Oscar, Godard, Carnaval

Na dúvida se escrevo sobre o Oscar ou o carnaval, opto pelos dois. Ao contrário da mãe salomônica, não me importo em cortar pela metade estes filhos para acomodá-los no espaço possível. Sacrifico parte do conteúdo, é verdade, mas os textos não morrem por causa disso.

Da boa safra deste Oscar, meu preferido foi o “Cisne Negro” de Daren Aronofsky, filme que mostra uma relação fusional entre mãe e filha (a bailarina Nina, papel com o qual Natalie Portman ganhou o prêmio de melhor atriz). Desta relação está excluída a figura do pai, o que abre a porta para a eclosão da psicose, ocorrida justamente quando Nina consegue o papel principal que tanto almejava. É uma boa ilustração da descoberta freudiana de que há aqueles que fracassam com o êxito. Sim, você leu corretamente. Indo além do senso comum que afirma ser o fracasso o que destrói as pessoas, Freud mostrou que há os que sucumbem frente ao êxito. Isso acontece quando o êxito é vivido como um triunfo vingativo sobre antigos desafetos, o que gera culpa e temores de retaliação, fazendo com que o vencedor não tolere suas próprias conquistas.  No caso de Nina, o triunfo se dá sobre a mãe, bailarina frustrada que abandonara a carreira para cuidar de forma exclusiva da filha.

Mas o fato mais interessante deste Oscar foi a premiação honorária de Godard (que não compareceu à cerimônia, ao contrário dos demais agraciados Eli Wallach, Kevin Brownlow e Francis F. Coppola). Foi uma grande deferência da indústria cinematográfica a um de seus maiores críticos. A disputa de Godard com Hollywood remete a questões mais amplas, como as ligações entre a cultura erudita e a popular, a relação de ambas com o mercado, a discriminação entre arte e entretenimento, a política.

Embora Hollywood realize obras de fôlego, como “Cisne Negro”, grande parte de sua produção é o lucrativo cinema de entretenimento. Tal tipo de cinema visa criar um refúgio temporário para o espectador, que ali esquece por uma centena de minutos, a dor (e a alegria) de viver. Isso não é um mal em si, mas a proposta de Godard é outra. Ele quer retirar o espectador de sua zona de conforto, quer incomodá-lo, causar-lhe estranheza. A provocação de Godard faz com que alguns prefiram acreditar que seus filmes carecem de estrutura narrativa ao invés de se darem ao trabalho de procurar entendê-la.

Sua obra mais recente, “Filme Socialismo”, que estava em cartaz ainda há pouco e que pode ser encontrado em DVD, ilustra bem isso. Ali, a sociedade européia é representada pelos passageiros de um transatlântico em cruzeiro pelo Mediterrâneo, em típico turismo de massa. Multidões seguem as programações padronizadas, lotam restaurantes, boates, piscinas, riem e aplaudem quando o mestre de cerimônias manda,visitam cidades das quais desconhecem a história e o patrimônio cultural. Mas, infiltrados na massa, estão aqueles que preservaram a capacidade de pensar, que mantêm as questões filosóficas e éticas, que cuidam do legado da história, lembram o nazismo, o fascismo, o comunismo, o colonialismo e seus muitos e terríveis crimes. A imagem recorrente de cardumes de peixes assustados com a presença ameaçadora de grandes tubarões talvez ilustre a idéia de que as massas estão sempre submetidas e dominadas por tiranos predadores, o que evidenciaria as “ilusões perdidas” de Godard frente a toda e qualquer utopia ideológica. Mas “Filme Socialismo” não é inteiramente desesperador. Restam a beleza do mar, o movimento das ondas, a possibilidade da resistência e a crença no futuro a ser construído pelas novas gerações.

Mudaria o carnaval ou mudei eu? A resposta é óbvia. Carnaval, natal, estas festas não mudam. São marcos culturais estáveis com os quais nos encontramos ciclicamente, o que nos proporciona um reforço de nossa identidade e nos dá oportunidade de constatar o quanto mudamos (ou não) no tempo.

Remotamente, em Fortaleza, o carnaval me era anunciado pelos ensaios dos blocos de maracatu, cuja batida soturna e hipnótica me enchia de pavor toda vez que a ouvia ao longe, quebrando o silêncio da noite. Saíamos para a calçada, meus pais e irmãos, para vermos o maracatu descendo lentamente nossa rua. Primeiro vinham as alas dos índios, com seus cocares e saiotes de penas. Depois, as figuras com o rosto pintado de preto retinto, trajando vestidos brancos com longas saias rodadas, girando devagar ao som do ritmo grave e solene. Algumas delas empunhavam estandartes, outras levavam cestos com frutos e flores. No centro de tudo, debaixo de baldaquino, com pompa e dignidade dançava a rainha, abanando-se com um grande leque de penas e fazendo gentis mesuras para o público mirrado que estava na rua.  Assustado, eu temia que aquelas figuras de cara preta saíssem da formação e me levassem definitivamente para o misterioso mundo que habitavam e do qual só saiam uma vez por ano, repetindo aqueles mesmos gestos rituais, dançando compassadamente, rodopiando, girando as grandes saias brancas, balançando de forma cadenciada os braços e as cabeças com seus turbantes brancos.

O ruflar dos tambores ficava mais forte, pois agora passavam os músicos encerrando o cortejo. Voltávamos então para dentro de casa, enquanto o maracatu se dirigia para seu destino encantado. Aos poucos o som ia se perdendo na noite escura, deixando um rastro de enigmática tristeza. Tudo voltava ao normal e eu ia para a cama, aliviado por ter escapado mais uma vez.

Nas vésperas de mais um carnaval, tão distante das figuras do maracatu, percebo que, talvez até mais forte, persiste em mim o temor de ser arrebatado para os mundos sombrios dos quais o retorno é impossível.

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