O SHOW DE TRUMAN

Co-autoria com C. Guillermo Bigliani

O tão elogiado O SHOW DE TRUMAN, O SHOW DA VIDA (THE TRUMAN SHOW), filme de Peter Weir (autor de grandes filmes como O ANO EM QUE VIVEMOS EM PERIGO, A TESTEMUNHA e SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS) é uma parábola, uma metáfora que comporta várias leituras.

O Show de Truman

A mais imediata delas é a ligada ao poder da mídia eletrônica, especialmente a televisão, que assusta tanto a tantos. Arnaldo Jabor recentemente, relativizando tal temor, lembrou uma das grandes preocupações dos anos 60/70, quando se dizia que a Rede Globo iria controlar ideologicamente o país. Hoje em dia, esta ameaça já não afligiria ninguém. A Globo, apesar de manter sua hegemonia, lutaria para manter-se como a preferida dos miseráveis, disputando ferrenhamente os telespectadores com Ratinhos e Leões, ao mesmo tempo em que sua audiência de elite se volta para a TV a cabo. O mesmo ocorreria nos Estados Unidos, onde as grandes redes perderam a hegemonia, totalmente esfaceladas pela TV a cabo, que – por sua vez – se estilhaça em dezenas de canais.

Muito bem, se não corremos o perigo de UMA única rede nos dominar, persiste um perigo ainda maior, a hidra de mil cabeças, dos muitos canais a nossa disposição, ou que dispõem de nós, diria TRUMAN, o filme de Weir.

O roteiro do filme mostra como a vida de Truman foi transformada numa novela que está no ar desde o momento de seu nascimento e que é vista mundialmente. Truman ignora que sua vida é uma ficção planejada minuciosamente pelos criadores do programa, representados por Christof.

Uma tese sustentada pelo filme seria como a televisão invade inteiramente a subjetividade, confunde público e privado, aprisiona os sujeitos numa vida alienada, ditada pelos valores dos mercado, onde a felicidade está equacionada à posse de bens de consumo e a própria identidade pessoal se esfuma frente às identidades por ela fornecidadas, especialmente aquelas veiculadas pela publicidade, que forjam imagens de masculinidade ou feminilidade, de sucesso e triunfo, sempre caudatárias do consumo.

Não há propriamente uma novidade nesta argumentação repetida à exaustão pelos teóricos dos meios de comunicação de massa. Sem negar a imensa importância que a TV exerce sobre todos o tempo todo, pensamos ter ela um papel menos onipotente do que aquele que habitualmente se lhe atribui. Neste sentido discordamos do de resto excelente trabalho apresentado por Jorge Ahumada (1998) na Sociedade Psicanalítica de São Paulo quando parece creditar ao uso deliberado das cenografias do nazismo e estalinismo veiculados pela TV o poder de engendrar tiranias.

A TV é expressão de uma formação sócio-econômico-psicológica que se destaca por privilegiar a superficialidade e evitar as dores do pensamento, formação cultural que fornece muito mais tempo de Rambo que de Bouillon de Culture.

A forma como a psicanálise compreende a constituição do sujeito, baseada em identificações com os objetos primários (pai, mãe) de certa forma afasta a mídia como um fator estrutural consitutivo no ser humano, como alguns autores equivocadamente tentam estabelecer.

Um exemplo disto pode ser encontrado na sempre presente e legítima preocupação dos pais quanto aos malefícios que a televisão pode provocar em seus filhos, pois seria ela um perigoso fator instigador da violência, da agressividade, da sexualidade mal dirigida, etc.

Parece-nos que a questão fica incompletamente formulada, pois não leva em conta o fato de que as crianças não estão expostas apenas à televisão. Afinal, antes da TV elas estão expostas a uma influência extremamente mais importante, definitiva e constitutiva que é aquela trazida pelos próprios pais, cujas imagens vão servir de polos identificatórios para as crianças, cujas atitudes e desejos conscientes e inconscientes vão plasmar o clima onde a criança está totalmente imersa e receptiva.

A tão temida “influência maléfica” que a televisão teria fica num papel necessariamente secundário. Do ponto de vista prático, compete aos pais regulamentar o acesso da criança à TV. Assim como é necessário proteger as crianças de uma série de perigos dos quais ainda não sabem se defender sozinhas, o mesmo vale para a TV. Crianças que têem livre acesso à televisão poderiam ser entendidas como crianças abandonadas à própria sorte, sem controles e cuidados. Lamentavelmente seu número só tem crescido nos últimos tempos.

Mas não seriam só as crianças as vítimas do televisor: é o mundo dos adultos que, no filme, seria dominado pelo show de Truman. Vemos que são os adultos os que ficam plugados na telenovela, validando com sua assistência enlouquecida e acrítica a evolução de uma experiência alucinada de clonagem humana.

A outra leitura que a metáfora trazida pelo filme permite seria uma leitura psicanalítica sobre o que acabamos de falar acima – a constituição do sujeito humano.

Tausk, discípulo de Freud e seu analisado, descreveu nos pacientes esquizofrênicos algo que ele chamou de aparelho de influência. Estes pacientes sentiam que sua vida era observada cuidadosamente, que seus pensamentos eram comentados, que seu interior era vasculhado, assim como o espaço que eles habitavam era supervisado por forças estranhas e alheias a eles.

No inicio do filme, uma inquietação percorre a platéia: é Truman um esquizofrênico, um louco com delírio de influência?

