O rei tartamudo e as estrelas

Centrado num episódio – a transmissão radiofônica para o império britânico da fala de George VI num importante momento histórico – “O Discurso do Rei”, premiado filme de Tom Hooper, estabelece um paralelo entre a guerra pessoal do rei contra sua gagueira e a grande guerra mundial que se armava. A bem sucedida locução é celebrada com euforia, como se os problemas de fala do rei tivessem sido resolvidos de uma vez por todas. Mas as coisas não são bem assim, como todo gago sabe muito bem. A dificuldade não arrefece, continua surgindo nos momentos mais inconvenientes, perturbando a capacidade de falar e criando incessantes constrangimentos.

A fala é o selo que nos diferencia dos outros animais. Implícita no conceito de palavra está a possibilidade de simbolização e representação da realidade e de nosso mundo interior. A palavra permite a expressão de nossos sentimentos mais evanescentes, além da transmissão da informação e conhecimento, viabilizando o entendimento e a aproximação com nossos semelhantes. Mas também a palavra pode ser uma arma poderosa, afastando ou rompendo relações.

Dito isso, fica clara a dimensão do impedimento sofrido pelo gago.

Sabe-se que 5% das crianças com menos de 5 anos apresentam problemas de fala que desaparecerão na adolescência, com exceção dos 25% que persistirão gagas na vida adulta, perfazendo 1% da população adulta mundial. A lista de pessoas famosas que sofreram com este problema, superando-o completamente ou não, é grande. Para citar alguns: Julia Roberts e seu irmão Eric Roberts, Marilyn Monroe, Bruce Willis, James Stewart, Nicole Kidman, Emily Blunt, Carly Simon, Anthony Quinn, Harvey Keitel, Príncipe Albert de Mônaco, Tiger Woods, Rowan Atkinson (“Mr. Bean”), Nat King Cole, Noel Gallagher (da banda “Oasis”), Nelson Gonçalves e B.B. King.

As causas da gagueira não estão estabelecidas. Decorreriam da interação de fatores constitucionais com o meio ambiente, ou seja, com a dinâmica das relações familiares na qual a criança está imersa. Para a psicanálise, a gagueira aconteceria quando o próprio ato de falar ou o conteúdo da fala adquirem um significado inconsciente inaceitável, expressando desejos proibidos. Neste caso, as palavras e a fala assumem uma conotação extremamente perigosa, tornam-se capazes de seduzir e controlar os que as ouvem ou, recuperando a força mágica das antigas pragas, imprecações e maldições, podem ferir e destruir aqueles a quem se dirigem.

Essa compreensão psicanalítica aproxima os gagos dos retóricos, oradores e escritores, na medida em que estão todos ocupados com a mesma questão – o extraordinário poder da palavra. A proximidade fica ilustrada com o caso clássico de Demóstenes, o gago que se transformou no maior dos oradores. A diferença entre eles é que o gago, em sua fantasia, levaria ao pé da letra a crença nos aspectos destrutivos da palavra, deixando de lado a dimensão metafórica da mesma.

Lutar com palavras é a luta mais vã, diz Drumond. Seria duplamente vã a luta travada pelos escritores gagos? Sim, eles existem e são de melhor estirpe, como provam os nomes de Machado de Assis, Lewis Carol, Washington Irving, Charles Darwin, Henry James, Somerset Maugham, Jorge Luis Borges, Philip Larkin e John Updike.

Margareth Drabble especula se o estilo barroco de Henry James, cheio de digressões, aproximar-se-ia das manobras usadas por muitos gagos, que fazem circunvoluções na fala com o intuito de evitar determinadas palavras ou grupos consonantais especialmente desafiadores, o que dá a seus discursos um caráter dispersivo. O estilo terso e elegante de Machado de Assis desautoriza a generalização desta argumentação.

Um escritor gago parece uma contradição em termos. Mas ele apenas mostra que o domínio da palavra escrita não garante o mesmo no que diz respeito à palavra falada. E esta questão não se restringe aos escritores gagos, pois nem todo escritor é um bom orador.

Gagos, escritores, oradores e retóricos nos apontam para as diferenças entre a palavra falada e a palavra escrita, um antigo tema filosófico. Segundo Derrida, a metafísica ocidental se apóia na crença de que a palavra falada é a privilegiada sede da razão, sendo a palavra escrita apenas sua pobre e humilhada irmã bastarda, tese que ele se empenha em desconstruir. Talvez ecoando aquela crença, a língua diz que quem tem o “dom da palavra” não é o escritor e sim o orador.

Ainda falando de palavras, devo dizer que, apesar de tê-las usado até agora, “gago” e “gagueira” não me parecem palavras circunspectas o suficiente para expressar a seriedade do problema por elas designado. Evocam zombaria, descambam para o terreno escorregadio das piadas. “Pselismo” ou “disfemia”, os termos técnicos consagrados, são frios demais, distantes do sofrimento implícito àquilo que se referem. Talvez “tartamudo” e “tartamudez” transmitam condignamente o peso da condição por elas representada, este estado que lembra a mudez, o silêncio forçado, com tudo que isso pode representar de fechamento e impossibilidades. Elas apropriadamente dão conta da grandeza da luta que esta parcela da humanidade é forçada a empreender diariamente, sem alardear a coragem e a determinação exigidas para tanto.

Ao contrário da maioria dos filmes, que trata a tartamudez como um elemento de comicidade, “O discurso do Rei” devolve-lhe a dignidade e o respeito. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, o filme motivou escritores, jornalistas e críticos com problemas de fala a escreverem artigos nos quais dão o testemunho de suas vivências na batalha sem fim que travam contra o impedimento e o estigma que o acompanha.

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