia que o uso da psicanálise para a compreensão dos fenômenos sociais seria um erro metológico, uma redução descabida, um equívoco na melhor das hipóteses ingênuo. Tal consigna vinha tanto da própria psicanálise, como de uma sociologia que supervalorizava o econômico. O que Derrida diz, com todas as letras, é que, atualmente, não é possível propor qualquer projeto de compreensão sociológica e antropológica, qualquer formulação ética, jurídica ou política, sem levar em conta o saber psicanalítico. E, para tanto, a psicanálise não deve se omitir.

Ao creditar grande esperança no acontecimento dos “Estados Gerais” para o futuro não só da psicanálise (quando faz questão de reconhecer o mérito de René Major e Elizabeth Roudinesco na sua consecução), Derrida explicitamente critica as instituições oficiais que supostamente deveriam representar a psicanálise, mas que se perdem em estéreis jogos de poder intra-institucional e extra-institucional. Esse é o problema de toda e qualquer instituição e, no caso da instituição psicanalítica mais oficial, a IPA (International Psycoanalitic Association), o problema se instalou com o próprio Freud, na medida em que autorizou ele a formação de um Comitê Secreto que efetivamente detinha ao poder dentro da associação que se inaugurava e que se propunha democrática. Por essa razão, Derrida nos conclama a inventarmos novos modos de agrupar-nos, modos que nos afastem da psicologia do grupo e da revivescência do fantasma familiar, possibilitando a criação de um “para além” da instituição. É esse o sonho dos “Estados Gerais”.

É neste sentido que diz taxativamente Derrida: “Tanto quanto aquela do Comitê secreto, a cena da IPA é essencialmente incompatível com uma idéia de Estados Gerais” (p.62).

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