A psicanálise postula que durante a constituição do sujeito psíquico os outros (a começar pelos pais) se instalam em seu interior como palavra e pensamento, como cuidados que o sujeito realiza consigo mesmo, como uma série de aspectos normativos e instrumentais que passam a constituir seu próprio ser.

Tudo isso que se origina no exterior, passa a ser ego-sintônico, ou seja, algo que o sujeito sente em sintonia com seu ser e cuja origem não pode mais ser traçada até suas origens externas. Perde-se o elo que o une ao real.

Na loucura, essa influência constitutiva não é assimilada. O louco vê muitos de seus próprios desejos de cuidados e de atenção sob a formas de alucinações, como se esses desejos estivessem sendo realizados no presente por forças reais externas, como o foram na infância pelos pais. Só que o ego vê esses desejos realizados como estruturações persecutórias.

Quando isso acontece, não se teria realizado uma adequada simbolização desse passado constitutivo, e – por isso – ele retorna como real. Através desse aparelho de influência o sujeito encontra uma forma de perpetuar esse passado de influências benéficas (ou não) e a proteção dos pais. Isto seria conflitante com os desejos de crescer e de abrir-se, por identificação com os pais, a experiências exogâmicas, que seria o que carateriza a normalidade.

Em outras palavras, a história de Truman mostra a passagem entre a alienação no desejo do Outro e a assunção do próprio desejo, o estabelecimento da própria subjetividade.

A relação entre Truman e a produção do show na televisão onipresente e onipotente, que o controla em tudo com suas cinco mil câmaras de filmar, impondo-lhe seu desejo, impedindo-lhe qualquer autonomia e escolha, seria uma possível representação da relação estabelecida por uma mãe narcísica que toma seu filho como prolongação dela própria para realizar seus desejos onipotentes.

Uma mãe que não tolera separar-se do filho, e o filho que luta entre o desejo de ficar na segurança da cela esplêndida e controlada, onde é uma eterna criança brincando de viver, e o desejo de sair dali e assumir sua própria subjetividade, seu próprio desejo, arriscando-se a enfrentar as dores do viver.

Vemos no filme como todas as tentativas de autonomia apresentads por Truman são imediatamente rechaçadas, invalidadas, desautorizadas, desestimuladas. Posteriormente ele é impedido e punido por tais tentativas. Fobias e sentimentos de culpa lhe são induzidas com este intuito. As imagens catastróficas da companhia de turismo desestimulam qualquer desejo de sair, de ir para longe.

O que falamos até aqui, caracterizariam uma psicose. Uma relação narcísica, não castrada, fundida com o objeto primário, uma impossibilidade de assumir o próprio desejo, a própria subjetividade.

Vemos, entretanto, em TRUMAN, como este sistema narcísico começa a ruir na hora em que Truman se interessa efetivamente, espontaneamente por uma mulher. É a emergência de seu próprio desejo, não mais aquele decorrente da manipulação externa. Truman estabelece sua relação exogêmica pela escolha da mulher estranha ao meio endogâmico, cuja imagem vai organizando aos poucos, numa colagem de lembranças e afetos, até constituir um objeto amoroso (objeto a, fonte de desejo?). É interessante notar como o acesso a essa mulher é severamente reprimido, como vemos no encontro na praia, quando ela é sumariamente levada por homens. Seria uma menção à interdição edípica, que organiza a saída primeira do narcisismo, a segunda se daría na adolescência.

A fala final de Christof, o criador do programa, tentando fazer Truman ficar no “útero”, assegurando-lhe que a vida lá fora é também cheia de mentiras e enganos, e que aqui ele está mais protegido é a tentativa final e frustrada feita pela “mãe” para impedir que o “filho” possa ele mesmo fazer as descobertas boas e más que o “mundo externo” inevitavelmente trará, que ele realize sua relação exogâmica.

Neste sentido, TRUMAN seria uma metáfora tanto da situação inicial da constituição do sujeito, como também da sua crise maior, aquela que se dá na adolescência.

Truman nos permitiu mostrar uma formação psicótica, que seria aquela onde ele fica encerrado no “útero”, na relação narcísica, sem ousar sair. Vimos também a solução “normal”, com a saída exogâmica, que é o final feliz do filme. Falaremos agora de uma saída neurótica. Referimo-nos àqueles sujeitos normopatas, que parecem viver uma vida adulta com uma mulher com a qual aparentemente estão casados. Mas isto é apenas na aparência, pois a mulher opera como mãe, é vista pelo paciente como uma mãe. Esta versão as if (“como se”, aparente) da maturidade é assustadoramente frequente em nosso dias em casais de determinadas classes sociais.

Não sabemos quanto influem para sua prevalência os prolongados períodos de educação em extensão constante desde o Renascimento, assim como, por outro lado, a submissão infantilizante ao poder da midia como aparece metaforizado em TRUMAN.

Uma outra idéia que TRUMAN nos faz pensar é que a estrutura relacioanal narcísica que ele ilustra costuma se intalar nas mais diversas terapias, em função das repetições transferenciais, criando – às vezes – impasses que são resultantes de sua elaboração inadequada.

Supostamente as boas análises são aquelas mais demoradas. Somente elas efetivamente teriam conseguido as integrações necessárias, as reparações, as elaborações da posição depressiva, da estruturação simbólica, o atravessamento do fantasma, etc. Mas é de se pensar até que ponto não ocultam elas – as terapias muito longas – distorções e perversões, onde ao invés de ajudar o analisando a sair da relação narcísica, fazem o contrário, restabelecem com ele tal relação e a mantem indefinidamente.

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