Observações sobre Ética em Psicanálise – Sérgio Telles

Observações sobre ética em psicanálise (*)

Sérgio Telles

1 – ASPECTOS GERAIS
O dicionário Caldas Aulete dá a seguinte definição de ética: 1) Parte da filosofia que trata das questões e dos preceitos que se relacionam aos valores morais e à conduta humana; 2) conjunto de princípios, normas e regras que devem ser seguidos para que se estabeleça um comportamento moral exemplar.
A versão em língua inglesa da Wikipedia diz que, na prática, a ética procura resolver questões da moralidade humana ao definir conceitos tais como bem e mal, certo e errado, vício e virtude, justiça e crime .
Sob esse prisma, o estudo da ética é um lugar privilegiado para salientar o quanto a noção de inconsciente provoca uma revolução em concepções filosóficas secularmente estabelecidas sobre a essência do homem, como bem ilustram os casos de neurose obsessivo-compulsiva.
É sabido que uma pessoa afetada por este transtorno procura ter uma vida ilibada, segue com rigor normas e regras, é extremamente exigente consigo mesma, acusa-se de e penitencia-se por mínimas falhas imaginárias. Seguindo os padrões éticos habituais e o julgando-a pelo comportamento externo, ela seria considerada justa e boa. Entretanto, a psicanálise entende o rigor do obsessivo como um mecanismo de defesa específico, a formação reativa, que reforça o extremo oposto daquilo que é seu desejo, do que é sua verdade interna. Em seu inconsciente, o obsessivo é tomado pelo ódio e pela agressividade sádico-anal e está em luta permanente contra o impulso de externá-los. Situação não muito diferente ocorre com os outros homens tidos como bons e éticos. A realidade psíquica deles pode ser bem mais complexa e abrigar os antípodas daquilo que exibem externamente.
Como a psicanálise lida com esta questão, na medida em que quase sempre o reprimido é o convencionalmente censurado e um dos maiores objetivos da psicanálise é ajudar o sujeito a vencer a repressão? Significaria isso que a psicanálise é a favor do que é condenado pela ética, que a psicanálise advoga que os desejos sejam liberados e atuados?
Vejamos como Freud, Melanie Klein e Lacan abordaram esse problema.
a – FREUD – Desde muito cedo Freud se deu conta de como as descobertas da psicanálise tinham implicações éticas. No final de seu A Interpretação dos Sonhos, onde faz o levantamento dos conteúdos inconscientes e a forma especifica pela qual se expressam, pergunta-se o que pode pensar um sujeito ao se dar conta de seus desejos proibidos e criminosos, dos quais até então não tinha conhecimento por estarem reprimidos e gerando sintomas. Deve ele sentir-se culpado? Freud responde citando Platão, que dizia “o homem virtuoso se contenta em sonhar o que o homem perverso executa”. Vê-se que já Platão intuía a divisão estrutural do psiquismo entre o consciente e o inconsciente, e, apelando para o princípio da realidade, considerava que o importante para a lei é o que o homem faz e concretiza de fato na realidade. É por seus atos que será julgado, não por suas fantasias, por seus desejos inconscientes .
Já antes, a preocupação com a ética e a moral aparecera no Projeto para uma psicologia cientifica (1895) , onde Freud atribui ao desamparo inicial do ser humano o aparecimento dos motivos éticos. Com isso, deixa claro que a moralidade não é uma essência inerente ao homem e sim uma construção em função de sua condição de assujeitado e dependente do Outro materno.
O que estabelece a discriminação entre o Bem e o Mal é a condição de desamparo inicial, a impossibilidade de prescindir dos cuidados e da proteção de um Outro significativo. Em função disso, o ego passa a considerar como Mal, que como tal deve ser evitado, qualquer coisa que o ameace de perder o amor deste Outro. Por extensão, o Mal passa a ser qualquer ato de desobediência aos mandatos do Outro, da autoridade, que é inicialmente a mãe, como mostrou no paradigma do Nebenmench (o humano ao lado, o próximo, o outro).
