Olhos para ver a pequena macaca de Degas

Um filme como “Cisne Negro” apresenta o balé da maneira com a com a qual estamos habituados – uma refinada forma de arte onde o corpo transcende sua materialidade, expressando elevados sentimentos enquanto evolui ao som da música.  De seus praticantes é exigido um severo treinamento, o que lhes dá uma aura ascética especial.

Esta imagem transcendental e estetizante do balé nos é reforçada pela pintura de Degas, que mostra, em inúmeras telas, cenas de bailarinas do Opéra de Paris nos bastidores, em ensaios, em apresentações no palco. E ainda por sua escultura “A bailarina de 14 anos”, um dos destaques da exposição “Obsessões da forma”, que iniciou a programação deste ano do MASP. Nela vemos a pequena bailarina de tutu, em posição característica, evocando com realismo a imagem familiar de muitas menininhas de hoje que têm no balé uma extensão de suas atividades escolares.

A bailarina de 14 anos, Degas

Ficamos surpresos ao tomar conhecimento de que era outra a visão que a sociedade francesa tinha do balé na época de Degas e que suas pinturas visavam não só exaltar a beleza do movimento implícito na dança. Através delas, Degas mostrava a exploração do trabalho infantil, desde que o balé era uma atividade remunerada praticada por meninas vindas do baixo proletariado e, quase sempre, confundida com prostituição.

Assim, os contemporâneos de Degas, ao verem estes quadros, defrontavam-se com uma realidade vergonhosa. Os homens da alta burguesia, os sócios do Jockey Club, supostos protetores e financiadores do balé do Opéra, usavam tal posição para garantir os serviços sexuais das desprotegidas meninotas e moças, fatos por todos conhecidos. Eram os ricos “abonnés”, que tinham camarotes cativos perto do palco, que freqüentavam o salão de ensaio, além de terem acesso aos camarins, onde escolhiam as dançarinas para seu desfrute sensual. Ali os corpos das bailarinas nada tinham de transcendentes ou espiritualizados. Eram peças disputadas no comércio sexual, expostas em roupas reveladoras – lembremos como na época as mulheres se vestiam de maneira pudica.

As jovens bailarinas eram conhecidas como os “pequenos ratos do Opéra”, denominação depreciativa que as culpabilizava pela miséria que as expunha à exploração e prostituição.

Um eco disso é a própria “A Bailarina de 14 anos”, obra hoje unanimemente aclamada, mas que, ao ser apresentada, foi recebida com grandes restrições. A maioria dos críticos a rejeitou e alguns a chamaram de “pequena macaca”, pois acreditavam ver em suas faces traços simiescos, grosseiros, brutais.

Se você for vê-la no MASP e a observar com cuidado verá que eles não estavam equivocados. Ainda mais que esta opinião coincidia com as idéias do próprio Degas, em função das quais escolhera uma forma pouco usual para expor sua escultura – colocou-a dentro de uma caixa de vidro, assemelhando-a assim aos espécimes animais exibidos nos museus de biologia. Tal escolha expressava o preconceito com o qual eram vistos os “pequenos ratos do Opéra”, tidos como “degenerados” (a “degeneração” era a teoria científica predominante na época para explicar os transtornos mentais e comportamentais), o que “justificaria” sua moralidade frouxa, a prostituição. A escultura não mostrava uma representação idealizada da juventude e sim do corpo “degenerado” de uma pequena prostituta.

Pesquisadores identificaram a menina que posou para Degas em “A bailarina de 14 anos”. Filha de imigrantes belgas, Marie van Goethem logo ficou órfã do pai, tendo a mãe sobrevivido como lavadeira, profissão comum entre as mães das bailarinas do Opéra. Ela e sua irmã, também bailarina, dedicaram-se à prostituição. Alguns autores dizem que Degas tinha com ambas um relacionamento “discutível” (como os “abonnés”?).

Degas era um conservador, tendo assumido posições abertamente anti-semitas no Caso Dreyfus. Mas seu conservadorismo político não o impediu de mostrar suas cenas de balé impregnadas de sensualidade, ligadas a uma incômoda realidade social.

A história da arte está repleta de exemplos mostrando que a forma pela qual os contemporâneos vêem uma obra nem sempre coincide com o que dela vai pensar a posteridade.  A diferença pode ser radical, constituindo o estereótipo do gênio incompreendido, só reconhecido postumamente.

No caso de Degas, essa diferença é menos gritante. Como artista, alcançou pleno reconhecimento em vida. Ainda assim constatamos que a forma como seus contemporâneos viam seus quadros e sua escultura não é a mesma com a qual nós os vemos. A forte sensualidade e a questão social que ele pensava neles mostrar se perderam para os espectadores de hoje, que delas só tomam conhecimento através do estudo, sendo que este desconhecimento em nada lhes diminui o prazer estético diretamente proporcionado pelas obras.

As alterações na forma como a obra de arte é compreendida no correr do tempo reflete as mudanças sócio-culturais então ocorridas, o que torna irrelevantes questões que foram candentes ou possibilita a apreciação de aspectos da obra anteriormente ignorados ou desprezados.

O interessante é que aquilo denunciado por Degas nos quadros e na escultura está longe de ser uma questão obsoleta. A exposição da sensualidade e exploração sexual de menores permanecem atuais. Não as enxergamos na obra de Degas por que hoje seus signos são outros. Em tempos onde a pornografia circula livremente, não procuramos a visão de corpos femininos em dançarinas de balé. Tampouco detectamos a exploração sexual de menores na ribalta de antigos teatros franceses. Ela nos é mostrada pela televisão, como fez o “Fantástico” da semana passada, ao cruzar de norte a sul as estradas do país e registrar que nelas meninas prostitutas atendem rotineiramente aos motoristas, sem que ninguém se importe muito com isso.

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