Com Totem e Tabu (1913) e O Ego e o Id (1923), a ênfase recai na figura do pai . A teorização em torno do complexo de Édipo e da formação do superego evidenciam mais claramente o sentimento de culpa e a necessidade de punição, que apontam diretamente para as questões de certo e errado, de Bem e Mal.
Com o estabelecimento do complexo de Édipo, o Outro do qual não se pode prescindir, do qual se espera amor e proteção e a cuja autoridade se obedece é o pai. E a lei máxima por ele imposta é a que ordena a interdição do incesto. É essa a lei que vai estabelecer o que é o Bem e o Mal – o Bem é a renúncia ao incesto e o Mal é a insistência no desejo incestuoso. Acontece que o que o ego mais deseja é justamente o Mal, ou seja, a consumação do incesto.
Em O Mal-Estar na civilização (1930) Freud retorna à questão ao explicitar que o psiquismo não faz uma discriminação natural entre o Bem e o Mal. Se assim fosse, Eros, o amor, seria sempre o Bem, Tânatos seria sempre o Mal; o ego procuraria sempre o Bem, que lhe seria benéfico, e se afastaria do Mal, que lhe prejudicaria. Essa linearidade implicaria uma ênfase exclusiva no pulsional, mas o complexo de Édipo torna a situação mais ambígua. O Mal pode ser justamente o que o ego mais deseja, aquilo que mais lhe dá prazer (a consumação do incesto com a mãe); o Bem pode ser aquilo que mais o faz sofrer (o ter de abdicar da posse da mãe).
Enquanto o pai ainda é visto com autoridade externa, o sujeito teme ser descoberto desobedecendo a suas ordens, ou seja, desejando a mãe. Com a internalização da lei paterna e a formação do superego, aparecem o sentimento de culpa e a consciência moral. Elas são consequência da vigilância do superego sobre o ego, pois o superego não faz diferença entre desobediência real ou apenas desejada pelo ego, pune as duas com a mesma severidade. Vem daí o paradoxo apontado por Freud ao falar do extraordinário rigor do superego contra um ego virtuoso. É que o superego não só sabe que, mesmo sem concretizar os desejos proibidos, o ego os acalanta secretamente, como também se apropria do investimento do ego não descarregado no exterior e o usa para puni-lo (ao ego) mais intensamente.
A única forma de diminuir o sadismo do superego, alimentado pela agressividade reprimida e introjetada pelo ego, seria a liberação de parte da agressividade no mundo externo pelo ego, o que traz um problema ético de difícil solução.
Em O Mal-Estar na Civilização Freud especula sobre a vida em sociedade e as restrições que somos obrigados a cumprir, reprimindo os desejos sexuais e agressivos e sendo punidos, mesmo assim pelo superego, com o sentimento de culpa. Mais uma vez, Freud refere tais sentimentos ao complexo de Édipo – os desejos sexuais são os incestuosos e os agressivos são os que se voltam contra os limites da lei paterna, que impede o acesso ao Bem/prazer com a mãe.
Em O problema econômico do masoquismo (1924) , Freud afirma que o imperativo categórico de Kant é um herdeiro do complexo de Édipo. Demonstra ali como o masoquismo moral – culpa inconsciente e necessidade de punição paterna – traço comum a todos os seres humanos – é particularmente instrutivo sobre a importância da pulsão de morte na gênese da consciência e da moralidade. Na resolução do complexo de Édipo, há uma dessexualização das figuras parentais, que somente assim são abandonadas enquanto objeto de amor e introjetadas. Acontece que a dessexualização proporciona uma defusão dos instintos de vida e de morte, que até então estavam fundidos. Com isso, ocorre uma diminuição do investimento libidinal e a permanência inalterada do investimento tanático, o que faz com que a figura internalizada potencialize seu rigor sádico.
Tal situação não impede que possa haver uma ressexualização dessas figuras parentais internalizadas e o complexo de Édipo seja novamente investido pela libido. Dessa maneira, os ataques sádicos do superego ao ego submisso remetem à revivescência do desejo de submissão sexual ao pai, o que reafirma a íntima ligação entre sexualidade incestuosa, pulsão de morte e moralidade.
Em Moisés e o Monoteísmo (1930) Freud diz que a ética é qualquer coisa que limite a pulsão. Mostra como a religião, que se iniciou proibindo fabricar imagens de deus, terminou por impor a renúncia às satisfações das pulsões em geral. Deus se erige como um ideal ético. Os preceitos religiosos remetem aos fatores já discriminados em Totem e Tabu (a proibição do incesto, a aliança entre os irmãos e o assassinato do pai), onde é descrita a vinculação entre o sagrado e o tabu de tocar (o tocar agressivo contra o pai e o tocar erótico nas mulheres do pai – a mãe e as irmãs). Por esta via, Freud especula porque o incesto é considerado como o crime mais terrível na cultura, o tabu mais penalizado, o Mal por excelência. Como não é possível encontrar uma explicação racional, Freud atribui o tom sagrado, mítico, profundamente emotivo, grandioso e assustador que sempre envolve o tabu do incesto ao fato de evocar diretamente o desejo do pai da horda primitiva. A vinculação do tabu do incesto com uma ordem arcaica sagrada emitida pelo pai estabelece uma ligação entre ética e religião. Freud julga haver uma “base profundamente irracional de toda racionalidade”, evidente no imperativo categórico kantiano, derivado da lei do pai da horda primitiva e do complexo de Édipo. Deve-se ter em mente que a teorização do complexo de Édipo é a continuação lógica dos argumentos de Totem e Tabu, o mito originário que explica a origem da lei, da organização social, da religião, da cultura.
Szpilka aponta para a íntima relação entre Kant e Freud no que se refere à questão do Bem e do Mal. O pensamento filosófico greco-latino sobre ética, transmitido ao mundo ocidental pelo judaísmo e pelo cristianismo, partilhava a ideia de que havia uma firme relação entre o Bem e o bem-estar. Acreditava que a existência do Bem induzia à felicidade, haveria uma natural inclinação do homem para a harmonia, e que, em sua busca, ele conseguiria algum tipo de realização ou plenitude de ser.
Na Crítica da Razão Pura, Kant rompe essa tradição ao mostrar que a prática do Bem não é natural, não é fácil e prazerosa, e decorre da obediência a uma lei, o que envolve necessariamente um esforço, o cumprimento de um dever, o desprazer de arcar com obrigações e restrições. Para Kant, não é a sensação de bem-estar ou mal-estar o que condiciona o Bem e o Mal, é a lei que vai estabelecer essas categorias. A lei é entendida como um imperativo categórico, não circunscrito a objetivos circunstanciais limitados e sim a máximas de validade universal, que devem ser seguidas per se, como uma imposição inquestionável.
A diferença entre Bem e Mal para Kant baseia-se, por um lado, no empirismo subjetivista assentado na experiência de prazer e dor (desprazer) e, por outro, num objeto formal a priori, tornando possível uma universalidade suportada por uma lei geral. Essa diferença reflete a que já existe na língua, pois, em alemão, há duas palavras para o Bem – Wohl (agradável, prazeroso, que causa bem estar) e Gute (moralmente bom), o que também acontece quanto ao Mal – Böse (moralmente ruim) e Weh (desagradável e desprazeroso, que causa desconforto). Kant rompe a relação tida tradicionalmente como natural entre Bem e bem-estar ao dar primazia à lei, ao imperativo categórico.
Para Szpilka, com essa nova abordagem da questão do Bem e do Mal, Kant possibilitou a revolução freudiana. Como sabemos, Freud organiza seus modelos de aparelho psíquico em torno das categorias de prazer e desprazer, que – como vimos – têm uma relação peculiar com o Bem e o Mal. Assim como para Kant, também para Freud o Bem não se confunde com o bem-estar, com o prazer. Assim como para Kant é a lei o que vai estabelecer o que é o Bem ou o Mal, o mesmo ocorre com Freud – o que é prazeroso para uma instância, é desprazeroso para outra, e isso decorre do momento em que a lei instala a proibição. A partir daí o que é amor pode não ser o Bem, pode ser o Mal e o que é ódio pode não ser o Mal, pode ser o Bem, desde que autorizado pela lei. Isso faz com que o ser humano esteja num permanente conflito ético.
Seguindo Freud, Szpilka enfatiza que, em função da importância central do Édipo, não existe na psicanálise uma abordagem natural ou essencial da questão do Bem e do Mal. Na verdade, ela fica invertida, de ponta-cabeça. Como os sintomas podem ser entendidos como a expressão da satisfação de um desejo e sua concomitante punição, fica caracterizado que há algo que o sujeito considera um Bem para si (a posse da Mãe) e que é tido como moralmente Mal (incesto); e um Mal (proibição do incesto) que é considerado como moralmente Bom (lei). E é justamente essa transmutação do Bem no Mal, instalado pelo complexo de Édipo, o que causa a infelicidade comum do dia a dia, os sofrimentos neurótico, perverso e psicótico. Existe um Bem no Mal e um Mal no Bem que impede qualquer relação empírica ou naturalística com o Outro, as relações serão sempre regidas por um sistema de leis que impõe definições do que é Bom ou Mal. Como já vimos, pode-se resumir dizendo que, sob esta perspectiva, o Mal é o incestuoso e o Bem é tudo aquilo que favorece a renúncia ao incesto.

b – MELANIE KLEIN – Também Faigon e Siquier afirmam que as formulações de Freud sobre ética estabelecem a não existência de uma disposição natural para o Bem ou para o Mal, distanciando-se de qualquer formulação ontológico-religiosa ou fundamentação empírica.
Essas autoras mostram que Money-Kyrle, apoiando-se na teoria kleiniana, liga o conceito de moralidade ao de culpa, definindo esta como um tipo especial de ansiedade derivada da percepção de ter atacado real ou fantasiosamente o objeto bom ou amado. É a culpa o que leva ao desejo de reparação – conceito que abre caminho para a criatividade e o comportamento humanitário. A partir desse pressuposto, Money-Kyrle descreve três tipos de moralidade – a negativa, que proíbe o ataque ao objeto amado e seus símbolos; a positiva, que visa reparar os danos realizados, e a agressiva, que luta para defender o objeto amado dos perigos internos e externos que o ameaçam.
Money-Kyrle liga os conceitos de incorporação e expulsão aos de amor e ódio, aproximando-os aos mecanismos de introjeção e projeção, o que o leva a conceber o conceito primário de objeto bom ou mal em função de estar ele investido de amor ou ódio. A partir daí, postula três “princípios objetivos da moralidade primária”: a) é mal – provoca culpa – destruir ou ameaçar o objeto bom; b) é bom amar, reparar e defender o objeto bom; e c) é bom odiar e atacar o objeto mau, ou seja, qualquer coisa ou pessoa que ameace ou destrua o objeto bom.
O conceito de inveja, consideram as autoras, é uma valiosa contribuição kleiniana à ética e à moral. Para uma compreensão mais clara dessa afirmativa, é necessário fazer uma distinção da inveja enquanto conceito teórico e enquanto descrição de um sentimento.
Teoricamente, a inveja está ligada à pulsão de morte, é um elemento constitucional atuante desde o nascimento, está ligado à percepção de uma ameaça de aniquilamento, o que implica num inato sentimento de existência de um objeto e de mecanismos de defesa, e antecede o estabelecimento das duas posições (esquizo-paranóide e depressiva). Enquanto sentimento, indica profunda humilhação, dor e autodestruição decorrente da ferida narcísica, sentimentos de ódio e ataques ao objeto invejado.
A capacidade de amor incentiva as tendências integrativas e possibilita uma cisão primária bem-sucedida entre o bom e a mau objeto (amado e odiado). A inveja excessiva impede a discriminação entre bom e mau objeto, impedindo a constituição de um bom objeto e perpetuando uma confusão de valores.
c – LACAN – Diz Fink que à ideia de que a realização do desejo geraria o sentimento de culpa, Lacan propõe o oposto: ficamos culpados quando não realizamos nosso desejo. Para entender isso é preciso, seguindo Freud, distinguir culpa de arrependimento ou remorso. Podemos nos arrepender do que fizemos, mas ficar contentes assim mesmo por tê-lo feito. A culpa advém das censuras do superego contra o ego. Em sua argumentação, Lacan esmiúça o paradoxo mostrado por Freud no capítulo 7 do O Mal-Estar na Civilização, onde fala do rigor maior do superego contra o ego virtuoso que inibe suas pulsões proibidas. Isso acontece, como vimos acima, porque o superego não só sabe que o desejo persiste, como se apropria do investimento não descarregado no exterior, usando-o para punir com mais vigor o ego. Como Freud diz ali, das pulsões impedidas de alcançar seu fim nasce a consciência e não o contrário, não existe uma consciência prévia que vai impedir a descarga das pulsões. Por esta via, Lacan diz que a culpa vem por não se perseguir e realizar o desejo.
Como mostra Fink, para Lacan o analista não deve se preocupar com o Bem de seu analisando, da mesma forma que o analisando não deve buscar o Bem dos outros. Deve sim entender qual é o seu próprio Bem, ou seja, o grande Eros – que é mais amplo que o desejo, inclui a pulsão, o amor, o prazer. Tampouco o analista deve querer que o analisando tenha um melhor contato com a realidade e sim com o que deseja. A cura não deve buscar a substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade e sim fazer o analisando se aperceber dos mecanismos internos de seu próprio psiquismo. A realidade é percebida através dos discursos interno e externo, essa é a realidade que interessa, a realidade de nossos desejos. Essa é a única realidade que o analista conhece e que pode ajudar o analisando a atingir. Isso implica uma ética, o lidar com a realidade psíquica, com o desejo inconsciente e toda sua ambiguidade. Lacan avança um passo a mais ao propor um paradoxo – nosso prazer é ainda maior quando envolve a prática de uma transgressão, quando quebramos as regras e fazemos algo que é proibido e perigoso para nós e para a sociedade, quando superamos obstáculos internos grandes, que vão além do princípio do prazer, passando por vivencias desagradáveis para atingir o gozo. Os analistas não devem nivelar essa questão com o conceito de perversão, pois aí está um grande número de comportamentos neuróticos.
Lacan afirma que não há desejo sem a lei ou a proibição. Em seu Seminário 7 -sobre a ética, Lacan cita são Paulo, na Epístola aos Romanos – “Mas não conheci o pecado senão pela lei. Porque não teria ideia da concupiscência se a lei não dissesse: não cobiçaras”. Vê-se que São Paulo está próximo de Kant e de Freud, ao falar que antes da lei não existe Bem ou Mal.
Se o que mais desejamos – a Mãe – é algo proibido e interditado, como pode a psicanálise pretender uma total reconciliação ou harmonia de nossos desejos? – pergunta Fink. Freud propôs a sublimação como a forma substituta e indireta de satisfazer esse maior desejo. É nesse sentido que Lacan diz que sublimação é a elevação do objeto à condição de Coisa.
Lacan aproxima e contrapõe Kant e Sade, dois pensadores aparentemente opostos no que diz respeito à ética. Zizek mostra como Lacan está menos disposto a mostrar como Kant está perto de Sade, do que como Sade está perto de Kant. Sobre a proximidade de Kant com Sade, diz: “Hoje em dia, em nossa era freudiana e pós-idealística, não sabemos todos que a verdade do rigorismo ético de Kant é o sadismo da Lei, que a Lei kantiana é uma agência superegóica que goza sadicamente dos impasses do sujeito, de sua incapacidade de atender a suas inexoráveis exigências, como o proverbial professor que tortura seus alunos com tarefas impossíveis e secretamente saboreia seus fracassos?” . Ou seja, com a psicanálise, os princípios éticos mais rígidos, como os formulados por Kant, podem ser vistos como a expressão do Mal que eles supostamente combateriam, seriam uma clara manifestação de sadismo.
Por outro lado, Sade se aproxima de Kant pois ambos preconizam imposições éticas formais universais e objetivas – Kant com seu imperativo categórico, Sade com a imposição da submissão às leis da natureza . Contra elas Lacan defende a ética do desejo, pois nele reside o núcleo de subjetividade e singularidade do homem.
Para Lacan, a ética da psicanálise se resume na pergunta “Agiste conforme o desejo que te habita?”.
Em seu seminário sobre a ética, Lacan escreve sobre Antígona, afirmando que seu comportamento ético se evidencia na forma como se manteve fiel a seu desejo, não o traindo em função das pressões externas e pagando com a vida por esta escolha. Em sua interpretação, o desejo de Antígona vai além daquele que habitualmente se lhe atribui – o de afrontar a lei do estado representado por Creonte, que a impedia de enterrar o irmão Polinice dentro dos rituais tradicionais. O desejo inconsciente de Antígona, na verdade, é o desejo da mãe Jocasta, o desejo criminoso de transgredir. Neste sentido paradoxal, seu desejo continuava alienado no desejo do outro, a mãe .

2 – ASPECTOS PONTUAIS DA ÉTICA NA PRÁTICA PSICANALÍTICA
Nesse campo, ressaltam em primeiro lugar os erros profissionais, intercorrência que compartilhamos com os demais praticantes dos cuidados médicos e psicológicos, mas que, em nosso caso, toma características específicas na medida em que eles se dão no campo da transferência, ou seja, numa relação marcada pelo inconsciente dos dois participantes, analisando e analista. Isso significa que o analista usufrui de um extraordinário poder que lhe delega o analisando, na medida em que este o vê sob um ângulo regressivo, como a criança, em seu desamparo, vê uma figura materna ou paterna. Ao contrário dos demais profissionais da área, o analista tem pleno conhecimento deste fato e dele faz seu instrumento mais importante, o que só lhe aumenta a exigência ética. Em sua clínica, o erro mais grave no qual o analista pode incidir decorre de sua incapacidade de manter a abstenção com a qual deve conduzir o tratamento. Não contente em ser apenas uma presença fantasmática na vida psíquica do analisando, o analista ingressa concretamente na realidade do mesmo, rompendo o enquadre. Forma menos ruidosa, mas não menos lesiva, ocorre quando, sem abalar formalmente o enquadre, o analista usa o analisando para suprir suas necessidades narcísicas de onipotência e onisciência, alimentando-lhe a dependência e a idealização.
Um outro tipo de problema ético está presente na publicação de casos clínicos, que, apesar de ser algo imprescindível no estudo e pesquisa da psicanálise, esbarra na condição de presumida confidencialidade deste material. Gabbard tem feito valiosas contribuições nesse campo .
Também levanta questões éticas a inserção da clínica psicanalítica nas grandes instituições de atendimento de massa, públicas ou privadas (convênios de saúde), deixando-a mais accessível a um público maior. Para tanto, ela tem que aceitar os protocolos que comandam todo o atendimento médico-psicológico, procedimentos que muitas vezes se afastam muito dos pressupostos psicanalíticos: critérios de diagnostico, tratamento, cura e alta, confidencialidade, transferência institucional, etc. É um problema muito atual, que merece toda atenção no sentido de evitar que a necessária ampliação do âmbito da psicanálise não leve a uma descaracterização e empobrecimento da mesma, o que configuraria um grande desserviço à nossa causa.
Sob este prisma, Kavanaugh aborda a situação nos Estados Unidos, mostrando com detalhes como a psicanálise subscreve o código ético médico, plasmado dentro da filosofia utilitária de John Stuart Mill, abandonando completamente aquilo que chama de “ética da associação livre”, especialmente quando entram em jogo a ética dos negócios e a procura do lucro, característicos das empresas prestadoras de serviços médicos.
Gampel , por sua vez, mostra os cuidados especiais que o analista deve ter em situações nas quais a realidade externa invade o enquadre, o que ocorre em acontecimentos de comoção pública, como guerras ou conflitos armados, perseguições políticas próprias de regimes totalitários e ditatoriais ou mesmo em situações de crônica tensão social descarregada em violência urbana, tal como conhecemos em nossas grandes cidades. O analista não pode negar a realidade externa, na qual está sujeito aos mesmos medos e angústias que atingem o analisando, nem deixar que ela obstrua sua visão da realidade interna do mesmo. Os argumentos da autora decorrem de sua experiência no atendimento a sobreviventes do Holocausto e a moradores de Israel durante a Guerra do Golfo.
Um enfoque interessante é trazido por Thompson , ao discorrer sobre o que chama de “ética da honestidade” que julga reger a psicanálise. Apoiando-se em Rieff, mostra como Freud propunha a seus analisandos um compromisso com a honestidade com a qual deveriam praticar a associação livre, sendo essa, em sua opinião, a verdadeira regra fundamental. Freud considerava a prática da associação livre como um indicador do nível de resistência do analisando, desde que, para ele, a associação livre não era uma mera conversa despreocupada, “solta” – como muitos analistas de hoje parecem considerar – e sim um procedimento técnico que inaugurava um tipo de diálogo interior diferente da introspecção e de outras modalidades até então existentes. Procurando fazer associações livres, o próprio analisando percebe quando é tentado a excluir algo de sua fala, o que indica a presença de uma resistência. Essa constatação deveria levá-lo a dirigir sua atenção justamente para este ponto e, enfrentando a resistência, explorá-lo junto com o analista. Em assim fazendo, o analisando deixa de ser um despreocupado contador de histórias e passa a ser um agente que se dispõe a buscar a verdade, da qual somente ele tem as pistas para encontrar – a resistência em comunicar o que lhe ocorre na mente em determinados momentos. Thompson observa que a psicanálise não está tão interessada em descobrir o que estava “enterrado” e “escondido” e sim no processo de “desenterrá-lo”, acreditando, como Freud, que ao fazê-lo, importantes modificações psíquicas ocorrem.
Essa forma de ver a associação livre leva a necessárias discussões técnicas sobre como deve ser conduzido o processo analítico, se o que importa é o insight que o analisando obtém com a integração dos conteúdos inconsciente via associação livre ou são os processos intersubjetivos, a empatia e experiência emocional com o analista, preconizados por algumas correntes analíticas mais recentes.
O autor ressalta que a promessa de sinceridade e honestidade a ser feita pelo analisando deve ser discriminada de uma exigência superegóica, e não ignora que em determinadas situações de vida o analisando precisa exercer defensivamente a negação e o autoengano para sobreviver, sendo a psicanálise a primeira a alertar para o perigo de confrontos precipitados com a realidade.
Numa linha diferente se inserem as considerações éticas de autores baseados em Levinas, que insistem na responsabilidade frente ao Outro, uma ética centrada na superação do narcisismo, como mostram Milmaniene e Peter Atterton . Este último cita Braatoy, analista nórdico, que insiste que a conduta ética do analista não está centrada na obtenção do sucesso terapêutico de sua empreitada e sim na disposição em atender o analisando: “Por essa razão, a questão que um futuro psicanalista deveria se fazer antes de se comprometer inteiramente com a psicanálise para o resto de sua vida é: estou mesmo tão interessado em outras pessoas inibidas a ponto de desejar trabalhar sem sucesso com um analisando por horas, semanas, meses, anos?”. (grifos do autor)

3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para concluir, retomo a pergunta ingênua com a qual começamos: a psicanálise é contra a ética? Agora podemos então dizer que é evidente que não. Vimos a complexidade da questão na medida em que o que é mais desejado – cujo modelo é o incesto com a mãe – é o mais proibido, um Bem que se transforma num Mal em função da Lei. Mesmo assim, a tarefa da psicanálise é tornar consciente este desejo para o analisando, o que não é o mesmo que liberá-lo para a franca atuação e realização no mundo externo. Ao integrar em seu psiquismo tais desejos maus, o sujeito tem mais recursos para lidar com eles, cabendo-lhe posteriormente a escolha de realizá-los ou não, levando em conta o princípio da realidade. Um aspecto importante desse processo é que, na medida em que reconhece em si mesmo tais desejos, deixa ele de projetá-los defensivamente no outro, fato de grande repercussão no laço social.
A aparente contradição entre tornar conscientes os desejos reprimidos e não os liberar para a ação fica bem mostrado em O mal-estar na civilização. Ali diz Freud que para tornar possível a vida em comum é imprescindível a repressão dos impulsos sexuais e agressivos, caso contrário se estabeleceria um estado de luta permanente de todos contra todos, levando a humanidade à extinção. É exatamente este o mal-estar a que Freud se refere – o ter consciência dos desejos sexuais e agressivos e o ter que contê-los, por saber que é impossível realizá-los. Uma ética da sobrevivência.
Mostrar a existência destes desejos proibidos significa que a psicanálise é indiferente ao Bem e ao Mal, trata os dois da mesma forma? Significa que a psicanálise despreza a própria ética como uma mera formação reativa?
Como vimos, a psicanálise não é indiferente ao Bem e ao Mal, não os confunde, reconhece perfeitamente a Lei que os discrimina. Mas, ao contrário da ética convencional, a psicanálise não tem qualquer papel normativo ou moralizante. Seu objetivo é fazer com que o sujeito agente daqueles comportamentos bons ou maus possa entender as motivações secretas inconscientes que o levaram a realizá-los. É essa sua ética específica.
O Bem perseguido pela psicanálise é fazer o sujeito reconhecer em si mesmo uma parte de seu psiquismo até então negada, reprimida, impossibilitada de se expressar exatamente por abrigar ideias e sentimentos que não obedecem aos padrões éticos, alcançando com isso sua verdade interior, fazendo-o reencontrar seu próprio desejo.
A psicanalise visa fazer cada um encontrar seu próprio desejo, o desentranhá-lo da alienação no Outro, seja este Outro a mãe, o pai ou, mais remotamente, o passado familiar com suas histórias cheias de vergonhas, humilhações e segredos, transmitidas pelos mecanismos transgeracionais, essa é a tarefa ética que temos realizado em nosso trabalho com nossos analisandos individuais ou com famílias. Nesse sentido, o trabalho do analista é o contrário daquele realizado pelo coacher, profissional que, sintomaticamente, tem tido grande procura em nossos tempos. Enquanto o psicanalista procura ajudar o analisando a encontrar sua própria subjetividade perdida no desejo do Outro, de forma pragmática, o coacher procura fazer seu cliente atingir seus objetivos, adequando-o ao que o Outro espera dele. Por exemplo, treinando-o para atender às expectativas do empregador e com isso parecer o melhor candidato a uma vaga de trabalho.
Concluo com um outro aspecto da questão. A clínica psicanalítica nos mostra que todos os atos maus condenados pela ética podem ser referidos à persistência de traços mais arcaicos presentes na constituição do sujeito. Tal como na psicose, tais atos estão ligados ao narcisismo onipotente, que nega o Outro e o princípio da realidade. Isso provoca uma outra reviravolta na questão ética. Reik, apoiado em Freud, defende em Le besoin d’avouer (A necessidade da confissão) a ideia de que, no futuro, o Mal será tratado como uma doença, o que levará ao desaparecimento do castigo e da punição, substituídos por tratamento. Ou seja, seria a ética substituída por uma terapêutica? Comentando este texto, diz Derrida: “Isso acontecerá quando a humanidade tiver compreendido, como Freud e a partir de Freud, que o sentimento de culpa inconsciente precede o crime. Uma confissão psicanalítica geral terá então substituído o direito penal” .

Referências bibliográficas
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(*) Publicado na revista “Percurso”, no. 58, junho 2017

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